sábado, junho 24, 2006

114) Uma entrevista com Armínio Fraga...

De volta aos nossos problemas de política econômica...
(Desculpem, este post está ENORME para este Blog, mas acho que vale o esforço pela importância da entrevista e do tema...)

Do jornal Valor Econômico, 23 de junho de 2006.
O ex-Presidente do Banco Central conta tudo. Como, por exemplo, se deu a aproximação com Palocci

..."Quando o presidente decidiu me escalar para as reuniões, mandou dizer aos quatro candidatos que eles poderiam trazer mais três pessoas. Foi nesse momento que surgiu o Palocci, que não estava na lista original do PT, que tinha apenas o Mercadante e o José Dirceu. Foi a primeira vez que tive um contato mais próximo com ele. Nesse dia, o Palocci me puxou num canto, na saída, e disse que gostaria de ter uma conversa depois comigo.
Eu disse: "Claro, com o maior prazer". Isso foi numa quinta-feira, eu ia para o Rio, e ele disse: "Não tem problema, nos encontramos na sexta-feira à noite no Rio".

Valor: E como foi esse encontro com Palocci?
Arminio: Para mim, foi muito marcante, por que eu tinha medo do que viria, de que na virada de governo se pudesse ter uma inflação muito alta e até um tipo de calote. A economia estava na UTI e estávamos tentando amarrar o paciente, dar sangue, oxigênio, olhando aqueles monitores loucos. A conversa com o Palocci, para mim, foi uma janela que se abriu.
Muito bom senso, um prefeito experiente. Ele contou um pouco a história dele, que viu, na gestão do dia-a-dia, o que dá para fazer e o que não dá, o que é ideologia e o que é bom para o povo. Ele passou muita tranqüilidade. Fiz uma série de ponderações, me preparei para essa reunião, que foi a primeira de uma série que tivemos. Fui o primeiro a ter uma reunião com ele e fiquei aliviado. Dormi bem aquela noite e no dia seguinte liguei para o Malan e para os diretores das áreas de mercado do BC. Falei: "Pessoal, vai dar. Vamos acreditar que vai dar". E deu. Para nós, ia dar lá na frente. "...

Íntegra desta importante entrevista ( para quem quer conhecer melhor os bastidores da grave crise que ameaçou o País em 2002):

O operador das horas de vendaval
Por Vera Brandimarte e Claudia Safatle
VALOR - 23/06/2006

A economia estava na UTI, mas isso era conseqüência de expectativas com relação ao que o próximo governo faria; bastaria, portanto, desfazer temores de calote

"Gênio do mal", "agente estrangeiro", "bandido" - Arminio Fraga ouviu de tudo, mas não perdeu a serenidade, que lhe foi essencial nas horas críticas em que comandou o BC

A maior aberração do panorama econômico brasileiro era e continua a ser a taxa de juros, e não a taxa de câmbio (...) O país tem tudo para entrar numa fase muito boa, de juros baixos

No final de 2002, Armínio Fraga, então presidente do Banco Central (BC), encerrava a gestão de um dos mais turbulentos períodos da história da política monetária do país. Na despedida, deixou, por escrito, algumas recomendações para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva - um pequeno texto, feito a pedido do então futuro ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e entregue a este poucos dias antes da posse de Lula. Parte importante do receituário proposto por Fraga foi seguida por Palocci, com quem o ex-presidente do BC acabou tendo um relacionamento profícuo.

Entre as várias sugestões de Fraga para administrar aquela que era uma crise causada primordialmente por um problema de confiança estava a mudança da composição das políticas fiscal e monetária, com o aumento do superávit primário, "para eliminar de vez dúvidas quanto à sustentabilidade da dívida e permitir queda na taxa de juros". Logo no primeiro ano do novo governo, a meta de superávit passou de 3,75% para 4,25% do PIB. O efetivamente realizado acabou sendo até maior.

No texto, ao qual o Valor teve acesso, Fraga propunha também a adoção da política fiscal anticíclica - ou seja, um superávit maior quando a economia estivesse crescendo acima da média e menor quando o nível de atividade estivesse desaquecido. A mudança chegou a ser considerada pelo governo Lula nos primeiros meses, mas foi abandonada. Fraga também sugeria a adoção do orçamento "impositivo", dado que o modelo atual, de orçamento "autorizativo", segundo o texto, "cria toda sorte de incentivos perversos, sendo no fundo um desrespeito à democracia".

Junho de 2002: Fraga e Pedro Malan explicam medidas tomadas para enfrentar dificuldades na rolagem de títulos da dívida pública; a marcação a mercado tornou-se essencial

Da lista de Fraga, além da necessidade de reafirmação de que o governo do PT respeitaria contratos internos e externos e teria compromisso sólido com a democracia, constavam ainda a aprovação da lei de falências, que ocorreu, da previdência complementar para o funcionalismo público, cuja reforma foi realizada parcialmente, e aprovação da autonomia do BC, tema que se perdeu no meio do caminho.

Embora nos últimos momentos de sua passagem pelo BC Fraga tenha sido alvo de declarações rudes do presidente eleito, que descartava sua permanência no novo governo, o fato é que Palocci queria mantê-lo no cargo por pelo menos seis meses. A permanência de Fraga no BC foi uma recomendação que economistas de distintos matizes, como Luiz Gonzaga Belluzzo e Ricardo Carneiro - que participavam do grupo que debatia o programa econômico do PT - também fizeram ao governo que se preparava para assumir, como medida para tranqüilizar os mercados. Apesar de a transição ter sido bastante civilizada, sob o aspecto da troca de informações entre o governo que saía e o que entrava, era um momento em que a economia se encontrava em frangalhos.

A taxa de câmbio tinha batido em quase R$ 4,00, a inflação ameaçava descarrilar, os juros tiveram que ser aumentados para 25% ao ano e a relação dívida/PIB, indicador de solvência do país, chegou a 55,5% -e boa parte da dívida estava indexada à taxa de câmbio.

"A economia estava na UTI e nós estávamos tentando amarrar o paciente, dar sangue, oxigênio, olhando aqueles monitores loucos", conta Fraga, que disse isso a Lula num dos encontros da posse. "Mas isso era apenas a conseqüência de expectativas com relação ao que o próximo governo faria." Bastaria, portanto, o próximo governo desfazer os temores de um calote "que tiraria o país da UTI", completou, na conversa com o então presidente eleito. E assim foi feito.

Fraga, 49 anos, doutor em Economia pela Universidade de Princeton, casado, dois filhos, foi chamado por Fernando Henrique Cardoso para presidir o BC no olho do furacão da crise cambial de janeiro de 1999, que derrubou o então presidente Francisco Lopes. Até então, Fraga trabalhava em Nova York, onde atuou por seis anos como diretor gerente da Soros Fund Management LLC, do megainvestidor George Soros. Pretendia retornar ao Brasil em meados daquele ano.

O fato de trabalhar para um megaespeculador fez com que Fraga fosse recebido pela oposição, no Congresso, com forte carga de críticas. Quando sabatinado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, foi chamado de "gênio do mal" pelo senador Saturnino Braga. "Não sou gênio, mas sou do bem", respondeu Fraga. Também o acusaram de ser "a raposa que veio para cuidar do galinheiro", pelo fato de ter operado nos mercados financeiros de países emergentes. E disseram que era um "agente estrangeiro" (por ter dupla cidadania, brasileira e americana) indicado por Washington para colocar ordem no país e cuidar dos interesses dos credores internacionais. Lula, na época presidente do PT, engrossou o coro da incitação: "Pôr Armínio Fraga no BC é como colocar um traficante no comando da Polícia Federal". Na sabatina, que durou seis horas e meia, em 26 de fevereiro de 1999, Fraga manteve a serenidade e foi aprovado por 21 votos a 6 para presidir o BC.

De trato fácil, ("easy going", como o descreveu Fernando Henrique Cardoso), e frio ao tomar decisões em momentos de crise, Fraga acabou conquistando o respeito mesmo de seus mais empedernidos opositores, como o senador Pedro Simon (PMDB-RS). Por ocasião da sua indicação para o BC, Simon comentou que Fernando Henrique "convocou o bandido número um para tratar com os demais bandidos", mas em novembro de 2000 revia sua posição : "Ele (Armínio Fraga) é excepcional no cargo".

