domingo, agosto 21, 2011

A destruicao da escola publica pela universidade - Jose Maria e Silva

ESCOLA PÚBLICA
Vítima indefesa das universidades
José Maria e Silva
Jornal Opção (Goiânia), 21/08/2011

O Ideb na porta das escolas não vai medir o mais grave problema da educação brasileira: a pedagogia da destruição que as universidades impõem ao ensino público

O go­ver­no go­i­a­no, por in­ter­mé­dio da Se­cre­ta­ria Es­ta­du­al de Edu­ca­ção, ado­tou uma me­di­da pi­o­nei­ra no Pa­ís — a trans­for­ma­ção do Ín­di­ce de De­sen­vol­vi­men­to da Edu­ca­ção Bá­si­ca (Ideb) nu­ma es­pé­cie de DNA das es­co­las. A par­tir de ago­ra, to­das as es­co­las es­ta­du­ais se­rão obri­ga­das a os­ten­tar uma pla­ca com a no­ta ob­ti­da no Ideb, tor­nan­do pú­bli­co seu su­ces­so ou fra­cas­so no re­fe­ri­do ín­di­ce. Co­mo pai da ideia, o em­pre­sá­rio e eco­no­mis­ta Gus­ta­vo Ioschpe, pen­sa­dor ad hoc da edu­ca­ção, es­te­ve em Go­i­â­nia res­pal­dan­do a de­ci­são do se­cre­tá­rio de Edu­ca­ção, Thiago Pei­xo­to. Em seu Twit­ter, no fi­nal da tar­de de se­gun­da-fei­ra, 15, Ioschpe não es­con­deu o en­tu­si­as­mo: “Sa­in­do de Go­i­â­nia. Ideb na Es­co­la lan­ça­do na re­de es­ta­du­al de Go­i­ás. Pri­mei­ro Es­ta­do. Gran­de vi­tó­ria. Va­mos em fren­te”.

A pro­pos­ta de Gus­ta­vo Ioschpe ga­nhou for­ça en­tre as au­to­ri­da­des do Pa­ís e ten­de a vi­rar lei fe­de­ral, va­len­do pa­ra to­das as es­co­las bra­si­lei­ras. É o que pre­vê pro­je­to de lei do de­pu­ta­do fe­de­ral Ro­nal­do Cai­a­do (DEM), apre­sen­ta­do na Câ­ma­ra dos De­pu­ta­dos em 7 de ju­nho. No mes­mo dia, o de­pu­ta­do Ed­mar Ar­ru­da, do PSC do Pa­ra­ná, apre­sen­tou pro­je­to se­me­lhan­te, que foi apen­sa­do ao do par­la­men­tar go­i­a­no. Uma se­ma­na de­pois, em 15 de ju­nho, foi a vez do de­pu­ta­do Fer­nan­do Tor­res, do DEM da Ba­hia, apre­sen­tar pro­je­to pra­ti­ca­men­te idên­ti­co, tam­bém apen­sa­do ao de Cai­a­do. E na mes­ma da­ta, cou­be à se­na­do­ra Lú­cia Vâ­nia, do PSDB de Go­i­ás, inau­gu­rar es­sa dis­cus­são no Se­na­do, com um pro­je­to de lei do gê­ne­ro.

Além des­sas ini­ci­a­ti­vas no Con­gres­so Na­ci­o­nal, di­ver­sas As­sem­blei­as Le­gis­la­ti­vas e Câ­ma­ras Mu­ni­ci­pa­is pe­lo Pa­ís afo­ra es­tão dis­cu­tin­do pro­je­tos se­me­lhan­tes, to­dos eles ins­pi­ra­dos na pro­pos­ta de Gus­ta­vo Ioschpe. No ca­so dos pro­je­tos de lei que tra­mi­tam no Con­gres­so Na­ci­o­nal, o mais ou­sa­do é o de Ro­nal­do Cai­a­do, pois ele obri­ga to­das as es­co­las do en­si­no bá­si­co — não só as pú­bli­cas, mas tam­bém as par­ti­cu­la­res — a exi­bir a no­ta ob­ti­da no Ideb. Se apro­va­do, o pro­je­to de Cai­a­do exi­gi­ria adap­ta­ções no Ideb, pois a Pro­va Bra­sil, um dos in­di­ca­do­res que com­põ­em o ín­di­ce, é apli­ca­da por amos­tra­gem no en­si­no pri­va­do e não uni­ver­sal­men­te, co­mo ocor­re no en­si­no pú­bli­co ur­ba­no.

Pau­lo Frei­re da “di­rei­ta”
A pro­pos­ta de obri­gar as es­co­las pú­bli­cas a di­vul­ga­rem seu Ideb foi lan­ça­da por Gus­ta­vo Ioschpe na re­vis­ta “Ve­ja”, na edi­ção de 8 de ju­nho. Ao fi­nal de um ar­ti­go em que fa­la­va de sua par­ti­ci­pa­ção na “Blitz da Edu­ca­ção”, do “Jor­nal Na­ci­o­nal”, Ioschpe lan­çou o se­guin­te de­sa­fio: “As es­co­las pú­bli­cas do País de­ve­ri­am ser obri­ga­das por lei a pôr o seu Ideb em pla­ca de 1 me­tro qua­dra­do ao la­do da por­ta prin­ci­pal, em uma es­ca­la grá­fi­ca mos­tran­do sua no­ta de ze­ro a 10. Na pla­ca de­ve­ria apa­re­cer tam­bém o Ideb mé­dio do mu­ni­cí­pio e do Es­ta­do. A mai­o­ria dos pa­is e pro­fes­so­res ho­je não sa­be se a es­co­la do fi­lho é boa ou ru­im, e, se es­pe­rar­mos que con­sul­tem o si­te do MEC, se­re­mos o país do fu­tu­ro por mui­tas ge­ra­ções. Man­de um e-mail pa­ra seu de­pu­ta­do e exi­ja es­sa lei”.

Co­mo as edi­ções de “Ve­ja” são da­ta­das com ba­se na quar­ta-fei­ra, mas co­me­çam a cir­cu­lar no sá­ba­do an­te­ri­or (no ca­so, 4 de ju­nho), o pro­je­to de lei de Ro­nal­do Cai­a­do, co­mo ele pró­prio ad­mi­te, foi ins­pi­ra­do no ar­ti­go de Gus­ta­vo Ioschpe, mes­mo ten­do si­do apre­sen­ta­do em 7 de ju­nho. A par­tir daí, o Ideb na por­ta das es­co­las tor­nou-se uma fe­bre en­tre po­lí­ti­cos de to­do o País. Em 7 de ju­lho, Ioschpe anun­ciou no seu Twit­ter: “Bom­ba! Ci­da­de do Rio de Ja­nei­ro vai ade­rir ama­nhã ao Ideb na Es­co­la. Gol de pla­ca! Pa­ra­béns a Eduar­do Pa­es e Clau­dia Cos­tin” (se­cre­tá­ria de Edu­ca­ção da ci­da­de). O pró­prio pre­fei­to Eduar­do Pa­es res­pon­deu: “Ioschpe, va­mos se­guin­do su­as di­cas. Aqui no Rio o es­for­ço é to­tal pa­ra avan­çar na edu­ca­ção”.

Gus­ta­vo Ioschpe, um jo­vem de 34 anos, vi­rou su­mi­da­de da edu­ca­ção no País, uma es­pé­cie de “Pau­lo Frei­re da di­rei­ta”, co­mo po­de­ria di­zer a es­quer­da se ou­sas­se brin­car com o san­to no­me de Frei­re. En­tre seus fi­éis se­gui­do­res no Twit­ter es­tão dois go­i­a­nos: o pró­prio se­cre­tá­rio es­ta­du­al de Edu­ca­ção, Thi­a­go Pei­xo­to, e a ex-se­cre­tá­ria e ex-de­pu­ta­da fe­de­ral Ra­quel Tei­xei­ra. Ou­tros po­lí­ti­cos do País in­tei­ro, tal­vez na es­pe­ran­ça de con­se­guir es­pa­ço na gran­de im­pren­sa, en­chem o Twit­ter do eco­no­mis­ta não ape­nas com men­sa­gens de apoio, mas tam­bém com o anún­cio de pro­je­tos de lei ba­se­a­dos em sua pro­pos­ta. Além de­les, Ioschpe vem re­ce­ben­do res­pal­do da gran­de im­pren­sa e de ou­tras ins­ti­tu­i­ções, es­pe­ci­al­men­te de “Ve­ja”, “Fo­lha de S. Pau­lo”, “O Glo­bo” e Gru­po RBS, além do pu­bli­ci­tá­rio Ni­zan Gua­na­es.

Ideb não é va­ri­nha má­gi­ca
A pro­pos­ta de obri­gar as es­co­las pú­bli­cas a ex­por o seu Ideb não é ru­im. Mas con­fun­dir ter­mô­me­tro com va­ri­nha de con­dão é pés­si­mo. O Ideb de­tec­ta sin­to­mas, mas é in­ca­paz de cu­rar do­en­ças. E, co­mo to­do in­di­ca­dor de qua­li­da­de, ele en­fren­ta crí­ti­cas des­de que foi cri­a­do, em 2007, pe­lo Ins­ti­tu­to Na­ci­o­nal de Es­tu­dos Pe­da­gó­gi­cos Aní­sio Tei­xei­ra (Inep), ór­gão do Mi­nis­té­rio da Edu­ca­ção, que tam­bém cri­ou o Sis­te­ma de Ava­li­a­ção do En­si­no Bá­si­co (Sa­eb), em 1990, e o Exa­me Na­ci­o­nal do En­si­no Mé­dio (Enem), em 1998. É cer­to que gran­de par­te des­sas crí­ti­cas têm um fun­do ide­o­ló­gi­co e não se ali­cer­çam na re­a­li­da­de do en­si­no, mas na uto­pia dos crí­ti­cos. Mes­mo as­sim, não con­vém fa­zer do Ideb uma es­pé­cie de so­lu­ção má­gi­ca pa­ra to­dos os pro­ble­mas do en­si­no pú­bli­co; agir as­sim é con­tra­ri­ar a pró­pria ra­zão de ser des­se ín­di­ce.

