Jornal Valor Econômico - 10.3.06 - pág. A15
Grupo que defendeu a invasão do Iraque errou ao acreditar que todos os países são iguais
Por Jacob Weisberg, colunista do Financial Times
Em meio ao agravamento persistente da situação no Iraque sob a ocupação americana - a questão agora é se é possível evitar uma guerra civil - o exame de como entramos nessa confusão é cada vez mais premente. Diversos históricos instantâneos e relatos de bastidores do processo de tomada de decisões do governo Bush já foram publicados. Mas é um livro que não contém quaisquer relatos inéditos o que melhor conseguiu explicar por que o desastre desenrolou-se da maneira que conhecemos. "America at the Crossroads" ("EUA na Encruzilhada"), de Francis Fukuyama, argumenta que os americanos cometeram o erro de ir ao Iraque sem preparar-se para uma ocupação hostil por causa da errônea linha de pensamento de política externa de um pequeno grupo de pessoas denominadas neoconservadoras.
"Neoconservador" tornou-se um termo de tal carga emocional que tende a obliterar qualquer discussão civilizada. Alguns europeus o empregam como sinônimo de defensores da guerra no Iraque ou para designar belicistas sofisticados em geral. Nas extremas esquerda e direita americanas, "neocon" freqüentemente ressalta a identidade judaica de muitos de seus adeptos, sugerindo que eles se importam mais com Israel do que com os EUA. Fukuyama, que até recentemente incluía-se entre os neoconservadores, define o termo não pela história compartilhada de seus membros, mas por seu conjunto de idéias compartilhado.
Embora haja infinitas exceções, os "neocons" mais influentes são "wilsonianos linha-dura" com relação à política externa. Eles rejeitam a noção realista, mais fortemente identificada com Henry Kissinger, segundo a qual os EUA deveriam agir apenas segundo seus interesses. Em vez disso, os "neocons" acreditam que os EUA devem oferecer ao mundo sua liderança moral, disseminando liberdade e idéias democráticas - pela força, se necessário. Eles acreditam no valor das alianças, mas não dão bola para instituições mundiais ou para as minúcias da legislação internacional. Segundo essa caracterização, Fukuyama inclui entre os "neocons" tanto Ronald Reagan como o George W. Bush do segundo mandato, alguém tão distante quanto seria possível imaginar de um intelectual judaico.
Embora continue simpático à missão de disseminação da democracia, Fukuyama critica as inflexões unilaterais e militaristas que produziram conceitos como os de "guerra preventiva" e "mudança de regime". Os "neocons", argumenta ele, abandonaram sua idéia política fundamental, isto é, de que esquemas ambiciosos para remodelar sociedades são fadados ao fracasso e produzem conseqüências não pretendidas. "Oposição à engenharia social utópica", escreve Fukuyama, "é o mais inabalável fundamento de todo o movimento". No entanto, os "neocons" estão hoje atolados numa tentativa de transformar um semipaís mal compreendido, catastroficamente destruído e de realidade profundamente diferente no Oriente Médio. Como foi que essas pessoas inteligentes desviaram tanto do curso? Embora Fukuyama não faça tal comparação, o fracasso deles lembra cada vez mais o dos arquitetos da guerra no Vietnã.
No primeiro ato da tragédia neoconservadora, um movimento intelectual surge, no início da década de 60, animado pela equivocada expansão do Estado de bem-estar social americano por Lyndon B. Johnson. Aplicando uma versão de sua crítica ao totalitarismo comunista ao liberalismo da "grande sociedade", as primeiras figuras chave do movimento, Irving Kristol, Nathan Glazer e Daniel Patrick Moynihan, argumentam que boas intenções estão encalhando nas águas rasas da humanidade recalcitrante e na ignorância sobre as realidades da pobreza. O que diferencia esses autores de seus colegas liberais de pensamento mais convencional é um agudo ceticismo sobre a possibilidade de transformação social e arguto empirismo sobre pessoas, programas e resultados.
No segundo ato, no fim da década de 70, um elenco um pouco diferente dos "neocons" aplica à política externa americana a mesma idéia da era da détente. Aqui, há cenas de hostilidade à ONU e de enfrentamentos com o realismo de Kissinger, que eles consideram excessivamente tolerante com o comunismo. Mais uma vez, eles parecem, em retrospecto, premonitórios.
É apenas no terceiro ato que os neoconservadores dão com os burros catastroficamente n'água. Imbuídos, pelas revoluções em 1989, de um senso de seu próprio acerto e do predomínio incontestado dos EUA, os "neocons" passam a imaginar que até mesmo sociedades atrasadas, não ocidentais e desprovidas de tradições liberais são capazes de trilhar um caminho pós-totalitário polonês. Paul Wolfowitz, Richard Perle e William Kristol fantasiam que uma dúbia figura garibaldiana, Ahmed Chalabi, é capaz de derrubar o ditador mais perverso do mundo com um pequeno bando de seguidores. Depois que isso se revelou inútil, eles convencem o vice-presidente e o secretário de Defesa dos EUA - e em última instância, o próprio presidente - de que, depois que os militares americanos terminarem o trabalho, os iraquianos abraçarão as forças de ocupação em seu país. Ao vencer essa batalha, clímax dessa trama, os "neocons" esquecem-se de quem são. Suas duas melhores qualidades - ceticismo em face de mudanças comandadas por governos e empirismo sociológico - perderam-se ao longo do caminho. Fukuyama é particularmente crítico quando discute o fermento intelectual, no curso do últimos 15 anos, em torno da questão de como são realizadas transições democráticas. Os "neocons" destacados que apoiaram a guerra permaneceram, de modo geral, fora desse debate, e é difícil "encontrar grandes discussões sobre a mecânica concreta de como os EUA estimulariam instituições democráticas ou desenvolvimento econômico", escreve ele.
Nas tragédias gregas, a queda do herói é freqüentemente plotada em termos de sua "hamartia"- "erro trágico" do herói que redunda em catástrofe. O que em última instância lançou os "neocons" em desgraça pode ter sido um gosto residual pelo pensamento categórico marxista-hegeliano. Pessoas que deveriam ser mais esclarecidas passaram a acreditar que qualquer país é igual a outro e que a inevitabilidade histórica faria o trabalho braçal por eles. Agora, a tragédia neoconservadora é também nossa.
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