Fraga aliou a qualidade de exímio operador de mercado a uma sólida formação acadêmica e experiência internacional. Sob sua gestão no BC, o governo iniciou e consolidou o regime de câmbio flutuante e implantou a política monetária baseada no sistema de metas para a inflação, um gerenciamento de expectativas com uma meta (a inflação) e um instrumento - a taxa de juros. Deu transparência às decisões do Banco Central, seja a partir do detalhamento das atas do Comitê de Política Monetária (Copom), que passaram a ser divulgadas na semana seguinte à decisão sobre taxa de juros, como um instrumento de fato da política monetária; seja pela publicação semanal do boletim Focus, com as expectativas do mercado, e do relatório trimestral de inflação, em que o BC faz uma análise exaustiva do cenário econômico interno e internacional e aponta suas projeções.

Fraga escreveu textos acadêmicos demarcando uma visão mais sofisticada da administração de uma política de metas de inflação em países emergentes sem tradição de estabilidade cambial e baixa inflação. Inspirado no arcabouço do regime de metas que vinha sendo praticado em outros países (Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia) e formatando, com certa flexibilidade, os princípios básicos que norteariam o Copom, o regime começa a funcionar em meados de 1999, sob grandes incertezas a respeito de para onde iria a inflação depois da desvalorização cambial.

A primeira meta é fixada em 8%, com margem de tolerância de 2 pontos percentuais para cima e para baixo. A estréia é bem-sucedida: o IPCA encerra o ano em 8,94%. O Copom eleva os juros, em março, de 29% para 45% ao ano, mas inicia logo em seguida um rápido processo de redução das taxas. Em setembro, a Selic pára em 19% e, em 2000, o Copom reinicia a trajetória de queda, até estacionar em 15,25% em janeiro de 2001. Daí em diante, com uma sequência de problemas, do racionamento de energia à crise da Argentina, as taxas começam a subir, caem, sobem novamente e, no governo FHC, nunca mais descem àquele patamar.

Foi uma subida abrupta e uma queda também rápida. "Não tem aquela história de que as elevações dos juros devem ser rápidas e as quedas, graduais?". Fraga responde com humor: "Isso está naquele manual de política monetária chamado 'O Príncipe', do grande economista Maquiavel". E completa: "Não, mas existe hoje uma visão de que, como as coisas dependem de expectativas, o BC precisa de alguma maneira transmitir ao público que está comprometido com uma política monetária sóbria por um longo período de tempo. Existe certa inércia nas expectativas. E há formulações históricas que sugerem que isso é bom. Não sei se essas formulações vieram depois de isso ter virado moda entre os bancos centrais ou se elas estão fundamentando isso. Acho que vieram depois, essa moda começou com o (Alan) Greenspan. Não faz muita diferença, desde que a coisa não seja lenta demais. O que o BC argumenta hoje é: 'Não me julgue apenas pela trajetória lenta dos juros, mas observe também a taxa de inflação. Como a inflação não caiu rápido, eu não posso me antecipar muito.' Isso faz sentido".

Uma atitude que marcou a gestão de Fraga à frente do BC, que ele deixou em documentos escritos na época, foi a administração das metas e dos juros de forma que a economia perca o mínimo possível de produto. O abandono dessa flexibilidade é uma das críticas que se fazem ao atual comando da instituição. Num texto de novembro de 2002, elaborado junto com Ilan Goldfajn, então diretor do BC, Fraga escreveu: "Quando confrontada com choques de grande magnitude, como nos últimos 18 meses, a política monetária no Brasil tem sido calibrada de forma a alongar o tempo de convergência à meta de inflação. Tal procedimento leva em conta os custos do processo de ajuste (em termos de produto) associados à existência de inércia inflacionária. Essa política indica que, de acordo com o desenho do sistema de metas, o BC deve levar em conta a volatilidade do nível de atividade em sua tomada de decisão, sem, no entanto, deixar de lado o objetivo principal de atingir as metas de inflação".

Nos EUA ou no Brasil, Fraga sempre procurou manter vínculo com a academia, dando aulas, "para arejar a cabeça e manter a honestidade intelectual", conforme recomendação feita por seu pai, o médico Sylvio Fraga. "Na academia", diz ele, "ninguém está querendo te vender nada." Atualmente, dá aula de macroeconomia no curso de mestrado da PUC-Rio - onde o governo de FHC foi buscar a equipe que administrou a economia do país por oito anos.

O fato de ser um dos melhores economistas do país não o isolou nesse campo. Interessa-se por esporte - joga golfe e foi da seleção juvenil nos anos 1970 -, da mesma forma que por artes e assuntos culturais em geral. É versátil também na hora de decidir onde aplicar seu dinheiro. Em 2005, vendeu a parte que detinha na editora Nova Fronteira para a Ediouro. "Nesse negócio, ganhei bom dinheiro", conta. Sua mais recente aposta é na hotelaria. Com o cunhado, Arthur Bahia, é um dos donos da Fazenda da Lagoa, uma requintada pousada em Una, no Sul da Bahia. "É um paraíso", comenta.

Em meados de 2003, já fora do BC e em plena preparação do lançamento da Gávea Investimentos, administradora de fundos que hoje gerencia cerca de US$ 2 bilhões, Fraga aceitou o convite do humorista Marcelo Madureira, que conheceu num curso de história da arte, para fazer uma ponta no programa Casseta & Planeta, como taxista. "Pois é... Depois que saí do Banco Central, fiquei pensando: 'Onde é que um cara com meu curriculum e meu conhecimento pode usar todo seu potencial?". No táxi! Por que quem manja mesmo de economia e de qualquer outra coisa são os taxistas!", diz Fraga ao passageiro (Madureira), que o reconhece como ex-presidente do BC.

"A crise era política e ancorada no futuro"
23/06/2006

Valor: Em que momento o presidente Fernando Henrique Cardoso o convidou para assumir a presidência do Banco Central (BC)?

Maio de 2000: Fraga e Pedro Malan em reunião com Horst Koehler, diretor-gerente
do FMI, em Brasília, para nova avaliação do acordo firmado em 1998

Arminio Fraga: Em janeiro de 1999, na semana anterior ao convite, estive em Brasília, a convite do Pedro Malan [ministro da Fazenda) para jantar com ele, Chico Lopes [presidente do BC], o presidente Fernando Henrique e André Lara Rezende. Foi na quarta-feira antes da sexta feira [29 de janeiro, a chamada "sexta-feira negra"] da confusão no mercado. [Lopes e Malan tinham ido ao encontro de Michel Camdessus, diretor-gerente do FMI, no dia 16 e, no dia 19, já haviam deixado o câmbio flutuar]. Jantamos no Alvorada com o Chico. Não passava pela minha cabeça que seria convidado poucos dias depois. Muito antes, eu já tinha sido sondado em outra mudança do BC e dissera ao presidente que não podia, estava nos EUA com a família e num trabalho novo que estava sendo muito bom para minha carreira [como diretor do fundo de investimentos do megainvestidor George Soros]. Numa brincadeira, eu disse: "Quem sabe, no segundo mandato". Acabou sendo assim.

Valor: O senhor já conhecia FHC?
Arminio: Eu tinha conhecido o presidente quando era diretor do BC e ele senador, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Ele foi nomeado ministro da Fazenda [do presidente Itamar Franco, em 19/05/1993] quando estava a bordo de uma avião indo para Nova York. Ele chegou em Nova York, recebeu a notícia e me chamou. Pediu-me um breve resumo do que estava acontecendo. A partir daí, tivemos contatos esporádicos. Eu ligava para Malan umas quatro vezes por ano, para dar algum recado do que estava vendo lá fora. Nosso acordo era que eu ligava, ele escutava e desligava. Eu já tinha passado pelo governo e tinha essa experiência. Uma vez ou outra ele considerava algo interessante e dizia para eu fazer um relato ao presidente. Acho que fiz isso umas três vezes. Então, naquele dia teve o jantar e, apesar do momento extremamente difícil, foi bastante agradável. Depois do jantar, fomos caminhando, eu e o presidente, e ele disse: "Posso precisar de você em algum momento. Você está disponível?" Respondi que estava voltando em junho, no fim do ano escolar de meus filhos. Imagino que, naquele momento, sequer passasse pela cabeça dele uma mudança tão rápida no BC. Dormi aquela noite em Brasília, no dia seguinte fui para o Rio e voltei para Nova York. Na sexta-feira, trabalhei normalmente, foi um dia complicadíssimo no mercado do Brasil, "sexta-feira negra" e tal. E no sábado [30 de janeiro] me ligou Pedro Parente [ministro-chefe da Casa Civil]: "Agora você tem que vir". Suponho que a saída do Chico já estava em processo. Ele não tinha saído ainda. Havia certa ambigüidade, mas me foi dito que ele ia sair. Acordei cedinho na segunda-feira [1º de fevereiro], fui para o escritório pedir demissão. Soros não estava lá, estava em Davos. Foi chato, porque foi por telefone. Só fui assumir o BC um mês depois, após a sabatina. Comecei como assessor do Ministério da Fazenda.