Por mais que se­jam pas­sí­veis de fa­lhas, os ín­di­ces de qua­li­da­de da edu­ca­ção são uma ten­ta­ti­va sa­lu­tar de ava­li­ar o en­si­no com ba­se em da­dos con­cre­tos, evi­tan­do o dis­cur­so apo­ca­líp­ti­co ou sal­va­cio­nis­ta que sem­pre ca­rac­te­ri­zou os pen­sa­do­res da edu­ca­ção. Co­mo ob­ser­va Emi­le Durkheim (1858-1917), no clás­si­co “A Evo­lu­ção Pe­da­gó­gi­ca”, ca­da te­ó­ri­co da edu­ca­ção ten­de a ava­li­ar a es­co­la com ba­se na uto­pia que pro­fes­sa e não na re­a­li­da­de que vê. Es­sa ten­dên­cia co­me­çou com a “Di­dá­ti­ca Mag­na” (1633), do tche­co Jo­ão Amós Co­mê­nio (1592-1670), an­ces­tral do en­si­no di­to pro­gres­sis­ta, e vi­rou do­en­ça com o ge­ne­bri­no Je­an-Jac­ques Rous­se­au (1712-1778), au­tor de “Emí­lio ou Da Edu­ca­ção” (1762). Rous­se­au in­flu­en­ciou to­do o pen­sa­men­to pe­da­gó­gi­co mo­der­no, mes­mo ten­do si­do um com­ple­to fra­cas­so na cri­a­ção dos pró­prios fi­lhos, os qua­is aban­do­nou.

Uma das crí­ti­cas ao Ideb par­te do pro­fes­sor Der­me­val Sa­vi­a­ni, li­vre-do­cen­te da Uni­camp, com pós-dou­to­ra­do pe­la Uni­ver­si­da­de de Bo­log­na, na Itá­lia, que, em en­tre­vis­ta ao ca­der­no “Mais!”, da “Fo­lha de S. Pau­lo”, em 29 de abril de 2007, acu­sou o ín­di­ce de ser fru­to de uma “pe­da­go­gia de re­sul­ta­dos”. Eis o que afir­mou Sa­vi­a­ni ao jor­nal: “É uma ló­gi­ca de mer­ca­do, que se guia, nas atu­ais cir­cun­stân­cias, pe­los me­ca­nis­mos da cha­ma­da 'pe­da­go­gia das com­pe­tên­cias' e da 'qua­li­da­de to­tal'. Es­ta, as­sim co­mo nas em­pre­sas, vi­sa a ob­ter a sa­tis­fa­ção to­tal dos cli­en­tes e in­ter­pre­ta que, nas es­co­las, aque­les que en­si­nam são pres­ta­do­res de ser­vi­ço, os que apren­dem são cli­en­tes e a edu­ca­ção é um pro­du­to que po­de ser pro­du­zi­do com qua­li­da­de va­ri­á­vel”.

Uto­pia his­tó­ri­co-crí­ti­ca
A exem­plo da qua­se to­ta­li­da­de dos pe­da­go­gos bra­si­lei­ros, co­me­çan­do por Pau­lo Frei­re (1921-1997), cri­a­dor do que cha­mo de “au­to­a­ju­da mar­xis­ta”, Der­me­val Sa­vi­a­ni acu­sa o Ideb de se gui­ar pe­la “ló­gi­ca de mer­ca­do”, mas se es­que­ce que sua pró­pria crí­ti­ca é pau­ta­da pe­la uto­pia so­ci­a­lis­ta da “pe­da­go­gia his­tó­ri­co-crí­ti­ca”, uma cor­ren­te pe­da­gó­gi­ca cri­a­da por ele, com fun­da­men­to em Karl Marx (1818-1883) e, por is­so mes­mo, mui­to uti­li­za­da nos cur­sos de pe­da­go­gia do País. Até mes­mo a ava­li­a­ção do Pla­no Na­ci­o­nal de Edu­ca­ção 2001-2008, en­co­men­da­da pe­lo pró­prio MEC e ca­pi­ta­ne­a­da por pro­fes­so­res da Uni­ver­si­da­de Fe­de­ral de Go­i­ás, pa­de­ce de mar­xis­mo con­gê­ni­to, o que mos­tra a enor­me di­fi­cul­da­de de se ava­li­ar a qua­li­da­de da edu­ca­ção bá­si­ca no País, pois a uni­ver­si­da­de, res­pon­sá­vel por es­sa ava­li­a­ção, tem um for­te vi­és ide­o­ló­gi­co.

Ao con­trá­rio do que pen­sam os pe­da­go­gos mar­xis­tas e os mi­li­tan­tes sin­di­cais, não é er­ra­do, em si, co­brar re­sul­ta­dos das es­co­las. Eles pró­prios fa­zem is­so o tem­po to­do, só que de uma for­ma per­ver­sa: os re­sul­ta­dos que co­bram dos pro­fes­so­res não di­zem res­pei­to ao mun­do con­cre­to, mas ao “ou­tro mun­do pos­sí­vel”, em no­me do qual ex­clu­em os alu­nos do mun­do re­al. Tra­ta-se da ló­gi­ca ir­ra­ci­o­nal da uto­pia, que faz tá­bu­la ra­sa da re­a­li­da­de. A de­pen­der des­sa pe­da­go­gia, a es­co­la se tor­na par­ti­do po­lí­ti­co, o pro­fes­sor vi­ra mi­li­tan­te de uma cau­sa e o en­si­no se trans­for­ma em pu­ra dou­tri­na­ção. Pro­va dis­so é que o lin­guis­ta Mar­cos Bag­no, no fa­mi­ge­ra­do “Pre­con­cei­to Lin­guís­ti­co” (que já es­tá na 50ª edi­ção), che­ga a ques­ti­o­nar o en­si­no co­mo ins­tru­men­to de pro­mo­ção so­ci­al do alu­no e in­da­ga tex­tu­al­men­te: “Va­le­rá mes­mo a pe­na pro­mo­ver a 'as­cen­são so­ci­al' pa­ra que al­guém se en­qua­dre den­tro des­ta so­ci­e­da­de em que vi­ve­mos, tal co­mo ela se apre­sen­ta ho­je?”

In­di­ca­do­res de qua­li­da­de co­mo o Ideb pro­cu­ram mos­trar que não é pre­ci­so vi­rar o mun­do de pon­ta-ca­be­ça pa­ra se en­si­nar por­tu­guês e ma­te­má­ti­ca a uma cri­an­ça, co­mo acre­di­tam os dis­cí­pu­los de Pau­lo Frei­re. Sem dú­vi­da, co­mo di­zia Durkheim, “a vi­da é, às ve­zes ru­de, ou­tras ve­zes, en­ga­no­sa ou va­zia”, mes­mo as­sim, a es­co­la não po­de ab­di­car do mun­do tal co­mo ele é, co­mo se fos­se uma sei­ta mi­le­na­ris­ta de­di­ca­da a pre­gar o Apo­ca­lip­se pa­ra me­lhor apres­sar o no­vo Éden. O pa­pel da es­co­la não é edu­car o alu­no pa­ra utó­pi­cos mun­dos pos­sí­veis, mas pa­ra con­cre­tos mun­dos pro­vá­veis, os qua­is lhe com­pe­te de­du­zir com ba­se na re­a­li­da­de. Is­so não é “ló­gi­ca de mer­ca­do” - é ape­nas ló­gi­ca de so­bre­vi­vên­cia hu­ma­na, que va­le em qual­quer so­ci­e­da­de des­de que o mun­do é mun­do. Pri­var o alu­no dis­so, co­mo fa­zem os pe­da­go­gos di­tos pro­gres­sis­tas, é um cri­me.

Con­di­ções so­ci­ais
Sem dú­vi­da, fa­to­res so­ci­o­e­co­nô­mi­cos in­ter­fe­rem na edu­ca­ção. Quan­to mais bai­xo é o ní­vel so­ci­al de uma fa­mí­lia, mais di­fí­cil é o apren­di­za­do de seus fi­lhos. Ob­via­men­te, nem to­do po­bre es­tá fa­da­do à ig­no­rân­cia. Ao con­trá­rio do que pre­ga a mai­o­ria dos in­te­lec­tu­ais con­tem­po­râ­ne­os, a in­te­li­gên­cia tam­bém de­pen­de de fa­to­res he­re­di­tá­rios. Mes­mo as­sim, não dá pa­ra ne­gar que o alu­no do en­si­no pú­bli­co cos­tu­ma fi­car em des­van­ta­gem em re­la­ção a seus con­cor­ren­tes do en­si­no pri­va­do. Fe­liz­men­te, os pe­da­go­gos aban­do­na­ram o de­ter­mi­nis­mo mar­xis­ta do pas­sa­do, mas o Inep con­ti­nua re­co­nhe­cen­do, acer­ta­da­men­te, que o ca­pi­tal cul­tu­ral do alu­no ten­de a ser in­flu­en­cia­do pe­lo seu ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co.

Só que o ins­ti­tu­to tam­bém mos­tra, na aná­li­se da Pro­va Bra­sil, que o de­sem­pe­nho dos alu­nos com o mes­mo per­fil nem sem­pre é igual. As es­co­las fo­ram agru­pa­das por cin­co ní­veis so­ci­o­e­co­nô­mi­cos, do ní­vel 1, o mais bai­xo, ao ní­vel 5, o mais al­to. A es­co­la com mai­or de­sem­pe­nho no ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co mais bai­xo ob­te­ve 206 pon­tos na Pro­va Bra­sil, en­quan­to a es­co­la de mai­or de­sem­pe­nho no ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co mais al­to al­can­çou 224 pon­tos. A di­fe­ren­ça tam­bém se re­pe­te en­tre as es­co­las de me­nor de­sem­pe­nho, que ob­ti­ve­ram no­ta 144 no ní­vel 1 e 174 no ní­vel 5. A mé­dia das es­co­las va­riou de 173 pon­tos no gru­po de me­nor ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co pa­ra 207 pon­tos na de mai­or ní­vel.

“A me­di­da que o ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co cres­ce, tam­bém au­men­ta a no­ta da es­co­la”, con­clui o Inep. “Es­te é um fa­to já am­pla­men­te co­nhe­ci­do, mos­tran­do que o de­sem­pe­nho do alu­no re­fle­te, ain­da que de for­ma, não de­ter­mi­nís­ti­ca, o ca­pi­tal cul­tu­ral de sua fa­mí­lia, que, no Bra­sil, es­tá mui­to as­so­cia­do ao ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co”, acres­cen­ta. Mas, em se­gui­da, res­sal­va que, nu­ma mes­ma ci­da­de, en­tre alu­nos com o mes­mo ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co, hou­ve ex­pres­si­va va­ri­a­ção de de­sem­pe­nho na Pro­va Bra­sil. No ní­vel 3, por exem­plo, a pi­or no­ta foi 133 e a me­lhor, 208. “A di­fe­ren­ça en­tre es­ses dois va­lo­res - 75 pon­tos - é tão re­le­van­te que cor­res­pon­de a mais de três anos de es­co­la­ri­za­ção”, sus­ten­ta o Inep. E con­clui: “Co­mo a di­fe­ren­ça en­tre as es­co­las de um mes­mo ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co não es­tá nos alu­nos, es­ta de­ve ser pro­cu­ra­da na ges­tão pe­da­gó­gi­ca, na for­ma de en­si­nar, na cul­tu­ra, nos va­lo­res da es­co­la ou no pro­je­to pe­da­gó­gi­co. To­dos es­ses pon­tos pas­sí­veis de se­rem mu­da­dos com a ação da es­co­la”.

