segunda-feira, janeiro 09, 2006

28) Desafios do Brasil para virar líder


Transcrevo artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 2006, p. B-6.

País amplia presença nas negociações comerciais, mas ainda tem de resolver distorções internas
Jean-Pierre Lehmann

Se ser temido é uma medida de sucesso, o Brasil é altamente bem-sucedido na arena do comércio internacional. Celso Amorim, de fala macia, aparência intelectual e físico um tanto diminuto, tem sido, desde o encontro ministerial de setembro de 2003 em Cancún, uma figura dominante na Organização Mundial do Comércio.
A celebração do Brasil é justificada? O Brasil conquistou, em Cancún e Hong Kong, o equivalente da Copa do Mundo no comércio global? A resposta é, como ocorre com freqüência, "sim" e "não".

O Brasil, ao embarcar na segunda metade da primeira década do século 21, parece ter dois desafios a considerar: o desafio que vem do Brasil e o desafio que se apresenta ao Brasil.

O DESAFIO QUE VEM DO BRASIL

O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, que antecedeu a OMC) era dominado pelo quarteto Canadá, União Européia (UE), Japão e EUA. O predomínio talvez tenha sido exagerado, mas a agenda provavelmente não teria avançado sem cooperação entre as quatro principais potências comerciais. Isso é particularmente verdadeiro se lembrarmos que a maioria das disputas comerciais era entre os quatro, em especial entre os EUA - e, em menor grau, a UE - e o Japão, ao longo dos anos 70 e 80.

No fim da guerra fria e no início dos anos 90 já estava claro que o quarteto falhava na governança econômica global, mais preocupado em preservar suas vantagens do que em construir um mercado global dinâmico e inclusivo. Como as potências "líderes" não estão em posição de liderar, uma paralisia se instalou. Isso foi reforçado pela incapacidade dos países ricos de promover as reformas necessárias. Por exemplo: um fato freqüentemente ignorado no debate sobre a agricultura é o de que os primeiros beneficiados por uma reforma séria da Política Agrícola Comum (PAC), pelo fim dos custosos subsídios e pela abertura do mercado agrícola seriam os europeus. Com os sistemas de aposentadoria, saúde e educação em situação precária, e enquanto as economias da UE ficam cada vez mais para trás em termos de inovação, a aplicação de grandes somas em programas agrícolas dispendiosos é criminosamente absurda. No entanto, à luz de sua fragilidade e falta de legitimidade, os líderes políticos facilmente se tornam presas de interesses privilegiados e mesquinhos.

Há uma necessidade - na verdade, um imperativo urgente - de uma nova liderança econômica global. É realmente fantástico o Brasil se mostrar à altura desse desafio. Ele precisa manter a pressão e continuar construindo alianças com outros países dinâmicos, como fez com o G-20.

Um mundo que verá países como Brasil, China, Índia, África do Sul, México, Chile, Indonésia, Tailândia e Turquia desempenharem um papel de liderança cada vez mais importante no comércio global deveria ser um mundo melhor e mais dinâmico. No que diz respeito ao Brasil, qualquer que seja o desfecho das futuras eleições, é de se esperar que sua política construtivamente ofensiva para o comércio global seja mantida.

O DESAFIO PARA O BRASIL

Não sei se Brasília realizou pesquisas sobre a imagem do Brasil na arena do comércio global. Se não, valeria a pena fazê-lo. O estudo mostraria obrigatoriamente que a posição e a reputação de liderança do Brasil sofrem de um problema de credibilidade. Um comentário freqüente em Hong Kong (e outros lugares, quando se discute a liberalização comercial agrícola) é que os maiores beneficiários de uma redução das tarifas agrícolas nos países de renda alta seriam os ricos latifundiários do Brasil, donos de fazendas enormes, cuja atitude perante os pobres está longe de ser considerada benevolente. Assim, embora a agenda do "desenvolvimento" de Doha tenha sido imaginada pretensamente como um meio de ajudar os países pobres, a) o Brasil não é um país pobre e b) os mais prováveis vencedores com a liberalização comercial agrícola seriam os ricos opressores brasileiros.

Seja ou não verdadeiro, o fato é que esse estereótipo tem ressoado nos círculos que procuram resistir às exigências agrícolas do Brasil.