Valor: O BC já tinha optado pelo câmbio flutuante?
Arminio: Para todos os efeitos, sim, mas eu poderia mudar. Cheguei defendendo a adoção de um sistema de metas para inflação e o câmbio flutuante.

Valor: Não foi o FMI quem recomendou que deveria ser assim?
Arminio: Não. Eu já tinha essa idéia. Quando o Chico propôs a mudança do câmbio e aquele processo complicado da banda [diagonal endógena], eu, que tinha sido aluno do Chico - ele foi meu orientador de mestrado - mandei-lhe um ´paper´ sobre metas de inflação, dizendo que achava que seria um bom sistema para o Brasil. Já vinha sendo adotado com sucesso na Nova Zelândia, Inglaterra, Suécia. E o Chico de fato estava interessado. Disse: "Que bom, vou ler". E ficou por isso mesmo. Eu acreditava que, já que o câmbio tinha sido forçado a flutuar, que se aproveitasse para introduzir metas para a inflação. Não sei o que o Fundo propôs antes, mas aparentemente eles discutiram muita coisa, inclusive voltar a algum sistema de câmbio fixo.

Valor: Um "currency board"... Uma vez, o senhor disse algo como: "O regime de metas é uma saída quando não há mais nenhuma outra.
Arminio: A discussão foi um pouco por eliminação. Existem outras saídas: adotar um câmbio fixo, ou metas monetárias - na Europa isso ainda tinha algum peso, mas depois foi diminuindo - ou a flutuação do câmbio sem formalizar metas de inflação.

Valor: Por que a opção por formalizar a meta?
Arminio: Nossa preocupação era ancorar as expectativas. Havia um medo enorme de que, se o câmbio ficasse solto e não houvesse outra âncora, a inflação subisse. Como no México, onde a inflação foi a 70%. Então, o sistema de metas de inflação nos parecia a melhor forma de tentar controlar as expectativas. E tivemos que adotá-lo em duas etapas, porque no início a inflação era tão grande que tínhamos medo de escolher uma meta e errar. Primeiro, dissemos que a inflação anualizada chegaria ao fim do ano em um dígito. Mas não sabíamos como a inflação caminharia nesse meio tempo. Decidimos, então, que as metas seriam anunciadas em junho, quando já estivesse claro qual seria a trajetória. Mas buscamos ancorar a inflação de final de ano já em um dígito. E assim foi. Em junho de 2000, anunciamos as metas.

Valor: Em 2001, o Tesouro já vinha conseguindo trabalhar em um novo perfil para o alongamento da dívida pública, desconcentrando vencimentos. Mas o senhor pressentia problemas para o ano eleitoral de 2002...
Arminio: Na virada de 2000 para 2001, estávamos vivendo o quarto trimestre de crescimento num ritmo bastante forte. A média de crescimento desse período de 18 meses era de 4% anualizada. Estávamos com inflação sob controle, com as expectativas, depois do cumprimento da meta de 2000, cravadas em 4%. Em função disso, vínhamos reduzindo os juros, que chegaram a 15,25% no início de 2001. Havia receio em relação ao balanço de pagamentos. O déficit em conta corrente vinha aumentando bastante e a projeção era para um déficit de 4% do PIB, que acabou ocorrendo [em 2001, o déficit em transações correntes foi de 4,55% do PIB]. Era uma pequena luz amarela. Sabemos que, na história do Brasil, nessas fases de crescimento acelerado, quando o balanço de pagamentos entra em um déficit muito grande, o país fica exposto à mudança de ventos lá fora. Isso aconteceu de fato. Havia grande entusiasmo na época, e o Banco Central foi criticado por ter feito o que os bancos centrais tipicamente fazem: à meia-noite, tiram a bebida da festa. O cara volta para pegar mais um copinho de vinho e você diz: "Agora só tem Coca-Cola ou Alka-Seltzer". Quando ficou claro para nós que o mundo vinha desacelerando e estávamos com a economia em aceleração, aquilo nos pareceu além da conta. E fomos muito criticados, porque diziam: "Agora que as coisas estavam ficando boas, vocês estão querendo colocar o pé no freio". Paramos de reduzir e depois aumentamos um pouco os juros, num trabalho um tanto defensivo, mas que nos parecia necessário.

Março de 2001: com Delfim Netto,no Congresso, falando sobre a situação
econômica, que se agravava depois do estouro da bolha da internet; o
acordo com o FMI seria assinado em agosto


Valor: E era só o começo...
Arminio: Não imaginávamos que as coisas fossem ficar tão ruins no início de 2001. As coisas foram piorando, piorando, teve o aprofundamento da crise financeira, com a bolha da internet estourando, as bolsas caindo, especialmente a Nasdaq, desaceleração forte da economia nos EUA, a seca e o racionamento aqui, que foi dramático, depois veio a confusão na Argentina e acabou nos levando a buscar outra vez um acordo com o FMI para termos margem de manobra. O pico de tensão foi lá por agosto, se não me engano [ver gráficos na pág. 14] Durante agosto e setembro, fizemos um trabalho duplo de apertar a política monetária e intervir no câmbio, que estava em torno de R$ 2,80 e nos parecia altíssimo. Vendemos uns US$ 10 bilhões. A coisa se acalmou e, do ponto de vista econômico-financeiro, houve uma pausa. As bolsas lá fora começaram a se recuperar e surgiu, durante um curto período, uma janela de certa tranqüilidade outra vez, com um ajuste já começando no balanço de pagamentos [o déficit em conta corrente chega a 4,96% do PIB em agosto e começa a cair a partir daí] e mais calma nos mercados. Voltamos a reduzir os juros [a taxa Selic chega a 19% em agosto e permanece nesse patamar até fevereiro de 2002, quando começa a cair].

Valor: Já era 2002...
Arminio: Sim. Do ponto de vista econômico, tínhamos recuperado certa tranqüilidade e era uma demonstração de que a situação aqui não estava tão ruim. A economia começou a crescer e entrou em 2002 com uma cara boa, com os analistas políticos todos prevendo vitória do candidato do governo. Mas a coisa complicou para o governo do lado político. O apagão [crise de escassez de energia, no segundo trimestre de 2001] foi dramático para a imagem do governo e acabou contaminando 2002 também.

Valor: O susto da falta de energia foi maior que a crise, não?
Arminio: Num primeiro momento, houve o receio de que o impacto seria tal que teríamos enorme queda no PIB, o que não correu. Houve um esforço de economia extraordinário. Teve impacto o mecanismo adotado, um racionamento com alguma elasticidade de preço, com uma escala em que, até certo nível de consumo, as famílias podiam comprar energia a preços baixos e, depois, a punição era muito forte.

Outubro de 2001: Fraga chega ao Palácio do Planalto para reunião de
trabalho entre os presidentes Fernando Henrique e Fernando de la Rua;
a crise na Argentina era um peso adicional num ano já difícil

Valor: Se a crise foi bem administrada, por que teve impacto político negativo para o governo na sucessão?
Arminio: Com o tempo, as pessoas começaram a se perguntar se foi só azar ou se não foi falta de planejamento. Aí juntou com os outros problemas, com a economia que de repente pára de crescer. Foi uma época de arrocho, de sacrifício. Por melhor que tivesse sido a resposta do governo à crise de energia, melhor teria sido não ter vivido nada daquilo.

Valor: Em que momento vocês perceberam que a campanha de 2002 estava começando a contaminar a economia e que o mercado estava cobrando deságio pelos títulos públicos?
Arminio: Muito mais adiante. No início de 2002, houve uma janelinha de bem-estar econômico que durou até o naufrágio da candidatura da Roseana Sarney.

Valor: Com o caso Lunus, em fevereiro? [Em fevereiro de 2002, a Polícia Federal fez uma operação na empresa Lunus, de Roseana. Foi encontrado num cofre R$ 1,34 milhão em notas de R$ 50,00, dinheiro que foi vinculado a projetos da extinta Sudam. Em abril, Roseana desistiu da pré-candidatura à Presidência da República].
Arminio: É. Naquele momento, os analistas diziam que o problema de 2001 tinha passado, que a economia estava indo bem, que FHC tinha uma história, que seria difícil o povo se arriscar. Para o eleitorado conservador, tinha a Roseana indo bem nas pesquisas e, se não fosse ela, seria o Serra e tudo bem. Aí veio o naufrágio da Roseana e, logo em seguida, a expectativa de que parte dos votos da Roseana migrariam para o candidato do governo. Quando as primeiras pesquisas mostraram que um percentual baixíssimo dos votos da Roseana havia migrado para o Serra, acendeu-se uma luz amarela, cor de laranja. Aí é que começa a dificuldade de rolagem da dívida, que foi aumentando gradualmente...