Di­men­são mo­ral da es­co­la
A con­clu­são do Inep mos­tra o quan­to po­de ser pe­ri­go­sa a trans­for­ma­ção do Ideb na so­lu­ção pa­ra to­dos os pro­ble­mas do en­si­no. O fa­to de um de­ter­mi­na­do gru­po de alu­nos ter o mes­mo ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co não sig­ni­fi­ca que eles se­jam to­dos igua­is e que qual­quer di­fe­ren­ça em seu apren­di­za­do se­ja res­pon­sa­bi­li­da­de ex­clu­si­va da es­co­la, co­mo acre­di­ta o Inep. O mun­do sem­pre foi pre­nhe de po­bres ge­ni­ais e ri­cos es­tul­tos que con­tra­ri­am o de­ter­mi­nis­mo des­sa te­se. Além dis­so, a edu­ca­ção com­por­ta uma di­men­são mo­ral que ja­mais é ava­li­a­da por in­di­ca­do­res de qua­li­da­de co­mo o Ideb. O que mais atra­pa­lha o apren­di­za­do de um alu­no não é o seu bai­xo ní­vel so­ci­o­e­co­nô­mi­co e, sim, o seu bai­xo ní­vel mo­ral. Nin­guém é ca­paz de en­si­nar um alu­no in­dis­ci­pli­na­do, que se re­cu­sa a apren­der. E is­so o MEC, o Inep e as uni­ver­si­da­des se re­cu­sam a en­xer­gar.

Uma pes­qui­sa do Cen­tro de Es­tu­dos e Pes­qui­sas em Edu­ca­ção, Cul­tu­ra e Ação Co­mu­ni­tá­ria (Cen­pec), que te­ve o apoio do Fun­do das Na­ções Uni­das pa­ra a In­fân­cia (Uni­cef), aju­da a elu­ci­dar es­sa ques­tão. Re­a­li­za­do en­tre 2009 e 2010 em 61 es­co­las da Zo­na Les­te da ci­da­de de São Pau­lo e di­vul­ga­do em ju­lho úl­ti­mo, o es­tu­do cons­ta­tou que, quan­to mai­or a vul­ne­ra­bi­li­da­de so­ci­al de um de­ter­mi­na­do ter­ri­tó­rio, me­nor é o ní­vel da qua­li­da­de de en­si­no de su­as es­co­las e tam­bém me­nor é a apren­di­za­gem dos alu­nos. O es­tu­do to­mou co­mo pa­râ­me­tro as no­tas das es­co­las no Ideb e cons­ta­tou que, quan­to mais vul­ne­rá­vel é o ter­ri­tó­rio em que a es­co­la es­tá si­tu­a­da, me­nor é a sua no­ta.

A vul­ne­ra­bi­li­da­de so­ci­al do ter­ri­tó­rio da es­co­la é tão im­por­tan­te que in­ter­fe­re até na ba­ga­gem cul­tu­ral que o alu­no traz de ca­sa. A pes­qui­sa do Cen­pec mos­tra que, nas es­co­las de bai­xa vul­ne­ra­bi­li­da­de so­ci­al, 39% dos alu­nos de mai­or ní­vel cul­tu­ral con­se­guem atin­gir um ní­vel ade­qua­do ou avan­ça­do no Ideb. Já nas es­co­las de al­ta vul­ne­ra­bi­li­da­de, es­se ín­di­ce cai pa­ra 19%. Além dis­so, 41% dos alu­nos de mai­or ní­vel cul­tu­ral não con­se­guem nem mes­mo atin­gir o ní­vel bá­si­co no Ideb quan­do es­tu­dam em es­co­las vul­ne­rá­veis, en­quan­to nas es­co­las de bai­xa vul­ne­ra­bi­li­da­de ape­nas 19% des­ses alu­nos fi­cam abai­xo do bá­si­co.

Uma tra­gé­dia edu­ca­cio­nal
Quan­do a vul­ne­ra­bi­li­da­de da es­co­la se so­ma ao bai­xo ní­vel cul­tu­ral que o alu­no traz de ber­ço, en­tão, te­mos uma ver­da­dei­ra tra­gé­dia edu­ca­cio­nal. Do to­tal de alu­nos com bai­xos re­cur­sos cul­tu­ra­is que es­tu­dam em es­co­las al­ta­men­te vul­ne­rá­veis, cer­ca de 50% se si­tuam na ca­te­go­ria abai­xo do bá­si­co, en­quan­to ape­nas 10% se si­tuam nos ní­veis ade­qua­do e avan­ça­do. Já nas es­co­las de bai­xa vul­ne­ra­bi­li­da­de so­ci­al, mes­mo os alu­nos que tra­zem pou­ca ba­ga­gem cul­tu­ral de ca­sa con­se­guem um de­sem­pe­nho bem me­lhor: os que se si­tuam abai­xo do bá­si­co ca­em pa­ra 38% (12 pon­tos a me­nos em re­la­ção às es­co­las de al­ta vul­ne­ra­bi­li­da­de) e os que con­se­guem atin­gir o ní­vel ade­qua­do so­bem pa­ra 24% (14 pon­tos a mais).

Os pes­qui­sa­do­res do Cen­pec con­clu­em que, nos ter­ri­tó­rios de al­ta vul­ne­ra­bi­li­da­de, as es­co­las são o prin­ci­pal equi­pa­men­to pú­bli­co de re­fe­rên­cia e “ten­dem, por is­so, a ser to­ma­das pe­los pro­ble­mas so­ci­ais do ter­ri­tó­rio”. Va­le a pe­na tran­scre­ver uma da con­clu­sões do es­tu­do: “As es­co­las de mei­os vul­ne­rá­veis ten­dem a apre­sen­tar um cor­po dis­cen­te for­te­men­te ho­mo­gê­neo no que diz res­pei­to aos bai­xos re­cur­sos cul­tu­ra­is fa­mi­lia­res e ao lo­cal de re­si­dên­cia na vi­zi­nhan­ça vul­ne­rá­vel da es­co­la. Elas ten­dem, por es­sa ra­zão, a re­pro­du­zir, em seu in­te­ri­or, a se­gre­ga­ção ter­ri­to­ri­al ur­ba­na e so­ci­o­cul­tu­ral da po­pu­la­ção que aten­dem, bem co­mo os pro­ble­mas de­cor­ren­tes des­sa se­gre­ga­ção”.

Os pes­qui­sa­do­res do Cen­pec não di­zem, mas eu di­go: es­se qua­dro se tor­na ain­da mais gra­ve pe­la in­flu­ên­cia das uni­ver­si­da­des no en­si­no bá­si­co. De acor­do com a ide­o­lo­gia pe­da­gó­gi­ca pre­do­mi­nan­te no País (o cons­tru­ti­vis­mo), o apren­di­za­do do alu­no de­ve ocor­rer de mo­do au­tô­no­mo a par­tir do seu con­tex­to cul­tu­ral. Com is­so, o pro­fes­sor que le­cio­na nes­sas re­gi­ões de al­ta vul­ne­ra­bi­li­da­de so­ci­al não po­de fa­zer da es­co­la um ins­tru­men­to ci­vi­li­za­dor - tem de dei­xar que o alu­no des­pe­je na sa­la de au­la to­da sor­te de bar­bá­rie que traz do seu con­tex­to. Se não agir as­sim, o pro­fes­sor se­rá acu­sa­do de opres­sor e pre­con­cei­tu­o­so. Por is­so, até os li­vros di­dá­ti­cos de por­tu­guês, ins­pi­ra­dos na so­ci­o­lin­guís­ti­ca de Mar­cos Bag­no, es­tão ba­nin­do a nor­ma cul­ta do idi­o­ma, com se a fun­ção da es­co­la fos­se re­fe­ren­dar as gí­rias dos gue­tos.

O pa­ra­do­xo das no­tas
Se o Ideb for co­lo­ca­do na por­ta das es­co­las pa­ra que elas pos­sam pe­dir so­cor­ro à so­ci­e­da­de, ele se­rá bem-vin­do. Mas se for uti­li­za­do co­mo ins­tru­men­to de pres­são con­tra di­re­to­res e pro­fes­so­res, se­rá mais um de­sas­tre na edu­ca­ção bra­si­lei­ra. O ver­da­dei­ro pro­ble­ma do en­si­no bá­si­co não é o pro­fes­sor, mas o alu­no. Não bas­ta que o pro­fes­sor sai­ba en­si­nar - é pre­ci­so que o alu­no quei­ra apren­der. Até Je­sus Cris­to, na Pa­rá­bo­la do Se­me­a­dor, dei­xa is­so cla­ro: é im­pos­sí­vel cul­ti­var uma se­men­te na pe­dra. Em to­da a his­tó­ria da edu­ca­ção bra­si­lei­ra, ja­mais as es­co­las pú­bli­cas con­ta­ram com tan­to re­cur­sos ma­te­ri­ais e hu­ma­nos co­mo con­tam ho­je. Nas gran­des ci­da­des, um per­cen­tu­al ex­pres­si­vo de pro­fes­so­res tem es­pe­cia­li­za­ção, mes­tra­do e até dou­to­ra­do, mas as no­tas do Ideb são mais al­tas nas pe­que­nas ci­da­des, on­de a qua­li­fi­ca­ção do pro­fes­sor é me­nor.

São du­as as ra­zões pa­ra es­se pa­ra­do­xo: pri­mei­ro, os cur­sos de pós-gra­du­a­ção, em mui­tos ca­sos, só ser­vem pa­ra con­fun­dir o pro­fes­sor do en­si­no bá­si­co, na me­di­da em que des­pre­zam sua ex­pe­ri­ên­cia di­dá­ti­ca em no­me de uto­pi­as mi­ra­bo­lan­tes; se­gun­do, a apren­di­za­gem do alu­no da es­co­la bá­si­ca de­pen­de mais da au­to­ri­da­de do que da ca­pa­ci­da­de in­te­lec­tu­al do pro­fes­sor. Por is­so, Ca­ju­ru, no in­te­ri­or de São Pau­lo, com 23.371 ha­bi­tan­tes, e Ei­ru­ne­pé, na Ama­zô­nia, com 30.665 mo­ra­do­res, saí­ram-se mui­to bem no Ideb de 2009. Ca­ju­ru con­se­guiu co­lo­car seis de su­as oi­to es­co­las no ranking das me­lho­res mé­di­as, en­quan­to uma es­co­la pú­bli­ca de Ei­ru­ne­pé ob­te­ve a quar­ta me­lhor no­ta (8,7), ul­tra­pas­san­do em 3,6 pon­tos a me­ta pa­ra 2011. Em ci­da­des pe­que­nas, as fa­mí­lias ten­dem a es­tar mais pró­xi­mas da es­co­la e, com is­so, re­for­çam a au­to­ri­da­de do pro­fes­sor — que é im­pres­cin­dí­vel pa­ra o apren­di­za­do do alu­no.