Portanto, o Brasil parece estar diante de dois desafios: imagem e realidade. Primeiro, a imagem. Ao buscar se engajar como um líder no comércio mundial, Brasília parece carecer de habilidade diplomática. Claramente, a imagem sensual do futebol e do samba/carnaval é, nesse contexto, irrelevante. A imagem "antiglobalista" de Porto Alegre pode ser bem aceita por algumas ONGs, mas provavelmente é contraproducente na disputa por liderança no comércio global. O fato de Lula ter sido o único chefe de Estado a assistir tanto ao Fórum Social Mundial em Porto Alegre quanto ao Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro de 2003, foi uma proeza de imagem, mas não foi levado até as últimas conseqüências. Assim, além do incômodo para os EUA e a UE e da defesa da liberalização comercial agrícola, não está claro o que o Brasil pretende. Qual é a "missão" do Brasil no comércio e na economia globais? Apesar de todos os defeitos, tanto os EUA quanto a UE conseguiram muita coisa, em seus dias de glória, não só para si próprios, mas também para o planeta. Este último fato não foi motivado necessariamente pelo altruísmo, e sim pelo interesse próprio esclarecido e sólido. Os resultados foram impressionantes. Por exemplo, os seis países originais da Comunidade Econômica Européia trataram de desenvolver um projeto de construção de paz e prosperidade sem precedentes. Quem teria acreditado, nos anos 60, que um dia essa instituição nascente abraçaria e converteria países fascistas como Espanha e Portugal e seus novos membros outrora comunistas como Polônia, Hungria e Letônia? E isso, de outro lado, não teria acontecido sem o papel desempenhado pelos EUA depois da Segunda Guerra, buscando a reconstrução das economias da Europa, do Japão e de outras partes do mundo.

O que o Brasil fez pelo mundo? Ou por sua própria região? E qual é sua agenda para o futuro? Isso nos traz à realidade, da qual a imagem não pode ser totalmente separada. Parece haver três imperativos interligados que Brasília precisa atender a fim de ganhar credibilidade, legitimar sua liderança e assim alcançar seus objetivos.

1. Embora tenha melhorado muito, a política macroeconômica brasileira ainda é caótica demais. Um governo que não consegue administrar os assuntos domésticos de modo adequado dificilmente está em posição de ensinar os outros como administrar os assuntos globais. O Brasil precisa de um crescimento econômico robusto e sustentado. Seu desempenho - não só em comparação com a estrela chinesa, mas até mesmo em comparação com países como Paquistão e Indonésia, para não mencionar o vizinho Chile - é simplesmente inaceitável.

2. Consta desse "dossiê" que, enquanto Celso Amorim e seus principais conselheiros negociavam no Centro de Convenções, outros membros da delegação brasileira e ONGs estudavam assiduamente - assim se espera - o modelo de Hong Kong de liberalização comercial unilateral, redução da pobreza, crescimento e desenvolvimento. Embora medidas unilaterais de abertura de mercado tenham sido adotadas no Brasil sob o governo FHC, elas foram muito modestas comparadas com o que a China fez nos últimos 20 anos e Hong Kong fez no passado.

3. A fim de assumir uma posição de liderança global, o Brasil precisa provar seu status de bom cidadão regional e líder regional. Ao discutir redução de tarifas, o Brasil deveria abrir seu mercado especialmente a seus vizinhos e aos exportadores de outros países em desenvolvimento.

Ao pregar o mantra segundo o qual a abertura dos mercados ajuda a reduzir a pobreza, o Brasil deveria ser visto como o líder neste caminho. Este seria um bom exemplo de interesse próprio esclarecido, já que, enquanto a Bolívia, o Peru, o Paraguai e outros países genuinamente pobres poderiam ver sua perspectiva melhorar com a participação ativa no enorme e lucrativo mercado brasileiro, os principais beneficiários da abertura dos mercados do Brasil seriam os cidadãos brasileiros.

Um planeta mais "abrasileirado" seria um planeta melhor e mais dinâmico. No entanto, para que o Brasil melhore o planeta, há muito a fazer em casa. O momento é este.


Sobre o autor:

Um atuante promotor do livre comércio
Jean-Pierre Lehmann é professor de Economia Política Internacional no IMD International Institute for Management Development de Lausanne, na Suíça. Ele é diretor-fundador do Evian Group, uma ONG de livre comércio que reúne especialistas, executivos e governantes de todo o mundo, como Supachai Panitchpakdi, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, e Martin Wolf, escritor e colunista do jornal inglês ‘Financial Times’. O Evian Group foi fundado em 1995. Lehmann participa ativamente das discussões e negociações comerciais, além de organizar reuniões do Evian Group para promover o livre comércio em diversos países. O acadêmico já foi professor associado na London Business School, professor associado na Insead (European Institute of Business Administration) na França e professor visitante da Universidade Johns Hopkins. Lehmann já atuou como professor em universidades do Japão, Suécia e Escócia.

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