Valor: Teve o episódio da marcação a mercado [mecanismo de ajuste do preço do título existente na carteira à cotação do mercado, para impedir que o aplicador conte com um retorno financeiro que poderá não se realizar].
Arminio: Foi pouco depois. Na verdade, estava acontecendo em paralelo, mas só esquentou mais à frente.

Valor: Como era percebida a dificuldade de rolagem?
Arminio: Começou a ficar mais difícil vender títulos de prazos mais longos nos leilões. O governo tinha vendido volumes grandes de LFTs com prazos longos, próximas ao par, em 2001. Eu me lembro que, na época, almoçando no Ministério da Fazenda, comentei que, se estivesse no mercado e algum funcionário meu estivesse comprando LFTs próximas ao par, ele seria demitido. Mas isso é o que estava acontecendo: os papéis sendo comprados como se nunca fossem entrar em deságio.

Valor: Por que demitiria o funcionário?
Arminio: Ele estava comprando papel que rende a taxa overnight, mas só receberia o principal de volta corrigido cinco anos depois. A precificação da falta de liquidez eventual estava mal feita. O mercado estava animado demais. Por sua vez, o mercado financeiro que colocava esses papéis nos fundos não dizia aos clientes que não havia garantia de que a cota do fundo fosse ficar sempre acima do nível do dia anterior. Títulos do governo tinham sido cotados com deságio no primeiro mandato de Fernando Henrique, em momentos de crise. E agora, com dificuldade de colocar títulos longos aumentando, começava a surgir um deságio. Alguns do mercado começaram a pressionar para que a marcação a mercado não fosse feita. A norma da marcação a mercado já existia. A metodologia é que foi alterada, e o mercado começou a pedir tempo para que fosse feita. Dissemos: "OK, vocês têm tempo, mas comecem a fazer a marcação". E alguns não fizeram. Foi um erro deles, mas naquele momento não podíamos sair fazendo grandes discursos contra o procedimento do mercado, sob pena de desestabilizar ainda mais a situação. Quando começamos a observar que o deságio vinha aumentando, e alguns fundos não estavam marcando, ficamos extremamente preocupados por que, no evento de uma crise maior, como acabou acontecendo, o deságio aumentaria. Os mais bem informados teriam sacado e os menos informados, tipicamente o investidor pequenininho, estes iam ficar lá, segurando a banana de dinamite na mão. A perda teria sido transferida e amplificada para quem ficasse. Resolvemos matar essa bola no peito, agüentar o tranco e, de certa forma, levar a culpa.

Valor: Já havia uma crise de financiamento, o risco do calote estava colocado?
Arminio: Ah, já. Para quem estava lá, para nós, sim...

Valor: Vocês levaram o problema ao presidente Fernando Henrique?
Arminio: Tivemos várias conversas sobre esse assunto. Alguns do mercado foram ao Malan pedir sua interferência, mas ele defendeu a mesma posição nossa. Em poucas semanas, insistimos e fizemos a marcação. É fácil hoje falar que o Banco Central errou porque fez a marcação. Acho que a marcação deu um sinal para todos, para a classe política, para o mercado, para os investidores, de que algo muito sério estava acontecendo, que existia uma dúvida com relação ao futuro. Começamos a encurtar [o prazo dos títulos da dívida]. O que se pôde fazer, como uma espécie de cortisona para preservar a vida do paciente e tentar buscar algum tipo de solução, foi encurtar os prazos da dívida. Fizemos alguns swaps, tirando dívida longa do mercado. Isso ajudou. O Luiz Fernando [Luiz Fernando Figueiredo, então diretor de Política Monetária do Banco Central] pilotou um negócio que parecia extremamente confuso, mas era muito simples: o mercado não quer título com prazo longo e acreditamos que este é um movimento que não vai inexoravelmente nos jogar cachoeira abaixo. Então, vamos segurar enquanto dá e vamos buscar outra solução. Nosso diagnóstico, já cedo, antes da metade do ano, era de que essa era uma crise essencialmente política, que teria que ter uma solução política. Íamos fazer tudo que era possível na área monetária e fiscal, apertar todos os parafusos, e fizemos isso.

Valor: Lula ainda não estava na dianteira na corrida eleitoral. Então, não era por isso que o mercado estava desse jeito...
Arminio: Não era, mas em pouco tempo passou a ser.

Valor: Em relação ao deságio, representava uma grande preocupação do mercado com um futuro calote ou era uma queda de braço do mercado com o BC?
Arminio: Acho até que alguns do mercado podiam ter a visão de que, sem marcação a mercado, você conseguiria administrar melhor a situação. Nossa visão era - e hoje, olhando para trás, continuo achando que tínhamos razão - de que, sem a marcação a mercado, você iria ficar com a aparência de certa normalidade e, de repente, um belo dia, poderia ter uma corrida com uma crise muito violenta, com conseqüências distributivas extremamente terríveis.

Valor: Mas, de certa forma, vocês aceleraram a percepção, no mercado, de que havia o risco de alguma coisa acontecer.
Arminio: Não concordo. Esta era justamente a tese do mercado, que queria se defender. O Banco do Brasil colocou um anúncio nos jornais, dizendo que fez isso porque o BC mandou. Mas já existia a regra há muitos anos. Não era novidade. Você introduzir, no meio de uma crise, uma regra de não marcação a mercado seria uma irresponsabilidade monumental. Por que fica todo mundo na ilusão de que não precisava fazer nada e um dia surge um problema mais sério e há um prejuízo enorme. Na nossa visão, era melhor ter uma pequena queda nas cotas dos fundos - que assustou, evidentemente, mas que traria o problema à tona - do que ficar com a impressão de que está tudo bem e num belo dia você quebra. Nem todo mundo no mercado tinha a mesma visão. Tanto que alguns bancos fizeram a marcação, tomaram um tranco no primeiro momento, mas depois ficaram mais tranqüilos, por que, de fato, estavam mostrando aos seus clientes o que era a realidade. A proposta de não marcar a mercado era de esconder de todo mundo o que estava acontecendo, a maioria não tendo como checar, e ficar torcendo para não quebrar. Uma posição, a meu ver, um tanto irresponsável. Nossa postura foi deixar claro que existia um problema. Se era Lula, Ciro ou Garotinho, pouco importa. O fato é que existia uma desconfiança. E vocês têm que se lembrar que aquilo foi o início de uma campanha violentíssima, em que todos os candidatos estavam concorrendo entre si para ver quem gritava mais que estava tudo errado e a coisa não estava bem. Havia uma espécie de complô informal contra a situação, com esse discurso de que está tudo errado e vamos mudar tudo. Ora, se nem tudo está errado e os favoritos dizem que tem que mudar tudo, algumas coisas boas serão mudadas e, provavelmente, para pior. Aí, todo mundo olha e se apavora. Esse foi um episódio extremamente confuso, houve uma guerra de propaganda, em que o BC tinha que entrar no ringue de box com as mãos amarradas, por que, se fosse bater no mercado, provavelmente ia agravar a crise. Então, tomei a decisão de apanhar mesmo. Tudo bem, acumulei algumas fichas aqui e vou entregar agora, paciência. Não foi um período fácil. Talvez alguns desses passos pudessem ter sido refeitos de maneira um pouco mais suave ou coisa do gênero, mas no geral acho que não tinha outro caminho. Pensando grande, não pequeno.

Valor: Em que momento se decide fazer a transição com uma negociação com o FMI?
Arminio: A coisa foi amadurecendo ao longo do tempo, em várias frentes. O que estava na nossa cabeça era que seria preciso obter algum tipo de consenso entre os principais candidatos, para que ficasse claro que, independentemente de quem ganhasse, no início de 2003 o Brasil não iria cometer um suicídio econômico. Isso era extremamente difícil, por que a atuação dos três candidatos na campanha era agressiva, sem muito compromisso com os pés no chão, com a realidade de condução de uma política numa economia moderna, aberta como a nossa, e aí ficava difícil. Se você fosse olhar o histórico dos candidatos, especialmente do PT, não só o que era dito, mas tudo que tinha sido escrito por todas as lideranças do PT, era realmente um quadro apavorante. Então, nossa resposta foi, primeiro, buscar esse entendimento. Parecia-nos viável, por que era do interesse de qualquer um deles ter um país para governar. Certo? Aí foram feitas algumas ligações ....