E é jus­ta­men­te a au­to­ri­da­de do pro­fes­sor que vem sen­do vi­li­pen­di­a­da pe­las uni­ver­si­da­des. As pes­qui­sas aca­dê­mi­cas so­bre edu­ca­ção cos­tu­mam apon­tar o su­pos­to au­to­ri­ta­ris­mo dos mes­tres co­mo cau­sa da vi­o­lên­cia e in­dis­ci­pli­na en­tre os alu­nos e ain­da acu­sam os pro­fes­so­res de não se­rem su­fi­ci­en­te­men­te cri­a­ti­vos pa­ra atra­ir a aten­ção da clas­se. É o que se vê no li­vro “Ju­ven­tu­des: Pos­si­bi­li­da­des e Li­mi­tes”, pu­bli­ca­do pe­la Unes­co, co­mo re­sul­ta­do de um gran­de se­mi­ná­rio so­bre o te­ma re­a­li­za­do na Uni­ver­si­da­de Ca­tó­li­ca de Bra­sí­lia em no­vem­bro de 2009, com o apoio do go­ver­no fe­de­ral. Nes­se se­mi­ná­rio, on­guei­ros, exe­cu­ti­vos fe­de­ra­is e dou­to­res uni­ver­si­tá­rios fo­ram pra­ti­ca­men­te unâ­ni­mes em cri­ti­car os pro­fes­so­res, acu­san­do-os de não dar voz aos alu­nos, co­mo se os alu­nos, ho­je, não des­sem pal­pi­te em tu­do den­tro da es­co­la. Os pro­fes­so­res é que são si­len­ci­a­dos, tan­to que nun­ca são cha­ma­dos a fa­lar nes­ses se­mi­ná­rios.

Le­ni­ên­cia do sis­te­ma de en­si­no
Um dos par­ti­ci­pan­tes da con­fe­rên­cia, o as­ses­sor da pre­si­dên­cia do BNDES, Ri­car­do Hen­ri­ques, che­gou a afir­mar que “há uma fal­ta de ade­rên­cia dos pro­fes­so­res à von­ta­de dos alu­nos” e acu­sou o do­cen­te de ser “de­sen­ca­de­a­dor de si­tu­a­ções de vi­o­lên­cia”, co­mo se o pro­fes­sor não fos­se uma ví­ti­ma acu­a­da pe­la clas­se, que, uma vez re­fe­ren­da­da pe­lo Es­ta­tu­to da Cri­an­ça e do Ado­les­cen­te, po­de fa­zer de­le o que qui­ser. To­dos os pro­fes­so­res que ou­vi em mi­nha dis­ser­ta­ção de mes­tra­do — de­fen­di­da há qua­se dez anos — dis­se­ram já ter si­do xin­ga­dos com pa­la­vrões por alu­nos. Um de­les afir­mou: “Um alu­no que xin­ga o pro­fes­sor, que ame­a­ça de mor­te o pro­fes­sor, tem que ser pe­lo me­nos sus­pen­so. Mas não acon­te­ce na­da. Ho­je, o alu­no di­zer pa­ra o pro­fes­sor ‘vai to­mar no cu’ é uma coi­sa nor­mal. Alu­no já me man­dou fa­zer is­so. Con­ver­sei com a di­re­to­ra e ela dis­se que não po­dia fa­zer na­da. Is­so es­tá er­ra­do. A es­co­la ti­nha que po­der fa­zer al­gu­ma coi­sa”.

Que ou­tro pro­fis­si­o­nal con­vi­ve com is­so to­do dia co­mo o pro­fes­sor é obri­ga­do a con­vi­ver? E o pro­fes­sor não tem a quem re­cla­mar. Os in­te­lec­tu­ais uni­ver­si­tá­rios ve­em-no co­mo um in­ca­paz; as au­to­ri­da­des edu­ca­cio­nais tra­tam-no co­mo um re­lap­so; os pa­is con­si­de­ram-no um ser­vi­çal de seus fi­lhos; os alu­nos trans­for­mam-no em ver­da­dei­ro pa­lha­ço. E to­das as ins­tân­cias edu­ca­cio­nais do País ten­tam es­con­der es­sa re­a­li­da­de, pois o es­tu­dan­te não po­de ser res­pon­sa­bi­li­za­do por na­da. E quan­do alu­nos agri­dem vi­o­len­ta­men­te um co­le­ga ou um pro­fes­sor, mui­tas ve­zes é a ví­ti­ma quem tem de mu­dar de es­co­la. E se ocor­re de o agres­sor ter de sa­ir, ele ja­mais é ex­pul­so, mas ape­nas trans­fe­ri­do pe­la pró­pria di­re­ção. Ou se­ja, é pre­mi­a­do, pois não te­rá nem o tra­ba­lho de pro­cu­rar va­ga em ou­tro es­ta­be­le­ci­men­to de en­si­no — a di­re­ção da es­co­la é obri­ga­da a fa­zer is­so por ele.

En­tre as so­lu­ções pa­ra a vi­o­lên­cia que os aca­dê­mi­cos de­fen­dem es­tão a aber­tu­ra das es­co­las pa­ra a co­mu­ni­da­de nos fi­nais de se­ma­na — so­bre­car­re­gan­do ain­da mais o pro­fes­sor — e a pro­mo­ção da “Cul­tu­ra da Paz”. Es­se mo­vi­men­to, cri­a­do pe­la ONU e en­cam­pa­do pe­lo MEC, con­sis­te em le­gi­ti­mar as gan­gues que de­pre­dam a es­co­la, pois re­ti­ra de­las o ca­rá­ter de agres­so­ras — que, de fa­to, são — pa­ra con­fe­rir-lhes o “sta­tus” de par­te le­gí­ti­ma de um con­fli­to so­ci­al. Co­mo se não bas­tas­se, as uni­ver­si­da­des ain­da de­fen­dem que os pró­prios alu­nos se­jam ca­pa­ci­ta­dos em me­di­a­ção de con­fli­tos, fin­gin­do não ver que es­ses con­fli­tos, na mai­o­ria das ve­zes, en­vol­vem dro­gas, fa­cas, es­ti­le­tes, ar­mas de fo­go e pro­pen­são à cha­ci­na, pois mem­bros de gan­gue são ani­mais sel­va­gens: não sa­bem o que é hon­ra se de­lei­tam em mas­sa­crar, em gru­po, a ví­ti­ma in­de­fe­sa.

Pro­fes­sor co­mo sub­ci­da­dão
É na por­ta des­se ti­po de es­co­la que a Se­cre­ta­ria Es­ta­du­al de Edu­ca­ção vai pen­du­rar a pla­ca com a no­ta do Ideb. Co­mo eu dis­se, a me­di­da po­de ser po­si­ti­va, des­de que não se trans­for­me em mais um ins­tru­men­to de tor­tu­ra psi­co­ló­gi­ca con­tra pro­fes­so­res e di­re­to­res e sir­va co­mo um pe­di­do de so­cor­ro da es­co­la, per­mi­tin­do-se a ela que ex­pli­ci­te to­dos os seus pro­ble­mas, co­mo a vi­o­lên­cia, a in­dis­ci­pli­na, a va­di­a­gem dos alu­nos e a tres­lou­ca­da in­clu­são de de­fi­cien­tes men­tais gra­ve en­tre alu­nos nor­mais. Por que Thi­a­go Pei­xo­to, Ro­nal­do Cai­a­do, Lú­cia Vâ­nia, Eduar­do Pa­es e vá­ri­as ou­tras au­to­ri­da­des pe­lo País afo­ra dão as cos­tas pa­ra es­ses pro­ble­mas que os pro­fes­so­res re­la­tam to­dos os di­as e cor­rem pa­ra pôr em prá­ti­ca as idei­as de Gus­ta­vo Ioschpe, sen­do que mui­tos mes­tres da re­de pú­bli­ca têm de ma­gis­té­rio o que Ioschpe tem de vi­da?

A im­por­tân­cia ex­ces­si­va que os po­lí­ti­cos dão ao em­pre­sá­rio e eco­no­mis­ta é uma for­ma in­di­re­ta de des­me­re­ci­men­to do pro­fes­sor. É co­mo se ele va­les­se mais do que to­dos os pro­fes­so­res bra­si­lei­ros jun­tos. Mas os po­lí­ti­cos não são os úni­cos cul­pa­dos por agi­rem as­sim. Foi a uni­ver­si­da­de quem trans­for­mou os pro­fes­so­res do en­si­no bá­si­co em sub­ci­da­dã­os. Ra­ras são as pes­qui­sas aca­dê­mi­cas que ou­vem o pro­fes­sor e, quan­do o fa­zem, é ape­nas pa­ra de­sa­cre­di­tar o que ele diz. Por is­so, Gus­ta­vo Ioschpe con­se­gue pon­ti­fi­car so­bre edu­ca­ção com tan­ta fa­ci­li­da­de, ape­sar de nun­ca ter pos­to os pés nu­ma es­co­la pú­bli­ca, a não ser co­mo ce­le­bri­da­de, nas asas do “Jor­nal Na­ci­o­nal”. Ioschpe é co­lu­nis­ta da gran­de im­pren­sa des­de os 20 anos e lo­go se tor­nou uma es­pé­cie de gu­ru da edu­ca­ção, so­bre­tu­do de­pois do lan­ça­men­to do li­vro “A Ig­no­rân­cia Cus­ta um Mun­do”, em 2004.

Fi­lho de um en­ge­nhei­ro e in­dus­tri­al ga­ú­cho com uma jor­na­lis­ta e so­ci­ó­lo­ga, Gus­ta­vo Ioschpe é her­dei­ro da Iochpe-Ma­xi­on (sem o “s”), em­pre­sa do ra­mo au­to­mo­ti­vo e fer­ro­vi­á­rio, além de do­no da G7, uma pro­du­to­ra de do­cu­men­tá­rios so­bre fu­te­bol. Co­mo se vê, edu­ca­ção pa­ra ele é qua­se um hobby, tal­vez um de­sa­fio cog­ni­ti­vo. Is­so não sig­ni­fi­ca que não es­te­ja cer­to em mui­tas de su­as aná­li­ses, co­mo a de­fe­sa que faz do mé­ri­to na edu­ca­ção e a crí­ti­ca ao cor­po­ra­ti­vis­mo dos sin­di­ca­tos. Er­ra­dos es­tão os que o trans­for­mam em gê­nio sal­va­dor do en­si­no pú­bli­co, ape­nas por­que te­ve a ideia de pen­du­rar o Ideb, fei­to um cho­ca­lho, no pes­co­ço do pro­fes­sor. Ima­gi­nem se um se­cre­tá­rio de Sa­ú­de re­sol­ves­se es­fre­gar na ca­ra dos mé­di­cos um in­di­ca­dor da me­di­ci­na pro­pos­to por um pro­fis­­si­o­nal de ou­tra área. Fi­ca­ria pou­co tem­po no car­go.

