domingo, maio 06, 2007

207) Um pioneiro da fotografia no Brasil

Severino, o fotógrafo-dentista, e a primeira foto dos bororos
Viajante pelo Centro-Oeste no fim do século 19, ele é autor de imagem idêntica à atribuída a Marc Ferrez
O Estado de São Paulo, domingo, 6 maio de 2007
João Domingos

Como o cigano Melquíades, do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que a cada ano retornava ao povoado de Macondo com novas, incríveis e apaixonantes engenhocas, o aventureiro José Severino Soares (1833-1917) costumava aparecer com novidades nas principais cidades das Regiões Sudeste e Centro-Oeste na segunda metade do século 19 e no início do século 20. Ele era ao mesmo tempo dentista, comerciante e fotógrafo.

Fez fama como fotógrafo. E é como fotógrafo, 90 anos depois de sua morte, que está no meio de uma polêmica sobre um grande tesouro do Brasil profundo, a primeira fotografia dos índios bororos.

A série de fotos é famosa. A cópia de uma delas está arquivada na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, na pasta 'documentação fotográfica/diversas, nº 209', título Bororós em Rio Verde de Goyaz/Severino Photographo. 1894. Há uma dedicatória escrita no verso: 'Offerecido a Gazeta de Nor por José Severino Soares photographo residente em Uberaba.' Acontece que fotografia quase idêntica, que parece ser da mesma série, é atribuída a Marc Ferrez (1843-1923), o mais famoso fotógrafo brasileiro do século 19.

A cópia em nome de Ferrez percorreu o mundo. Ela apareceu numa exposição organizada pelo Instituto Moreira Salles (IMS) no Museu Carnavalet, em Paris, em 2005, em comemoração ao Ano do Brasil na França. A mesma exposição foi apresentada também em São Paulo, em 2006 e 2007. A foto dos bororos está na página 232 do livro O Brasil de Marc Ferrez, de 2005, editado pelo IMS. Consta lá que foi tirada em 1880, 14 anos antes da de Severino.

Sérgio Burgi, coordenador-geral da Reserva Técnica de Fotografia do Instituto Moreira Salles, esclareceu ao Estado que o IMS atribui a autoria da foto a Marc Ferrez porque o negativo em vidro da imagem integra o acervo do fotógrafo. O IMS detém mais de 5 mil negativos originais de Marc Ferrez, entre os quais conjuntos de imagens de índios. Como tomou conhecimento agora de novas informações a respeito da fotografia dos bororos, o IMS afirmou que vai procurar no acervo mais dados que permitam esclarecer uma possível ligação entre Marc Ferrez e Severino.

BISNETO

Independentemente dessa questão, o jornalista Jorge Henrique Prata Soares, de 61 anos, bisneto de Severino, decidiu correr atrás não só dessa, mas de todas as fotos do bisavô. Já conseguiu recuperar 150 que estavam em Uberaba, Cidade de Goiás (Goiás Velho), Pirenópolis e Formosa, em Goiás, e em Cuiabá, em Mato Grosso. Ele pretende fazer em julho, em Uberaba, a exposição 'José Severino Soares, o itinerante'.

'Nas trilhas, caminhos e recantos, em canoas, vapores ou conduzido por muares, quero reconstituir a luta e a história de Severino, porque sou um Severino Soares', diz Jorge Prata, que hoje mora em Uberlândia. Nos últimos meses ele reuniu um acervo considerável de anúncios publicados em jornais da época, pesquisou tudo o que saiu a respeito do parente e acredita que, em julho, quando fizer a exposição de Severino, terá um amplo material para o registro fotográfico do avanço do progresso para o oeste.

Na exposição, Jorge Prata pretende mostrar, além da foto dos bororos, retratos do artista plástico goiano Veiga Valle, cujas obras sacras ficam no Museu da Boa Morte, em Goiás Velho, e fotos do acampamento militar de Humaitá, durante a Guerra do Paraguai, com soldados da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai), de prisioneiros vestidos a caráter, em Uberaba, de oficinas de trens, de avenidas comerciais de cidades do interior, da inauguração da ponte sobre o Rio Grande, na divisa entre Minas Gerais e São Paulo, e centenas de outras.

Eram fotos com garantia de 200 anos. Boris Kossoy, o principal pesquisador brasileiro na área de fotografia, diz que Severino foi o único fotógrafo na região do Triângulo Mineiro e no Centro-Oeste durante boa parte do século 19 e início do 20.

No livro Fotógrafos e Ofícios de Fotografia, de 2002, também editado pelo Instituto Moreira Salles, ele recupera anúncios de Severino em Goiás Velho. Neles o fotógrafo dizia que executava seus retratos pelo sistema da platinotipia, os quais garantia 'para 100 a 200 annos perfeitos'. Complementava o anúncio publicado no dia 10 de novembro de 1902 com esta observação: 'Sobrando-lhe tempo fará trabalhos dentários.'

SÓCIO DO CINEMA

Num outro anúncio, dizia que estava morando em Uberaba e se achava 'convenientemente montada a sua photographia, em um commodo construido especialmente para esse fim'.

Quando ia fazer algum curso, anunciava-o. Como sua ida para a Corte, 'a fim de aperfeiçoar na sua arte photographica'. Há informações de que Severino fez curso de fotografia em Paris e que, mesmo recebendo ofertas para permanecer em centros grandes, como São Paulo, preferiu percorrer o interior.

De acordo com as pesquisas realizadas por Kossoy, em 1902 Severino comprou um cinematógrafo (um projetor do início da história do cinema) no Rio de Janeiro. Pretendia exibir 'muitas vistas atractivas e, sobretudo muito decentes', conforme anúncio publicado nas cidades pelas quais passou.

Por conta desse aparelho, ele foi convidado a ser sócio do primeiro cinema de São Paulo, o Cine Bijou-Theatre. Mas recusou a oferta, porque considerava doloroso ficar entre quatro paredes. Preferia sua vida de aventureiro por Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

Kossoy conta ainda que em 1869, percorrendo os três Estados, Severino já se apresentava como 'dentista e retratista'. Em 1878, ele publicou um anúncio, também em Goiás Velho, dizendo que havia chegado para fazer suas tradicionais fotografias e que estava vendendo sal a preço inferior ao de qualquer um dos seus concorrentes na cidade. Em 1883, Severino anunciou que havia se estabelecido em Uberaba e que estava comprando cristais.

O aparecimento de Severino nas cidades era sempre muito saudado, por conta dos ofícios de dentista e fotógrafo. Em Goiás, antes de sua chegada, foi comentado pelo jornal O Estado de Goyaz de 3 de junho de 1893 que 'há já muito tempo que não existe photographo em Goyaz, portanto o povo não deve perder a occasião (...) será também boa occasião de se mandar reproduzir retratos tanto de vivos como de fallecidos'.

Kossoy teve ainda a curiosidade de saber quanto Severino cobrava pelas fotografias. Em 1893, estes eram os preços: '1 dúzia carta visita (cerca de 9,5 cm por 5,5 cm) em pé 16$000 (16 réis); 1 dúzia carta visita busto 20$000 (20 réis); 1 dúzia carta gabinete (cerca de 13,5 cm por 9,5 cm) em pé 36$000 (36 réis); 1 dúzia carta gabinete busto 40$000' (40 réis).'

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