Valor: Quem falou com quem?
Arminio: Coube a mim apresentar a cada um dos candidatos um quadro sobre a situação econômica. Talvez por eu ser, entre todos nós, o que estava mais ligado às coisas de mercado e que tinha menos carga política. Nunca tive vinculação ou ação partidária. As ligações foram feitas por todos nós. Foi discutido isso com o presidente Fernando Henrique, Pedro Parente, Pedro Malan, na Câmara de Política Econômica [fórum de ministros da área econômica que se reúne periodicamente no Palácio do Planalto]. Não me lembro exatamente quem ligou para quem.

Valor: FHC diz no livro dele que falou com o José Dirceu, o senhor com o Ciro Gomes, o Malan com o José Serra...
Arminio: Alguém tentou ligar para o Garotinho...

Valor: Que mandou dizer que não queria conversa...
Arminio: Foi. Acho que foi o Parente quem ligou para o Garotinho e para o Serra. As reuniões foram marcadas e eu preparei uma pequena apresentação, com algumas tabelinhas. Falamos um a um. Começou, se não me falha a memória, com o Serra, que marcou uma reunião no apartamento dele em Brasília, depois do jantar. Fui sozinho. E mostrei o que estava acontecendo com a taxa de câmbio, com o perfil da dívida, o perfil de vencimentos da dívida, as dificuldades de rolagem. [Esses encontros ocorrem entre julho e agosto de 2002]. Acreditávamos que, do jeito que a coisa ia, íamos chegar até o fim do ano aos trancos e barrancos, encurtando a dívida cada vez mais. Quem entrasse iria receber uma dívida pública que venceria em poucos meses. Ia ser um volume muito grande de dívida vencendo na virada do ano e, se algo não fosse feito, colocaria uma pressão enorme no governo, de monetização, risco de inflação, de disparada do câmbio e assim por diante. E que isso tinha a ver com a percepção de que o próximo presidente adotaria uma postura irresponsável, populista, e que inevitavelmente levaria a uma crise. Óbvio que, no caso do Serra, isso não tinha nada a ver com ele. O mercado estava com medo era de que ele não ganhasse. Não tive uma conversa política com o Serra, não era o meu papel nem minha praia. Ele ouviu aquilo, registrou... Com o Ciro, a reunião foi no Rio, na minha casa. Por sugestão minha, ele trouxe a mulher, Patrícia Pillar, e eu a minha, a Lucyna. Sentamos no escritório e conversamos longamente. Foi uma conversa tranqüila, as mulheres participaram, eu apresentei o cenário. Ele disse que tinha uma história de boa administração no Ceará, tinha sido ministro da Fazenda durante o Plano Real e que saberia lidar com a situação. Estou usando as minhas palavras, não posso colocar aspas, mas foi algo assim, nessa linha. O Lula não quis vir à reunião e enviou o hoje senador Aloísio Mercadante. Ele foi ao Banco Central em Brasília.

Valor: Ele ficou assustado com o cenário?
Arminio: Todos ficaram. A reação dele foi mais fechada. Disse: "OK, ouvi o seu recado..." Todos, no fundo, dizendo que entendiam a gravidade da situação e que iriam pensar sobre isso.

Valor: A Carta aos Brasileiros, que assegurava que o PT honraria contratos, não daria calote, já havia sido divulgada, porque é de 22 de junho de 2002.
Arminio: Mas não foi tranqüilizadora. O momento estava muito difícil. Após essas reuniões, eu fazia um relato aos meus colegas e ao presidente. No final, o presidente achou que, por eu ter participado dessas reuniões prévias, faria sentido eu participar também das reuniões dele com os candidatos [que começaram na segunda quinzena de agosto], uma vez que, nas reuniões comigo, todos registravam seu entendimento da gravidade da situação e também sua inclinação a dar uma resposta construtiva para a crise. Assim acabou acontecendo. Em paralelo a isso, estávamos conversando com o FMI, por que acreditávamos que seria necessária alguma ajuda para evitar um exagero de mercado. Quando o mercado passa de um certo ponto, você começa a ter conseqüências sérias e reais para a economia. Deixa de ser uma coisa especulativa e passa a ser real, e afeta o comportamento das empresas, das pessoas. Tínhamos muito receio disso e fomos ao FMI para negociar um acordo, uma linha de crédito grande, mais para o próximo governo do que para nós. O desembolso para nós seria de uma parcela de 20%. Saiu o acordo com o fundo [de US$ 30 bilhões] e o primeiro desembolso de US$ 6 bilhões, os outros ficaram para a outra administração....

Valor: O Fundo pediu um compromisso dos candidatos?
Arminio: O fundo não disse tem que ser assim ou assado. Foi um balé, uma dança de aproximação. Havia muita confiança do Fundo no Brasil naquele momento. Depois da crise de 1999 e da crise de 2001, e que pagamos antecipadamente as dívidas, o Fundo se sentiu confortável em trabalhar conosco. O que o Fundo quis, e foi muito pouco na época, era uma sinalização de que esse comportamento responsável continuaria ou alguma versão dele, pois não existe uma maneira única de se fazer as coisas. E, claro, o Fundo teria o direito de não desembolsar as outras parcelas se a política econômica descarrilasse em direção a algo não sustentável, populista. Foram inúmeras conversas nossas com o Fundo, na linha de sejamos razoáveis, num momento em que a campanha pega fogo no Brasil e no momento em que parece que há um concurso entre os candidatos para ver quem é mais radical, fica difícil exigir de um candidato algo muito formal. O que achamos que era razoável e suficiente é que os candidatos manifestassem publicamente o compromisso com o cumprimento de contratos. Era a forma meio cifrada de dizer que não iriam dar um calote. Eles toparam, ainda que nem sempre de maneira cristalina.

Valor: Nesse processo de negociação com o FMI, o senhor ou alguém do governo pediu aos candidatos essas manifestações?
Arminio: Depois das conversas prévias e de outras conversas telefônicas com os candidatos, ocorreram as reuniões formais no Palácio do Planalto, em que cada candidato foi conversar com o presidente. Do lado do governo, éramos quatro: o presidente, o Malan, o Scalco [Euclides Scalco, ministro da articulação política] e eu. Quando o presidente decidiu me escalar para as reuniões, mandou dizer aos quatro candidatos que eles poderiam trazer mais três pessoas. Foi nesse momento que surgiu o Palocci, que não estava na lista original do PT, que tinha apenas o Mercadante e o José Dirceu. Foi a primeira vez que tive um contato mais próximo com ele. Nesse dia, o Palocci me puxou num canto, na saída, e disse que gostaria de ter uma conversa depois comigo. Eu disse: "Claro, com o maior prazer". Isso foi numa quinta-feira, eu ia para o Rio, e ele disse: "Não tem problema, nos encontramos na sexta-feira à noite no Rio".

Valor: E como foi esse encontro com Palocci?
Arminio: Para mim, foi muito marcante, por que eu tinha medo do que viria, de que na virada de governo se pudesse ter uma inflação muito alta e até um tipo de calote. A economia estava na UTI e estávamos tentando amarrar o paciente, dar sangue, oxigênio, olhando aqueles monitores loucos. A conversa com o Palocci, para mim, foi uma janela que se abriu. Muito bom senso, um prefeito experiente. Ele contou um pouco a história dele, que viu, na gestão do dia-a-dia, o que dá para fazer e o que não dá, o que é ideologia e o que é bom para o povo. Ele passou muita tranqüilidade. Fiz uma série de ponderações, me preparei para essa reunião, que foi a primeira de uma série que tivemos. Fui o primeiro a ter uma reunião com ele e fiquei aliviado. Dormi bem aquela noite e no dia seguinte liguei para o Malan e para os diretores das áreas de mercado do BC. Falei: "Pessoal, vai dar. Vamos acreditar que vai dar". E deu. Para nós, ia dar lá na frente. Não estava claro que, de repente, ia tudo se acalmar. Mas naquele momento ficou claro que tinha saída.