Mais ônus so­bre a es­co­la
O prin­ci­pal ob­je­ti­vo de se co­lo­car o Ideb na por­ta das es­co­las é mo­bi­li­zar a co­mu­ni­da­de, so­bre­tu­do os pa­is de alu­nos, pa­ra que co­brem a me­lho­ria da qua­li­da­de de en­si­no. Mas é pou­co pro­vá­vel que is­so acon­te­ça. A ten­dên­cia é que jus­ta­men­te os pa­is ir­res­pon­sá­veis, in­te­res­sa­dos em ter­cei­ri­zar a cri­a­ção de seus pró­prios fi­lhos, mo­no­po­li­zem as co­bran­ças jun­to à di­re­ção da es­co­la. As leis vi­gen­tes, co­me­çan­do pe­la Cons­ti­tu­i­ção de 88 e pas­san­do pe­lo Es­ta­tu­to da Cri­an­ça e do Ado­les­cen­te, fa­ci­li­tam is­so. Elas tan­to fi­ze­ram pa­ra des­tru­ir o pá­trio po­der que mui­tos pa­is já es­tão achan­do boa a ideia de não te­rem que se pre­o­cu­par com os pró­prios fi­lhos. O pró­prio MEC dei­xa cla­ro, no do­cu­men­to so­bre a Pro­va Bra­sil, que a me­lho­ria da no­ta no Ideb é res­pon­sa­bi­li­da­de ex­clu­si­va da es­co­la e ja­mais do alu­no. Sem dú­vi­da, um con­vi­te pa­ra que os pa­is la­vem as mãos e dei­xem o pro­ble­ma nas cos­tas do pro­fes­sor.

Aqui vai um só exem­plo des­sa ten­dên­cia ca­da vez mais cres­cen­te. Em mar­ço des­te ano, um gru­po de pa­is do Rio de Ja­nei­ro foi con­de­na­do a pa­gar uma in­de­ni­za­ção de R$ 18 mil por da­nos mo­ra­is à di­re­to­ra de uma es­co­la — ela ti­nha si­do achin­ca­lha­da por alu­nos no Orkut, com pa­la­vras de bai­xo ca­lão. Em sua de­fe­sa, os pa­is dos alu­nos ale­ga­ram que a di­re­to­ra cons­tran­gia seus fi­lhos e que eles ape­nas que­ri­am “es­tar na mo­da” ao cri­ar o Orkut. Ora, es­se ti­po de pai po­de ser um ali­a­do da es­co­la na lu­ta pe­la me­lho­ria do en­si­no? É ób­vio que não. Um pai res­pon­sá­vel sim­ples­men­te man­da­ria o fi­lho apa­gar o Orkut di­fa­ma­tó­rio e iria pes­so­al­men­te com ele pe­dir des­cul­pas à di­re­to­ra.

Co­mo di­zia Durkheim, to­da so­ci­e­da­de, pa­ra so­bre­vi­ver, ne­ces­si­ta de um mí­ni­mo de con­for­mis­mo ló­gi­co as­so­cia­do a um mí­ni­mo de con­for­mis­mo mo­ral. E é jus­ta­men­te a ló­gi­ca e a mo­ral que es­tão sen­do sis­te­ma­ti­ca­men­te des­tru­í­das pe­las pró­pri­as uni­ver­si­da­des, que de­ve­ri­am ser su­as guar­di­ãs. Is­so se re­fle­te co­ti­dia­na­men­te no en­si­no, in­dis­pon­do fi­lhos con­tra pa­is, alu­nos con­tra mes­tres, e obri­gan­do a es­co­la bá­si­ca a aco­lher e edu­car com efi­cá­cia to­do ti­po de trans­gres­sor, mes­mo o vi­o­len­to. Ca­so se fa­ça um le­van­ta­men­to das tes­es e dis­ser­ta­ções so­bre edu­ca­ção pro­du­zi­das por mes­tres e dou­to­res do País, dá pa­ra cri­ar um ou­tro Ideb: o Ín­di­ce de Des­tru­i­ção da Edu­ca­ção Bá­si­ca. É es­se ín­di­ce que pre­ci­sa ser ex­pos­to — só que na por­ta das uni­ver­si­da­des bra­si­lei­ras.

domingo, agosto 14, 2011

Irlanda, da felicidade aos problemas - Colm Tóibín

Ao contrário do que o editor da revista afirma, a Irlanda não voltou à pobreza. Ela representa um dos mais extraordinários exemplos de desenvolvimento econômico e social, arrancando a si mesma da pobreza por políticas corretas. Recentemente, cometeu uma grande bobagem, devido ao excesso de riqueza, justamente: foi garantir a 100% depósitos bancários, atraiu mais capital do que deveria, e foi prejudicada pela crise dos derivativos americanos. Uma bobagem que não deveria ter feito. Mas ela não voltará à pobreza, e sim terá de administrar o buraco financeiro pelos próximos anos. Tem inteligência suficiente para superar um problema conjuntural, e continua a ter boas políticas em outras áreas.
Paulo Roberto de Almeida

O preço da felicidade, o custo da desgraça
por Colm Tóibín
Revista piauí, agosto 2011

Em texto exclusivo para a piauí, o escritor irlandês narra a trajetória de seu país, da pobreza à prosperidade e de volta à pobreza, em apenas quinze anos

Devia ser o verão de 1965, ou talvez um ano antes, e estávamos na praia na costa leste da Irlanda. Eu tinha 9 ou 10 anos. Minha mãe e meus irmãos provavelmente tinham ido nadar e isso significa que eu estava deitado no tapete escutando a conversa do meu pai com a irmã da minha mãe. A irmã da minha mãe gostava de discutir grandes assuntos como religião e política. Agora ela estava perguntando a meu pai, que era um membro ativo do partido do governo, o Fianna Fáil – que desde 1932 esteve quase sempre no poder – se ele apoiava todas as políticas e decisões de seus correligionários. Meu pai disse que sim, e isso me pareceu certo, pois nunca imaginara que ele pudesse pensar de outro modo. Eu sabia a opinião dele sobre o outro partido – o Fine Gael, principal partido oposicionista – que era a de que você podia cumprimentar seus membros quando cruzava com eles na rua, mas se alguma vez votasse neles sua mão direita gangrenaria e seria amputada.

O pai do meu pai era um nacionalista irlandês e tinha lutado contra os britânicos. Participou da rebelião de 1916, que, mesmo sendo derrotada, tornou-se o início do fim do domínio britânico na Irlanda. Em 1922, quando finalmente se retiraram, os ingleses decidiram dividir a Irlanda, ficando com o norte do país, que tinha uma população protestante maior e não queria se separar da Grã-Bretanha. E homens como meu avô eram totalmente contrários a esse arranjo. Meu avô e seus amigos queriam tudo ou nada, uma república formada por toda a ilha; os da outra facção, até ali seus camaradas na luta contra o domínio britânico, queriam aceitar a proposta britânica de uma Irlanda dividida. As duas facções, incluindo irmãos, travaram uma feroz guerra civil. Noventa anos depois, os dois principais partidos – Fianna Fáil e Fine Gael – descendem dessa guerra.

A política de ambos os lados era nacionalista, anti-imperialista e não propriamente de esquerda. O ideário não ia além da vaga noção de uma Irlanda autossuficiente. A guerra que travaram não foi uma guerra de classes. Assim, enquanto alguns ingleses partiram e perderam suas propriedades, a burguesia irlandesa não foi afetada pela independência. Os proprietários rurais mantiveram suas terras; os lojistas, suas lojas; os banqueiros, seus bancos. E a revolução irlandesa foi também comandada principalmente por católicos. O fim da guerra civil viu crescer, ao sul da fronteira, um Estado católico insular profundamente conservador e, ao norte, numa imagem especular, um estado protestante insular profundamente conservador. O partido do meu avô, Fianna Fáil, do qual meu tio também era membro, e no qual meu pai logo ingressaria, tomou o poder no sul em 1932; tornou-se ainda mais conservador e mais católico do que o outro partido, Fine Gael. O Partido Trabalhista continuou pequeno, sempre a terceira força; o movimento sindical também era conservador, e quase não tinha influência.

O problema para o novo Estado irlandês era como proporcionar trabalho à população. Os melhores empregos eram no funcionalismo público. Quase não havia indústria; a Irlanda era ainda um país basicamente agrícola. Dos anos 20 em diante muitos jovens emigraram para a Grã-Bretanha e Estados Unidos em busca de trabalho. Em 1939 Seán Lemass, que se tornaria primeiro-ministro vinte anos mais tarde, disse que os problemas econômicos da Irlanda tinham “criado uma situação em que o desaparecimento da raça era uma possibilidade que não podia ser ignorada”. O isolamento do país se acentuou ainda mais por causa da posição de neutralidade que assumiu durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, enquanto a Europa era reconstruída com dinheiro do Plano Marshall, a Irlanda ficou, assim como a Espanha e Portugal, à margem da nova prosperidade.
Era, nos anos 50, um lugar atrasado, do qual era um alívio, quase um prazer, emigrar. Quatro em cada cinco crianças nascidas na Irlanda entre 1931 e 1941 emigraram. No final daquela década estava claro que era preciso fazer algo para modernizar o país. Em 1958 foi publicado o Primeiro Programa para a Expansão Econômica. A Irlanda tinha sido admitida no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional em 1957. A partir de 1958, o país se abriu para o investimento estrangeiro e para o capital externo, predominantemente americano.

A década de 60 foi, então, um tempo de mudanças na Irlanda. Não apenas o pensamento econômico se liberalizou, como também a influência da Igreja começou a declinar, sob pressão, por exemplo, do movimento feminista. O avanço da televisão e a suspensão da draconiana censura a livros contribuíram para a mudança. A Irlanda do Norte também começou a mudar com o avanço do movimento pelos direitos civis, que exigia maior igualdade para os católicos. Isso levou no norte à ascensão do IRA, que estava disposto a matar e mutilar pelo fim da divisão do país e pela derrubada do domínio britânico na região.

Meu pai morreu em 1967. Tinha apoiado integralmente a abertura da economia irlandesa, e eu muitas vezes me perguntei como ele teria reagido diante da violência na Irlanda do Norte. Homens da sua geração insistiam que queriam um único Estado na ilha, mas o que eles realmente queriam era estabilidade e progresso econômico ao sul da fronteira (a Irlanda foi declarada uma república em 1949). Assim, quando começou a década de 70, o sul decidiu ignorar a violência no norte e passou a olhar para fora. Queria ingressar na Comunidade Econômica Europeia ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha. Depois de prolongadas negociações e de uma vitória esmagadora num referendo, a República da Irlanda entrou na CEE, como era então chamada, em 1973.

Foi aí que começou a verdadeira mudança. Os gastos públicos aumentaram em todas as áreas. A frequência escolar triplicou. A proibição da venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional em 1973. O número de mulheres a integrar a força de trabalho duplicou em uma década. Com dinheiro europeu, novas estradas foram construídas, dando lugar a uma infraestrutura mais moderna.

Mas algumas coisas não mudaram. O político para o qual meu pai trabalhava em épocas de eleição tinha lutado na rebelião de 1916 e ainda era membro do Parlamento em 1969. Seu filho se tornou senador. Seu neto é, no momento, membro do Parlamento Europeu. Na Irlanda hoje, em 2011, o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o líder da oposição, que se tornará o próximo primeiro-ministro, são todos filhos de políticos. Não tiveram que fazer quase nada, ou sequer pensar muito, antes de entrar na política. Era como se tivessem herdado dos pais os assentos no Parlamento e a filosofia política. Em outras áreas, como a carreira médica, a carreira jurídica ou a financeira, pouco mudou. Todos vêm de famílias da alta burguesia, estudaram em escolas de elite e nutrem o sentimento de que o poder lhes é devido, e isso nenhuma transformação social ou econômica parece abalar. Ao mesmo tempo em que a Irlanda mudava e cresciam as oportunidades, o país continuava curiosamente estagnado em termos sociais, e curiosamente conservador em termos políticos, com os dois partidos da guerra civil, ambos conservadores e convencionais, garantindo a estabilidade.

Era um pouco estranho viver aqui, um lugar que não teve Renascença, que quase não teve Reforma, nem Iluminismo, nem Revolução Industrial. Somente uma história de violência, pobreza e emigração. Um lugar governado até 1922 pelo Império Britânico, seguido de quatro décadas de estagnação cultural e econômica antes da integração ao império europeu, por assim dizer, em 1973. E, no entanto, havia também um surpreendente fascínio em torno da Irlanda, em especial de Dublin, onde o mundo da escrita – o poema, o romance, a peça de teatro, o artigo de jornal – era tratado com uma espécie de reverência e seriedade que só se encontra em sociedades nas quais faltam muitas outras coisas. Isso foi algo de que o governo se deu conta no final dos anos 60, compreendendo que a imagem da Irlanda era criada por escritores e cantores, e que essa imagem era tão importante quanto as políticas econômicas da Irlanda para atrair investimento estrangeiro. Subitamente, Yeats, Joyce e Beckett ficaram na moda, e a política governamental com relação à cultura se tornou esclarecida.

Foi Margaret Thatcher quem percebeu que, na verdade, a República da Irlanda não cobiçava territórios na Irlanda do Norte. Queríamos estabilidade ali, e o fim da violência, mais ainda do que queriam os britânicos. Então, a partir de 1985, e da assinatura do Acordo Anglo-Irlandês, os governos britânico e irlandês trabalharam juntos, e esse trabalho levou, uma década depois, ao fim da campanha do IRA no norte.

Nesse ínterim, a República da Irlanda se tornou uma economia aberta, dependendo cada vez menos da agricultura e cada vez mais do investimento estrangeiro. As multinacionais estavam satisfeitas conosco: nosso movimento sindical não era combativo; tínhamos uma mão de obra escolarizada e flexível; falávamos inglês; éramos membros da União Europeia; e nossa taxação sobre os seus lucros era mais baixa que a de qualquer outro país da UE.

Em 1984 comprei uma casa em Dublin. Foi difícil. Embora eu tivesse um emprego seguro, nenhum banco, em princípio, quis me dar um empréstimo. Notei o quanto os gerentes eram cautelosos, como se mostravam desconfiados diante de qualquer coisa fora do normal. A casa ficava numa área da cidade que na época não era considerada boa, e isso os deixava intrigados a meu respeito. Finalmente consegui o empréstimo. Os juros eram altos. Em dois anos o valor da casa tinha caído 20%. E então os preços começaram a subir, mas os gerentes de banco continuaram no caminho da prudência. Em 1997 quando decidi me mudar de novo, tive um bocado de dificuldade para conseguir um segundo empréstimo, embora tivesse quase terminado de pagar o primeiro.

No início do novo século, porém, com os preços das casas subindo por toda a Irlanda, descobri que os bancos irlandeses estavam jogando dinheiro na mão da gente. Os velhos gerentes tinham se aposentado; agora havia uma geração nova e impetuosa. Para meu espanto, consegui sem dificuldade um empréstimo para comprar uma casa na frente da praia. Quase não me fizeram perguntas. E houve ainda uma sugestão para que eu pegasse mais dinheiro emprestado para investir em novas propriedades; por pura preguiça não aceitei essa oferta.

A essa altura, a Irlanda estava integrada ao euro, introduzido em janeiro de 2002. Pelo fato de a moeda ser efetivamente controlada pela Alemanha, as taxas de juros estavam e permaneceriam baixas, assim como os índices de inflação. Fazer parte do euro me deixava orgulhoso. Me lembro que estava em Ibiza com amigos escoceses em 1º de janeiro de 2002 e usei meu cartão naquela manhã para sacar cédulas novinhas e me gabar de que a Irlanda, como membro do euro, era mais europeia que a Grã-Bretanha.

Se a gente não parasse para pensar, o euro parecia uma boa ideia. Oferecia estabilidade, e isso significava que a Europa poderia competir com os Estados Unidos, que o euro poderia se tornar uma moeda internacional mais poderosa que o dólar. Contribuía para o sentimento de que a Europa era agora um lugar sem barreiras, onde era possível ir de carro de Portugal até o leste da Alemanha e depois descer para a Itália sem trocar dinheiro e sem ser parado pela polícia em nenhuma fronteira.

O problema era que o euro era regulado pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, mas cada Estado tinha sua própria política econômica, suas próprias forças e fraquezas. Ficou claro desde o começo que alguns países no sistema do euro – Alemanha, França, Holanda – tinham economias muito mais fortes do que outros – Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia. Esperava-se que a regulação e a prosperidade crescente criassem aos poucos uma Europa mais equilibrada, e que o euro acelerasse esse processo.

No início, operaram-se maravilhas na Irlanda, com a ajuda de um aumento da atividade multinacional norte-americana. Atingimos pleno emprego. A todo momento eu via estatísticas demonstrando que a Irlanda tinha se tornado um país de sucesso, uma lição para o resto do mundo. Políticos, incluindo alguns dos maiores idiotas que a Irlanda já produziu, competiam entre si reivindicando o crédito pelo que ficaria conhecido como o Tigre Celta.

E naqueles mesmos anos outras mudanças estavam ocorrendo. Em 1988, a Corte Europeia de Direitos Humanos ordenou que o governo irlandês mudasse a lei contra o homossexualismo. Nos anos 90, a proibição do divórcio também foi retirada da Constituição. (A proibição do aborto, inserida nos anos 80, permaneceu.) E também teve início algo inimaginável. O Estado enfrentou a Igreja, que até então era todo-poderosa, sentindo-se acima da lei. Padres foram acusados, condenados e presos por abuso sexual de menores. No começo do novo século, apareceram muitos relatórios oficiais provando que o abuso e a violência selvagem cometidos por padres e membros das ordens religiosas contra aqueles sob sua guarda – frequentemente órfãos ou crianças pobres – tinham sido sistemáticos e encobertos com cuidado pelas autoridades eclesiásticas. As pessoas estavam furiosas com a Igreja. De repente, o poder da Igreja Católica na Irlanda virou coisa do passado.

Assim, à medida que a primeira década do século XXI avançava, as pessoas começaram a se perguntar se essa onda de prosperidade e secularização transformaria a Irlanda e afetaria, por exemplo, a literatura irlandesa, se nos faria produzir um tipo diferente de romance ou poema ou peça de teatro, se tornaria mais leve o nosso tom, ou mais comerciais as nossas obras. Já que tudo tinha se tornado comercial, por que não a cultura também?

Seria possível que a Irlanda fosse tão frágil que a chegada da prosperidade pudesse mudar fundamentalmente a sua cultura? Naqueles anos, eu fiquei à espreita dessa possibilidade. Vi como os novos-ricos se tornaram extravagantes e vulgares, e como o consumo ostensivo parecia adicionar uma aura de histeria à atmosfera do país. Mas isso era só na superfície, entre os poucos que podiam se dar ao luxo de ter helicópteros particulares ou motoristas. Para o resto do país, o dinheiro trouxe prazer e um certo conforto. Notei, ao viajar com frequência aos Estados Unidos, que os aviões estavam todos lotados, não de turistas americanos, nem de empresários irlandeses, mas de consumidores irlandeses com o bolso cheio de cartões de crédito na viagem de ida e sacolas cheias de compras reluzentes na viagem de volta. A maioria era gente irlandesa comum e notei o quanto eles se divertiam, como imediatamente, a exemplo dos imigrantes do passado, eles encontravam em Nova York um bar, um restaurante ou um hotelzinho, geralmente administrado por irlandeses, onde se sentiam à vontade.

Em casamentos e enterros, eu prestava atenção para ver se notava alguma diferença. As festas de casamento eram maiores, gastava-se mais, e a vida era melhor porque a maioria dos convidados morava na Irlanda, e não tinha que viajar da América ou da Grã-Bretanha ou da Austrália para estar presente. Mas os homens se encostavam no balcão do bar do mesmo jeito de sempre; a música continuava péssima, e os chapéus que algumas mulheres usavam talvez fossem mais caros, mas revelavam o mesmo mau gosto de sempre. As pessoas ficavam bêbadas do mesmo jeito. Isso ao menos não tinha mudado, ainda que agora bebessem mais vinho e menos Guinness.

Algumas das mudanças vinham de longa data. Desde o final dos anos 60, a frequência das missas semanais vinha caindo; continuou a cair. Desde o final da década de 60, os supermercados tinham mais produtos estrangeiros – mais massa, patês, azeite de oliva – e a dieta irlandesa continuava a se aproximar da dieta da França ou da Espanha. Nos enterros, especialmente na cidadezinha onde nasci e cresci, não parecia ter havido mudança alguma; as pessoas se comportavam nas pequenas comunidades exatamente da mesma maneira, com a mesma reverência pelo corpo, o mesmo zelo pelos parentes e amigos, a mesma seriedade diante da morte.