Valor: Que não ia ter calote....
Arminio: Isso, que não ia ter calote, que ia ser uma resposta pragmática. Pouco tempo depois, com o Lula já liderando as pesquisas mais ou menos confortavelmente, teve o desmoronamento da candidatura do Ciro Gomes, que, enfim, teve uma série de tropeços e sumiu. Ficou claro que era Serra contra Lula e que o Lula estava na frente e era favorito para ganhar. E o mercado, obviamente, nesse momento, superantenado, todo mundo, as empresas, as pessoas, dizendo: "Bom, e aí? E agora?". Lá por setembro, o Lula fez um discurso, começou a acalmar a situação e, quase na mesma semana, o mercado internacional, que ainda vinha da crise de 2001 com indicadores de risco lá no alto, naquele momento virou também. [O risco-país cai de 2.396 pontos-base em setembro para 1.745 em outubro; a taxa de câmbio, que em setembro bateu em R$ 3,76, em outubro é de R$ 3,63]. Os bancos centrais começaram a reduzir juros e foi o início de uma fase que dura até hoje, extraordinária. Isso foi setembro de 2002. Ali já estava claro que a coisa ia melhorar. Os bancos centrais todos injetando quantidades imensas de liquidez no mundo e, aqui no Brasil, uma mudança de discurso muito importante, do candidato de oposição que estava à frente das pesquisas. Aí começou o trabalho de transição mais organizado e o Palocci foi nomeado coordenador da transição.

Valor: Essa fase benéfica do mercado internacional, na sua visão, está acabando?
Arminio: Não. Os mercados levaram um solavanco, mas continuam bons.

Valor: Mas já não é mais uma coisa tão cor-de-rosa...
Arminio: É verdade, a incerteza aumentou. Mas a expectativa ainda é de uma evolução favorável da economia mundial. Acredito que o crescimento, que foi de uns 4% nos últimos anos, ainda fique acima de 3%.
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Quando as pesquisas mostraram que poucos dos votos de Roseana iriam para Serra, acendeu-se uma luz amarela, cor de laranja e começou a dificuldade de rolagem
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Valor: Voltando à transição, Palocci começa a conversar com o senhor sobre a possibilidade da sua permanência por mais seis meses no BC?
Arminio: Isso foi um pouco depois da eleição. O Lula já havia dito que trocaria todo mundo, mas depois isso [a possibilidade de ficar por mais seis meses] voltou.

Valor: O namoro do governo com o senhor era do Palocci ou chegou a ser do presidente Lula?
Arminio: Não, não. Se é que se pode chamar isso de namoro, o contato e o bom relacionamento de trabalho nas coisas financeiras eram comigo e depois o Palocci teve um contato maior com o Malan.

Valor: Não tinha uma parte do PT que queria que o senhor ficasse?
Arminio: Isso eu não sei. Ao longo do tempo, conversando com Palocci, e sendo um pouco pressionado pela imprensa, e depois de conversar com alguns colegas, anunciei que toparia ficar por seis meses, fosse quem fosse o vencedor. O Palocci queria isso, chegou a conversar comigo várias vezes.

Valor: Foi José Dirceu quem verbalizou que o senhor sairia.
Arminio: É, mas acho que muito em cima do fato de o candidato ter dado uma declaração pública de que trocaria todo mundo. Chegou a mim o recado de que não era nada pessoal, mas que era uma situação que não tinha volta. Para o candidato Lula, isso não faria sentido. Hoje em dia, acho que foi melhor eu ter saído.

Valor: Por quê?
Arminio: Por que acho que o crédito do trabalho que foi feito teria ido para mim, por que eu estava lá, tinha passado por outras crises no passado, quando na verdade o crédito teria que ter ido, como foi, para eles. Assim também como a culpa. Acho que a culpa de tudo isso foi de expectativas baseadas numa vida de declarações e documentos de que uma gestão do PT seria desastrosa. E o crédito é todo do PT por ter desfeito essa avaliação. Estávamos ali para facilitar. Acho que cumprimos bem nosso papel de orientar, de mostrar, por dentro, a realidade nua e crua, prática, da vida de um governante no meio de uma crise. Palocci, em um segundo, concluiu que seria realmente importante seguir na linha que estávamos propondo, se é que ele já não achava isso antes.

Valor: Vocês não tiveram participação na elaboração da Carta aos Brasileiros, mas a inspiração para fazê-la, que seria importante botar algumas coisas no papel, veio de vocês?
Arminio: Não sei se Malan ou Pedro Parente disseram alguma coisa para Palocci ou Zé Dirceu. Mas creio que não. Acho que veio de lá mesmo.

Valor: Houve um momento em que o senhor estava conversando no exterior com investidores e saiu daqui uma declaração do Zé Dirceu de que "o Armínio está fora".
Arminio: E houve declaração mais dura do candidato também. Depois, o Palocci me convidou e tive duas reuniões já com o presidente eleito Lula. Uma primeira, na Base Aérea, da qual participaram o Zé Dirceu, Palocci e Marco Aurélio Garcia. Foi uma conversa de mais de uma hora sobre economia, o que estava acontecendo, muitas perguntas dirigidas a mim, por que isso, por que aquilo, sobre questões básicas do dia-a-dia da economia e sobre reformas.

Valor: E a outra reunião?
Arminio: Foi em São Paulo, só Palocci, Lula e eu. Chamou-me atenção na conversa como o Lula dominou totalmente a discussão. Falava no geral com muita convicção de que ele não faria nenhuma loucura, transmitindo um certo pragmatismo. E muitas perguntas sobre os vários tipos de reformas que eu achava que tinham que acontecer para o país crescer, ter juros mais baixos, reforma da Previdência, respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, temas da área trabalhista. Havia uma postura sobre a reforma trabalhista ali que me deixou mais animado naquele momento do que com o que veio a acontecer. Depois, o Palocci foi muito gentil e me revelou que tinha achado que a conversa tinha sido muito boa e que se ele, Lula, tivesse me conhecido antes, talvez não tivesse me rechaçado como rechaçou. Acredito que ele teria rechaçado de qualquer jeito, mas talvez tivesse sido um pouco menos, assim... por que ele viu que eu estava querendo ajudar, que não estava me envolvendo na campanha e que, portanto, ele podia, de certa forma, confiar em mim.

Valor: Nesse momento, o Tesouro já tinha começado a colocar papel mais longo? Deu para desconcentrar os vencimentos previstos para o início do ano?
Arminio: Começou a aliviar. Desconcentramos muito pouco, mas deu. [Em janeiro de 2002, o risco-país está em 865 pontos-base; em setembro, chega ao máximo, de 2.396, e cai, até 1.439 em dezembro. O dólar começa o ano em R$ 2,4140, chega a R$ 3,47 em julho, R$ 3,76 em setembro e termina a R$ 3,5450 em dezembro]

Valor: Como começaram as conversas com o Fundo Monetário ?
Arminio: As conversas com o FMI foram com o Koehler [Horst Koehler, então diretor-gerente do FMI], o Anoop Sing [diretor do Hemisfério Ocidental] e Anne Krueger [diretora-gerente adjunta]. Tínhamos tido um acordo em 2001, que foi relâmpago. Eu por acaso estava em Washington quando a coisa esquentou e decidimos, por telefone, falar com o Fundo. Eu fazia parte de um grupo que discutia as reformas do FMI e saí um pouco daquelas conversas para falar com a Anne e com o Koehler. Foi uma negociação muito rápida, no momento de pânico no mercado de câmbio, no meio da crise da Argentina. Ali conseguimos dinheiro e redução do piso das reservas. Em 2002, o processo foi mais lento. Claro, era uma linha muito maior, de US$ 30 bilhões, num momento muito mais complicado. O Amaury Bier [secretário executivo do Ministério da Fazenda] conduziu e nós, do lado de cá [no Banco Central], também demos uma ajuda.

Valor: Não havia uma discussão política nessa negociação?
Arminio: Falamos com muita gente do Fed [o banco central americano], do Tesouro americano, explicando que queríamos criar incentivos para o próximo presidente, fosse quem fosse, tomar decisões que preservassem a estabilidade da economia brasileira. O colchão de recursos era mais um incentivo para o próximo presidente se comportar.

Valor: Algo na linha de se o novo presidente encontrar tudo deteriorado, aí se estaria realizando o pior cenário, por que não teria jeito se não dar um calote?
Arminio: Era para evitar uma espécie de bolha negativa, de pânico, uma corrida, coisa do gênero. Se tivesse algum dinheiro, a chance de ter uma corrida cambial diminuía e haveria mais chance de se criar um círculo virtuoso de boas políticas, com bom desempenho financeiro, como acabou acontecendo, apesar de aquele ano ter sido de recessão [em 2002 o PIB cresceu 1,9%].

Valor: Como foi a conversa com Lula, que depois ele contou, de que o senhor tinha dito a ele que entregava o país na UTI?
Arminio: A conversa foi a da Base Aérea. O que eu disse foi que o país estava na UTI, mas que isso era apenas a conseqüência de expectativas com relação ao que o próximo governo faria. E que o próximo governo, portanto, poderia desfazer essa impressão e tirar o país da UTI. Eu fui à imprensa na ocasião para retificar isso, porque parecia que eu estava dizendo que o governo FHC tinha jogado o país na UTI, e não era isso.