E ainda que as oportunidades de ganhar muito dinheiro aumentassem, a ideia de se tornar escritor, ator ou músico ainda merecia profundo respeito. Em 2006 fui indicado pelo governo para o Conselho das Artes e examinei todos os pedidos de subvenção. Era como se nada tivesse acontecido. Pequenas companhias teatrais ainda estavam sendo criadas, trabalhando não por dinheiro, nem sequer pela fama. Jovens músicos, tanto na música tradicional irlandesa quanto na clássica, continuavam a surgir. E o mais estranho, talvez, foi que a geração que chegou à idade adulta com essa nova prosperidade produziu um bom número de jovens escritores – Claire Keegan, Paul Murray, Kevin Barry, Clare Kilroy, Christian O’Reilly – que exploravam os mesmos temas de Joyce ou Beckett, Edna O’Brien e John Banville. Escreviam sobre famílias irlandesas e infância irlandesa, a escuridão e o isolamento da Irlanda. Usavam um idioma que haviam herdado; e escreviam principalmente para o seu próprio país e eram lidos avidamente.

Eu me perguntava então se o dinheiro que veio nos anos 90 e durou por uns quinze anos não teria servido apenas para tornar as pessoas mais felizes, dando a elas um pouco mais de segurança. Parecia que a prosperidade que chegou à Irlanda significava que pais e avós podiam ficar tranquilos sabendo que a nova geração permaneceria no país, encontraria trabalho, criaria raízes, e isso os deixava felizes. Além disso, neste país do norte com seus longos invernos e chuvosos verões, todos adoram viajar para o sul, e naqueles anos, nas manhãs de sábado, havia uma felicidade palpável no aeroporto, de onde famílias inteiras partiam para a Grécia, Portugal ou Espanha. Às vezes, porém, era tudo excessivo: os novos restaurantes, de preços abusivos e comida não muito boa, ficavam lotados todas as noites; as pessoas pareciam sentir prazer em atingir o limite de seus cartões de crédito; o preço das casas tornou-se tópico de intermináveis discussões; os irlandeses compravam apartamentos na Espanha e em Portugal sem se preocupar em aprender uma palavra da língua local.

Mas uma coisa fundamental não mudou. Entrando em qualquer bar de Dublin, via-se que continuavam as conversas e risadas, a sensação quase de performance, o modo caloroso e divertido como as pessoas se relacionavam umas com as outras – um clima muito diferente do comportamento frio num bar de Londres ou de Paris. Observando turistas irlandeses num aeroporto nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, via-se nos seus rostos uma profunda desconfiança em relação às autoridades constituídas, uma espécie de retraimento, uma falta de segurança. A música que se ouvia naqueles anos, os poemas e romances escritos, as peças encenadas, tudo isso era feito com a mesma sensação de que a palavra era importante. Também na Irlanda daqueles anos o esporte permaneceu no centro das coisas, incluindo os dois esportes nacionais amadores: o hurling[1] e o futebol gaélico. Era possível assistir a uma partida, mesmo em Dublin, e ter a impressão de ter voltado aos anos 50.

Em outras palavras, o dinheiro era só dinheiro, e ao mesmo tempo em que as pessoas gastavam muito, e viviam sem prudência, elas também usufruíam dessa prosperidade, da segurança que ela trazia, das viagens ao exterior, das reuniões familiares, das roupas vistosas, das refeições em restaurantes, das casas de férias, do sentimento vertiginoso de que a vida nunca tinha sido melhor. Mas quem examinasse com cuidado aqueles anos descobriria facilmente que a nova riqueza na Irlanda era quase ilusória e não duraria.

Em 2006 fui convidado a debater essa relação entre o milagre econômico irlandês e a cultura irlandesa num simpósio nos Estados Unidos. Decidi observar primeiro a anatomia do milagre econômico, e algumas coisas que descobri me chocaram. Eis o que escrevi na época: “Um grande volume de atividade econômica na Irlanda está concentrado não no comércio ou na consolidação da produção, mas na construção civil. A Irlanda é, de acordo com o Bank of Ireland, a segunda nação mais rica do mundo, atrás do Japão. E, observa o banco, um aspecto crucial dessa riqueza é que é riqueza de primeira geração, criada nos últimos dez anos. Se analisarmos a riqueza da Irlanda, veremos que não é como a riqueza em outros lugares. Os irlandeses estão gastando e tomando empréstimos à vontade, mas não investem em áreas como pesquisa e desenvolvimento, que criariam mais prosperidade no futuro, mas em imóveis, que dependem dos preços do mercado imobiliário para manter seu valor.”

Os irlandeses estavam viajando muito, mas poucos iam para a Alemanha, e pouquíssimos chegaram a compreender que a Alemanha tinha mudado, e que essa mudança seria prejudicial para o futuro da Irlanda quando a economia irlandesa entrasse em dificuldades. Os alemães do Leste ingressaram na UE ao mesmo tempo em que se integraram à Alemanha Ocidental. Diferentemente dos húngaros, digamos, ou dos tchecos, entraram na UE sem pensar duas vezes. Concentraram-se unicamente nos benefícios que a reunificação traria para eles. A Alemanha, por sua vez, concentrou-se em fazer a reunificação funcionar. De uma hora para outra, a Alemanha Ocidental ganhou uma nova população, em boa parte qualificada, e isso significava que os salários baixariam ou ficariam estáveis. O governo alemão tomou o cuidado de não superaquecer a economia; os impostos continuaram elevados. Os bancos alemães, apesar das baixas taxas de juros, não franquearam seus cofres aos investidores alemães. Eles emprestaram a outros bancos.

Naqueles anos, por todo o continente, a outrora poderosa ideia de que a Europa era uma cultura única e deveria se tornar cada vez mais uma economia única estava murchando. Acreditava-se que a diluição da soberania nacional tinha ocorrido rápido demais, sem debate suficiente. Havia uma visão de que a Europa era um superestado, mas não uma democracia, que sua burocracia de salários excessivos não prestava contas a ninguém, e que cada Estado nacional tinha direitos e tradições que mereciam ser protegidos. Na Alemanha, disseminou-se a opinião de que não era mais tarefa dos países ricos ajudar os países pobres.


Em 2008, quando o governo americano permitiu que o banco de investimentos Lehman Brothers falisse, o Banco Central Europeu decidiu que isso não aconteceria com os seus bancos. Os riscos eram grandes demais. Na Irlanda, um banco em especial – o Anglo Irish Bank – vinha crescendo muito, especialmente na área de crédito imobiliário. E devido à frouxa regulamentação na Irlanda e, ao que parece, a uma regulamentação quase inexistente por parte da UE, o Anglo Irish estava arriscando demais. Não obstante, os seus diretores eram tratados como príncipes num país sem realeza. Escrevia-se sobre eles como se fossem lordes. Dizia-se que eram eles que tinham a capacidade de levar a Irlanda para o futuro, onde se veria livre da pobreza e da emigração, livre de seu passado de colônia.

Assim, quando os banqueiros procuraram o governo em setembro de 2008 para dizer que precisavam desesperadamente de ajuda estatal, o governo tinha dois motivos para ouvi-los. Primeiro, o Banco Central Europeu tinha deixado claro que nenhum banco deveria falir, e os políticos irlandeses não tinham experiência alguma em finanças internacionais ou interesse algum em desafiar uma organização tão venerável, sediada na Alemanha. Segundo, os políticos gostavam dos banqueiros e os admiravam, e não desconfiaram que as cifras que lhes eram apresentadas estavam completamente erradas. Não sabiam que, se o Estado irlandês salvasse do naufrágio os seus bancos, os custos representariam o dobro da receita anual com impostos. E inocentemente se dispuseram a garantir os bancos.

Nesse ínterim, a bolha imobiliária tinha estourado. A receita governamental em 2009 foi de 35 bilhões, enquanto os gastos foram de 55 bilhões. A Irlanda precisaria pedir dinheiro emprestado em 2010 e nos três ou quatro anos seguintes. O país estava vulnerável porque o custo de salvar os bancos era inimaginável; os políticos pareciam temer divulgar a cifra e os banqueiros obviamente também não a revelavam. (Os banqueiros agora tinham caído em desgraça. Segundo consta, nem em partida de golfe alguém queria ser visto ao lado deles.)

Num ataque especulativo ao euro, a Irlanda era o elo mais fraco. A Grécia já tinha sido salva do naufrágio, para grande consternação do contribuinte alemão. E logo, parecia, tanto a Espanha como Portugal iriam precisar de ajuda. Os bancos irlandeses estavam sobrevivendo com dinheiro do Banco Central Europeu; a Comissão Europeia também tinha um fundo para ajudar países necessitados, mas isso traria consigo o Fundo Monetário Internacional, como ocorrera na Grécia, e a ajuda só seria fornecida sob as mais severas condições. A chegada da Comissão e do FMI significaria que a Irlanda, poucos anos antes um dos países mais ricos do mundo, era agora uma economia moribunda.

Os políticos continuavam a se comportar como se fossem competentes. Estavam dia e noite no rádio e na televisão, exalando controle e uma estranha certeza de que ainda tinham legitimidade para comandar. Lentamente, a população despertou para o que estava acontecendo. A ira contra o Fianna Fáil, o partido de meu pai e meu avô, não é corriqueira. Quando a eleição vier, o partido será dizimado. Porque representavam, desde os anos 60, tanto o patriotismo como o pragmatismo, e porque fracassaram em ambos os campos. Eles se tornaram alvo fácil depois de cederem a soberania da Irlanda ao FMI, uma soberania pela qual lutaram os nossos antepassados.

Enquanto isso, a emigração recomeçou, e os jovens estão se mudando para a Grã-Bretanha, a Austrália e o Canadá. Estamos perdendo mais uma geração. Mas estamos também perplexos, com um misto de choque e vergonha. Como pudemos acreditar que um pequeno país como a Irlanda, com uma história de pobreza e fracasso, pudesse ser rico e permanecer rico? Por que compramos casas que custavam tão caro e agora valem tão pouco? Como confiamos que a Europa viria nos salvar, sem pensar que viria também nos punir por nossa insensatez? Como confiamos no Fianna Fáil, cujos ministros não sabem coisa alguma de economia, e entraram na política só por causa de suas famílias?

As noites escuras do inverno serão um bom momento para romancistas, dramaturgos e poetas. É fácil deixar a televisão e o rádio desligados. Já ouvimos o bastante; conhecemos as más notícias. No início dos anos 1890, quando a Irlanda também estava de
joelhos, e os padres e políticos também tinham feito o que há de pior, o poeta W. B. Yeats viu o futuro da Irlanda como cera mole, um lugar que podia ser moldado, no qual a vida da imaginação poderia vir a assumir o primeiro plano. Talvez isso seja possível de novo, talvez nossos romances, peças e poemas passem a importar mais, já que não há nada aqui, exceto preocupação, desespero e riso soturno. Essa abertura para a imaginação poderia parecer, em momentos de devaneio, uma coisa boa. Mas é um alto preço a pagar pelo que foi feito ao nosso país, ou pelo que o país fez a si mesmo. Embora o estrago, ao que me parece, esteja na superfície, e afetará apenas o nosso orgulho e o nosso bolso; o espírito das coisas aqui continua o mesmo, a cultura da Irlanda não mudou nos anos do boom e não mudará agora que temos diante de nós uma década de relativa pobreza.

[1] Hurling: literalmente, arremesso. Jogo tradicional irlandês semelhante ao hóquei (N.T.).

Manoel Bonfim: America Latina, males de origem

Eis o quadro que Manoel Bomfim (1868-1932) pinta dos primórdios desse nosso país "com tradição de liberdade":
"A AMÉRICA LATINA: Males de Origem", 1905, Manoel Bonfim

"Como se fez a colonização? As terras são distribuídas discricionariamente, ou delas se apossam os colonos ávidos, aos quais a metrópole doa os índios, e, depois, vende negros, para que produzam muito açúcar e muito ouro, fonte dos tributos cobiçados. Ao mesmo tempo, para garantir a cobrança desses tributos e tornar efetivos os seus privilégios, os governos da metrópole mandam para cá representantes, espalham por toda a colônia uma rede de agentes, opressores e vorazes, impostos como os diretores da vida pública; e, desde logo, é defeso às novas sociedades o organizarem-se espontaneamente, segundo os seus interesses e inclinações. Mas, como a metrópole não tem outros intentos senão cobrar os tributos e impedir que as colônias possam furtar-se a não nos pagar - como este é o seu único programa, o governo da coroa deixa ao colono toda a plenitude de ação para o mal; ele é livre de fazer o que quiser, contanto que pague e não pense em modificar o regime social e político. Assim, cada colono, sem freios aos instintos egoísticos, organizou o seu domínio em feudo. São caricaturas de senhores medievais - um feudalismo vilão, sobre uma vassalagem de negros escravos. Nos interstícios dos feudos, uma população que, de ignorante e embrutecida, voltou à condição do selvagem primitivo.

O Estado tem por função, apenas, cobrar e coagir e punir aqueles que se neguem a pagar ao governo centralizador, absolutista, monopolizador. A justiça aparece para condenar os que se rebelam contra o Estado ou contra os parasitas criados e patrocinados por ele (Historiando a revolta de Campos dos Goitacazes, escreve um cronista: 'Impunham os vereadores, criaturas dos donatários, multas pecuniárias e penas de prisão aos moradores por divertimentos e atos inocentes da vida'), Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: 'Se a guerra é antes um sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um princípios'. Esse instinto é o parasitismo, e na colônia é que ele se tornou, por uma vez, o inspirador único de todas as justiças.

Fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem garantias, nem escolas, nem obras de interesse público... nada que represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos.

O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição, com que desde o primeiro momento se apresenta ele às novas sociedades, tem uma influência decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades: o Estado é o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança... Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico - tirânico e espoliador. (....) As autoridades não têm nenhuma afinidade com as populações naturais, são-lhes inimigas, se bem que as conheçam mal; não se cuida nem de privar com os povos, nem de estudar suas tendências e necessidades. 'Os funcionários vinham sempre da metrópole. Evitava-se com muito cuidado admitir em empregos até os próprios descendentes de europeus, nascidos na América... e foi assim que se gerou entre os povos das colônias e das metrópoles essa rivalidade, que em breve se converteu em profunda aversão'. Os representantes do Estado são em rigor os caixeiros da coroa, na gerência das fazendas de ultramar. Aqui e ali, as novas populações, ressuscitando das tradições democratas das cúrias e municípios ibéricos, ensaiavam um regime comunal - câmaras municipais e ajuntamentos; mas esta vida política autônoma é, geralmente, perturbada, entravada, abafada, pelo poder absorvente, centralizador, sem contraste, dos agentes da metrópole. Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa - empobrecê-las, e um pensamento exclusivo - obstar que elas progredissem e pudessem, um dia, organizar-se livremente, como nações emancipadas. Não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes; não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto - era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia. Estava, de antemão, condenado a ser destruído sem reserva, pois se achava em oposição aos interesses reais das novas populações, e não podia servir nem mesmo como ponto de partida para uma organização política definitiva. Fora melhor, sem dúvida, que vingasse o primeiro sistema da coroa de Portugal - entregar, desde o início, as colônias a si mesmas - pagando-se-lhe, embora, os adorados tributos. Esses povos que se viessem formando achariam, sem dúvida, uma forma de organização social mais de acordo com as suas necessidades; o instinto de conservação os levaria a constituírem-se de modo conveniente. Estimulados pelos interesses próprios, seguindo as tendências naturais e as novas condições de meio, as nacionalidades nascentes teriam entrado, desde o primeiro momento, no caminho da organização social e política definitiva.
* * * *
"(...) No dia da independência, as novas nacionalidades se acharam sem indústria, sem comércio nacional, sem capitais, sem riqueza, sem gente educada no trabalho livre, sem conhecimento do mundo.

Sob o ponto de vista econômico, estas sociedades compreendiam três categorias de gentes, nitidamente distintas: um mundo de escravos, degradados, que só conheciam da vida o açoite e o tronco; um mundo de ignorantes, vivendo do trabalho dos escravos; e, finalmente, uma população de miseráveis, que germinou entre uma e outra, vivendo sem necessidades, como o selvagem primitivo, ignorante como ele, imprevidente, descuidosa, apática, nula - era a massa popular. O calor brando de um céu benigno, a feracidade dos rios e das selvas garantiam-lhe a existência. - E queriam que ela se fosse meter nos eitos, pedir para trabalhar e engordar os senhores, pelo preço de uma medida de farinha e uma libra de carne!... Condenam-no, porque ele - o trabalhador nacional - não ia disputar a escravidão ao escravo!... Em verdade, essa massa popular não trabalhava, e ainda hoje trabalha mal. Não trabalhava, então, porque não sabia trabalhar para si, e porque - é natural e humano - não queria, nem tinha necessidades de ir fazer-se escrava. Quando todo o trabalho nacional era feito por negros e índios cativos, quando era possível haver escravo para tudo, não havia lugar para o trabalhador livre, a menos que ele não quisesse trabalhar nas mesmas condições e pelo mesmo preço que o escravo - um salário tão insignificante quanto o custo da alimentação do negro, e a mesma obediência ao senhor. Quando não, este ia ao mercado e trazia o negro. O trabalhador livre ficava de lado. Foi assim que, de geração em geração, ele foi arredado do trabalho assalariado.

O regime parasitário impunha a escravidão. E porque o regime colonial era o do puro parasitismo, foi imposta às novas sociedades uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios, um regime retardatário, opressivo, corrupto e extenuante. Ao mesmo tempo, condenavam-se as colônias a ser o campo de exploração de um mundo de intermediários, que vinham e iam numa corrente contínua, drenando para a metrópole toda a riqueza aqui produzida. Eis a razão por que, exânime, embrutecida, a América do Sul se achou, na hora da independência, como um mundo onde tudo estava por fazer: eram uns vinte milhões de homens, desunidos, assanhados, pobres, espalhados por estas vastidões, tendo notícia de que existe civilização, padecendo todos os desejos de possuí-la, mas carecendo refazer toda a vida social, política e intelectual, a começar pela educação do trabalho e pela instrução do abc.
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(...) Nos campos, as gentes não se fundem, continuam distintas as três classes - o senhor, o escravo, e a mestiçagem livre; mas, pelo menos ali, elas se afeiçoam à terra, se nacionalizam. Nas cidades, não. À proporção que se passam os anos, e que vai surgindo essa nova população - nativa, desejosa de viver e pronta a disputar à grande massa de adventícios um lugar na vida, à proporção que ela vai engrossando e reclamando o que lhe é de direito, mais estrangeiros, mais hostis e tirânicos se vão tornando os representantes das metrópoles, unidos num sentimento único, funcionários e intermediários. Breve é a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus direitos, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as posições - e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem, miseráveis, desabrigadas de odo o conforto, ignorantes e pobres, em em todo caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram, aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas. Querem viver, querem as posições, não se conformam à única situação que lhes é oferecida - ir disputar, no eito ou na cozinha, o salário do escravo. 'Vão trabalhar', dizia o reinol do íntimo das suas banhas, no canto do balcão onde ele passou a vida sentado, a ver entrar e sair a freguesia, inativo e improdutivo como um franciscano, - 'Vão trabalhar como eu', repete ele aos naturais, que reclamam entrada na vida, como se houvesse uma brecha por onde estranhos pudessem penetrar o reduto em que eles fecharam a vida econômica e política das colônias, como se fosse possível trabalhar entre escravos, a não ser com os queixos para devorar o que estes hajam produzido!...

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Lutas contínuas, trabalho escravo, estado tirânico e espoliador - qual seria o efeito de tudo isto sobre o caráter das novas nacionalidades? Perversão do senso moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos.

Neste sistema de colonização tinham achado as metrópoles o ideal de vida política e econômica; manter as colônias sob o mesmo regime era a garantia da subsistência. Todos - Estado e Igreja, nobres e mercadores, senhores e tropas - todos se mantinham solidários, absolutamente unificados; quando um desmoronasse, os outros viriam abaixo com certeza. Ora, pelo resto do mundo, a ciência e a filosofia vinham despertando as consciências; os privilégios e as injustiças sentiam-se ameaçadas; então, redobraram-se os expedientes para embrutecer e degradas definitivamente as gentes das colônias, de forma a tornar para sempre impossível a redenção intelectual e moral destes povos. Os processos de cultura da ignorância e de seleção às avessas, empregados pelos jesuítas e pela Inquisição, na metrópole, foram transportados para as colônias. A Espanha chegou a proibir, mais de uma vez, a venda de livros aos súditos da América; nos momentos de crise, só o fato de saber ler e escrever era motivo de suspeição. Não se trata de um programa, reacionário embora, despótico, mas inteligentemente elaborado e conscientemente aplicado; não, eram medidas parciais, detalhes de opressão, vexames sucessivos, à medida que se fazia preciso defender este ou aquele privilégio, manter esta ou aquela iniqüidade, garantir este ou aquele parasita. Disparatadas na aparência, essas resoluções tinham, porém, uma certa unidade de efeitos - a oposição ao progresso. Era uma reação instintiva - o instinto cego e feroz da própria conservação, que unificava, numa política de imobilismo irredutível, estes atos incoerentes de forma, estúpidos, quase inconscientes."
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Sobre Manoel Bonfim, no artigo http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_priori.htm, destaco o seguinte:
"Embora bebesse nas fontes do marxismo, Bomfim não era um revolucionário strictu sensu, que dedicava a vida à luta contra a burguesia. Ele era um democrata. E buscou no marxismo não um guia de ação revolucionária, mas um “método de interpretação da realidade social, ao qual acrescentou um profundo e constante amor pelo Brasil e por sua gente” (AGUIAR, 2000, p. 41)."