Valor: Houve comparações entre a forma como o senhor conduzia a política de metas e a da atual direção do BC, dizendo-se que o senhor era mais flexível.
Arminio: Acho que, se aconteceu alguma mudança, foi sutil. As taxas de juros no nosso período foram muito altas também. Tentamos reduzir quando se abriu uma janela e creio que eles também foram nessa direção. Acho que a escolha da meta de 5,1% [para 2005], depois de um ano em que a inflação acabou sendo 7,6%, criou realmente um desafio difícil para o BC. Este, para mim, é o ponto-chave. Existem outras diferenças, na forma de se comunicar e na transparência que dávamos e a que eles dão. Tenho a impressão de que essa equipe acabou sendo mais do tipo Banco Central Europeu, enquanto nós éramos mais Banco da Inglaterra e talvez um pouquinho Fed. Tínhamos desde o início, e isso foi desenvolvido depois com mais detalhes, a postura de procurar quantificar mais os choques de oferta, de administrar mais esses choques, preços administrados, as inércias, enquanto a atual equipe tem privilegiado muito pouco esse tipo de trabalho, metas ajustadas. A equipe atual é mais alemã, nesse sentido, do que fomos.

Valor: No fundo, um "trade-off"?
Arminio: A definição dos 5,1% para 2005, que aconteceu em setembro de 2004, talvez tenha sido o ponto mais importante. Eles definiram antes do final do ano, a inflação do ano veio mais alta e eles decidiram ignorar, e acho que em função disso eles ficaram com essa imagem. Nós também, no início, aumentamos os juros para 45% ao ano, em 2001 fizemos a mesma coisa, em 2002 também. Então, não havia nenhuma frouxidão da nossa parte, assim como acho que não existe nenhum sadismo da parte da equipe atual. Privilegiamos a redução de juros e eles colocaram muita ênfase na desdolarização. Tem muita coisa que você pode fazer com o vento a favor. Alongar a dívida, desdolarizar, acumular reservas, reduzir juros. Eu diria que demos foco maior na redução de juros e eles deram bastante ênfase na desdolarização. Talvez em ambos os casos tivesse sido melhor fazer alguma coisa intermediária. Nós não desdolarizamos muito.

Valor: Que vantagens haveria na escolha de uma ou outra coisa?
Arminio: É uma questão de julgamento do que é prioritário. Não há na teoria econômica nada que diga que tem que ser de um jeito e não do outro. A única coisa que a boa teoria econômica diz é que, se você tem muitas distorções na economia, o que é garantido é que, se for reduzindo todas gradualmente, ao mesmo tempo, é bom. Agora, se você escolhe o caminho de privilegiar uma ou outra, pode dar problema. Não foi o caso aqui, eu diria. A nossa visão é que a maior aberração do panorama econômico brasileiro era e continua a ser a taxa de juros, e não a taxa de câmbio. Então, fomos na direção de trabalhar com a taxa de juros.

Valor: A seu ver, por que agora foi dada prioridade para desdolarizar a dívida se não havia nenhum risco no balanço de pagamentos no curto prazo?
Arminio: Acho que alguma desdolarização era recomendável. Isso era visto pelas agências de "rating", pelos analistas em geral, como sendo uma das fragilidades do país. Acho que o resultado final foi bom. A atual equipe do BC apanhou em 2005 calada. Mas acho que o resultado final foi bom. A inflação está baixa, acumulou-se muita reserva, e cresceu-se um pouco menos nesse período. É possível que mais adiante se recupere isso. Não dá para dizer que desse jeito foi pior com certeza. Ninguém pode fazer esse julgamento. Não tem como voltar atrás e rodar o filme com uma outra seqüência.

Valor: Chega-se hoje com uma certa tranqüilidade em relação ao arcabouço macroeconômico. Ninguém está questionando o regime de metas ou propondo transformar superávit em déficit ou mudar o regime cambial. Esse arcabouço, construído em boa parte [regime de metas e câmbio flutuante] durante sua gestão no BC, é um modelo para muitos anos?
Arminio: E com austeridade fiscal, que foi uma visão adotada antes de minha ida para o governo.

Valor: É, meia hora antes de sua chegada... [risos]
Arminio: Não é verdade. Isso foi crucial. Nenhum arcabouço é à prova de bala, à prova de desaforo, e este também não é. Mas precisa ser bem administrado. Para mim, hoje é ponto pacífico que, se o gasto público continuar a crescer, vamos ter problemas, mesmo se a carga tributária crescer em paralelo (o que seria outro problema), para manter o superávit primário [saldo entre receitas e despesas correntes para pagar a conta de juros]. Isso não foi resolvido nas duas administrações FHC e não será resolvido neste período que estamos vivendo.

Valor: Mas o pessoal não ficou batendo, de forma equivocada, só na taxa de juro?
Arminio: A questão pode ser examinada por mais de um prisma, se não, não se explica uma taxa tão alta. Tem um lado fiscal estrutural, em que, hoje em dia, os holofotes estão em cima dos gastos públicos e não mais do primário, porque se tem um superávit muito grande. E o resto são questões de crédito. Não acredito que se explique um juro tão alto como o nosso só com questões fiscais. Acho que, para entender o juro real que tivemos nos últimos anos, principalmente nesse período de trabalho de contração monetária para desinflação, há outras questões, que têm a ver com as dificuldades de uso da política monetária. Num ambiente em que você tem pouco crédito na economia, a alavancagem num aumento da taxa de juros é menor do que num ambiente em que você tem mais crédito. Aqui no Brasil, o volume do crédito livre é pequeno e tem prazo curto, enquanto na maioria dos outros países você tem mais crédito e de prazo mais longo. Então, lá, quando você mexe na taxa de juros, você tem impacto maior. Além disso, nos últimos anos, em função de uma série de inovações jurídicas e regulatórias muito boas a longo prazo, houve um crescimento muito acelerado do crédito. Então, ele é pequeno e ainda está crescendo. Ora, o impacto da política monetária se faz sentir em boa parte através de uma contração de crédito. Quando, ao invés de o crédito estar se contraindo, ele está se expandindo por outras razões, o BC tem que trabalhar em dobro e o câmbio teve que trabalhar também para dar uma contribuição maior do que seria de se esperar.

Valor: Contribuição para conter a inflação?
Arminio: É.

Valor: O atual BC diz que, se tivesse errado a mão na taxa de juros, a inflação de 2005 teria ficado abaixo da meta, e ela ficou acima.
Arminio: Exatamente. Acho que este é um bom ponto. A única crítica possível aqui é que talvez a trajetória de queda da inflação tenha sido ambiciosa demais, poderia ter sido mais lenta, como foi no Chile ou no México. Mesmo aí eu tenho minhas dúvidas, por que, no momento em que você anuncia uma trajetória de queda mais lenta, você muda também as expectativas e torna mais difícil. Esse assunto é bem complicado.

Valor: Mas não há problemas de inflação inercial? O que tivemos de taxa de juros desde 1994 não é brincadeira e ainda nos últimos cinco anos a média de inflação é de 8,2%. Alguma coisa não está funcionando. É o mecanismo de transmissão da política monetária? Ou é um problema de uma economia totalmente oligopolizada, por exemplo?
Arminio: É evidente que a grande aberração que existe hoje na economia brasileira é a taxa de juros. Não acredito que você possa explicar fenômeno de tamanha grandeza com uma explicação só. Acho que precisa de várias. As minhas são: uma história ruim e, portanto, falta de credibilidade da moeda; um arcabouço fiscal ainda frágil, com gasto público crescendo a uma taxa real de quase 10% ao ano nos últimos dez anos, e, portanto, gerando medo de que no futuro você vá ter que inflacionar para lidar com essa questão da dívida; e questões ligadas à dificuldade de se reduzir a inflação com mecanismos de transmissão fracos. Acredito que, quando a inflação chegar aos níveis das metas, pelo menos a parte que diz respeito a mecanismos de transmissão fracos vai desaparecer. Aí vai ficar um pedaço que tem a ver com história e com a fragilidade do regime fiscal. Mas isso talvez explicaria uma taxa de juro real de 5%, 6%, não de 10%, 12%. Tanto isso parece ser verdade que a taxa de juros de longo prazo embutida na curva das NTNs esteve em torno de 7,25%. Hoje, está na casa dos 9%. Temos no próprio mercado sinais de que essa minha hipótese pode ser verdade. Agora, temos que correr atrás do lado fiscal para resolver os outros 7,25%, para levar isso para 4%. Vai precisar que o próximo governo faça um choque de corte de gastos e de eficiência e que faça as reformas na Previdência. Isso é viável. E, se isso acontecer, acho que o país tem tudo para entrar numa fase muito boa, de juros baixos, de mais investimento, de mais crescimento. Especialmente, se der atenção também às questões da oferta, ambiente regulatório, tributária, questões trabalhistas etc. Se fizer essas coisas, não há nada estruturalmente errado no Brasil. Agora, temos esses problemas institucionais, e de certa maneira históricos, que precisam ser contornados.

Temos uma economia oligopolizada e é um reflexo dessas questões regulatórias, tributárias, que dificultam a vida das empresas pequenas e médias. Então, há grandes concentrações em cada setor da economia e isto impacta a economia, mas não pelo lado da taxa de inflação. Afeta a margem, os oligopólios têm margem maior. Numa economia híper-regulada, híperprotegida, essa elite entre aspas que se estabeleceu ao longo do processo de industrialização finca raízes - políticas, inclusive - e procura influenciar o processo e se perpetuar. Nossa distribuição de renda é ruim, mas não é acidente, não. Tem uma longa história, que, muitas vezes, vem embrulhada na bandeira brasileira e todo mundo compra como se fosse uma coisa maravilhosa para o povo, mas é um grande engodo. Qualquer idéia nacionalista de vamos proteger aquele setor, nossa intuição é que isso é bom, mas infelizmente o impacto social disso não é bom. Mas é difícil entender, é complicado explicar que é concentrador de renda, de poder.

Valor: Mesmo um governo do PT não conseguiu romper essa estrutura...
Arminio: Com certeza. Esta é uma estrutura tradicional, as empresas oligopolizadas lidando com os grandes sindicatos, e o resto do povo, que não é sindicalizado, que se vire. Essa estrutura é clássica.

Valor: O que hoje contribui mais para domar a inflação: a taxa de juros ou a taxa de câmbio?
Arminio: Um pouco dos dois e eles estão interligados, mas você consegue explicar quase que a totalidade da queda da inflação dos últimos três anos pela valorização do câmbio.

Valor: E se o crédito carimbado fosse descarimbado e se tornasse livre e passível de ser influenciado pela política de juros, se a TJLP [taxa de juros de longo prazo cobrada nos financiamentos do BNDES] passasse a ser uma taxa mais próxima da Selic [taxa básica de juros definida pelo Copom], essa mexida no crédito direcionado seria a saída?
Arminio: A saída, com o tempo, é ter um mecanismo de transmissão da política monetária mais poderoso. Para isso, você tem que ter mais crédito na economia e um ambiente mais livre. Mas enquanto você está na transição isso cria outros problemas, como esses que vivemos aqui recentemente. É importante ter um bom entendimento sobre isso por que, se esse meu diagnóstico estiver correto, na medida em que a inflação chegue aos níveis desejados, às metas, provavelmente os juros vão cair mais do que se imagina. O crédito carimbado, com o tempo, precisa ser abolido ou o subsídio aplicado de maneira diferente. Tentamos no governo acabar com o Sistema Financeiro de Habitação e dar o subsídio direto na veia do tomador, que é uma maneira muito mais eficaz de dar o subsídio sem vazamento e com muito mais potencial de alavancagem. Mas o setor na época fez um baita "lobby" contra e a coisa não andou. Assim como acho que, com o desenvolvimento do mercado de capitais, alongamento dos prazos e queda das taxas de juros, você não vai precisar ter TJLP e o papel do BNDES deveria minguar. Não creio que seja algo para amanhã, mas, a longo prazo, seria natural que isso acontecesse.

Valor: O que falta hoje para completar o quadro institucional do regime de metas? É fundamental que o BC tenha autonomia operacional?
Arminio: É importante formalizar e é importante que ocorra de forma madura, para que não se mude de idéia. Esses mecanismos são todos muito frágeis. O que vale mesmo é criar uma tradição. Se aquilo é algo bom, por ser bom você não mexe. Resta saber se estamos prontos para isso. Quase todos os bancos centrais do mundo hoje operam com um sistema de metas, formais ou informais. É muito difícil imaginar um governo que abra mão de controlar a inflação de uma maneira crível. O custo é muito alto. É preciso ter um pouco de flexibilidade, mas o sistema de metas dá essa flexibilidade, não é uma camisa de força absoluta, é um sistema de transparência que obriga o BC a explicitar por que está tomando certas decisões, por que às vezes aceita inflação um pouco mais alta e como pretende lidar com isso. É um sistema de transparência.

Valor: Credita-se ao sistema de metas a responsabilidade por estarmos com taxas de juros tão altas. Não tivéssemos o sistema de metas, o senhor acha que estaríamos com taxas de juros altas do mesmo jeito?
Arminio: Talvez a taxa de longo prazo fosse até mais alta. Hoje, você tem uma curva de juros invertida, o que é bom, por que tem juros de longo prazo mais baixos. Não tem muita mágica nessa área. Se você não tiver um sistema de metas, vai ter que construir essa credibilidade de alguma forma. O que acreditávamos é que o sistema, por institucionalizar a coisa e dar transparência, abreviaria o tempo necessário à conquista dessa credibilidade. A credibilidade é útil por que você sempre enfrenta problemas e, se tem credibilidade, não precisa mexer tanto nos juros para controlar as expectativas.

Valor: Houve um momento em que as coisas pareciam ir tão bem que vocês chegaram a fixar a meta de inflação de 3,5% para 2002 e de 3,25% para 2003, mas, na média, durante a vigência do regime de metas, a inflação média foi da ordem de 8% .
Arminio: Em 2000, escolhemos a meta para 2002. A meta para 2001 era de 4% e naquele momento as expectativas para 2001 estavam cravadas em 4%. Então, nossa idéia era caminhar para uma inflação em torno de 3,5% e decidimos dar um passo nessa direção, reduzindo em 0,5 ponto, dado que na hora da escolha já se esperava que a inflação do ano fosse 4%. Quer dizer, não era um esforço tão grande, se tudo desse certo, levar de 4% para 3,5%. Daí vieram as crises de 2001, 2002, megadepreciações cambiais, megacrises de confiança, especialmente 2001, 2002 e a inflação ficou mais alta.

Valor: Por que a economia brasileira sobrevive com inflação maior que no resto do mundo?
Arminio: Havia no Brasil uma ilusão de que inventamos aqui um sistema de indexação que permitia conviver com a inflação sem custo. Hoje, sabemos que isso não é verdade. Não existe função para a inflação. Pegue o caso do orçamento. É verdade que, se você tiver inflação alta, consegue administrar com mais facilidade o resultado do orçamento. Mas o processo orçamentário fica altamente prejudicado, as decisões orçamentárias, que são decisões importantes para a sociedade, acabam ocorrendo na prática na boca do caixa. Se você liberar um pagamento, uma semana depois ou um mês depois ele vale 10% menos. Mas será que este é um direito de quem opera o caixa ou um direito de a sociedade ter um orçamento para valer? Além do mais, a inflação pune os mais pobres, enquanto os mais ricos conseguem aplicar seu dinheiro, não perdem praticamente um centavo com a inflação.

Valor: Vira e mexe, surge a idéia de um juro menor, ainda que seja em troca de uma inflaçãozinha...
Arminio: Você pode ter um juro menor por um período. Ai, quando a inflação subir um pouquinho, para ela não continuar a subir você vai ter que aumentar o juro e, na verdade, você não comprou nada, você criou confusão. Daqui a pouco, a inflação vai subir mais, você criou instabilidade, e o Banco Central tem que agir. É melhor ter algo mais previsível, estável.

Valor: Qual o momento mais difícil para o senhor: na transição para o governo Lula ou na sua chegada como presidente o BC?
Arminio: Foi na transição, por que, na chegada, para mim parecia claro que o país precisava fazer um aperto fiscal, precisava deixar o câmbio flutuar e que, se fosse feito o ajuste fiscal e a política monetária fosse reestruturada para lidar com a inflação, a coisa iria se resolver, como de fato se resolveu. Não que tenha sido fácil, foram momentos difíceis, extremamente tensos...

Valor: Naquele momento, a CPI dos bancos atrapalhou?
Arminio: A CPI dos bancos, para quem olhava como observador, como eu, que não vivi por dentro as questões políticas, parecia ser uma CPI que tentou pegar um governo que naquele momento estava fragilizado. Criou certa tensão, mas nada parecido com o que aconteceu em 2002. Em 2002, era muito angustiante, por que sabíamos que pouco do que estava ao nosso alcance teria impacto na situação de crise que vivíamos, por que a crise estava ancorada no futuro, e o futuro não estava em nossas mãos.

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