Aplicável a governos que pretendem dominar todos os poderes...
Contraconstitucionalidade
CESAR MAIA
29 Setembro 2007
O POLITÓLOGO E historiador argentino Natálio Botana é, provavelmente, o intelectual latino-americano com maior capacidade de articular a instância teórica com a conjuntura. Ele tem a oportunidade de fazê-lo quinzenalmente, nas páginas do "La Nación".
Em artigo publicado semanas atrás, Botana introduzia a idéia de contraconstitucionalidade, ou seja, a tendência do Poder Executivo querer ter a hegemonia sobre o Legislativo. E vê isso como uma deformação continental. Nesse mesmo artigo, ele falava do "paradoxo do sucesso", isto é, ao contrário de outras regiões, na América Latina o sucesso econômico de um governo o torna mais autoritário.
No dia 1º de junho, Botana deu seqüência a essa análise embasando-se no comportamento político do governo Kirchner. Mas suas reflexões se adaptam tanto à realidade brasileira, que o melhor seria reproduzir o artigo inteiro. Vou tentar resumi-lo, buscando ser o mais fiel possível. Botana diz que a pluralidade é um fato social e não pode se confundir com pluralismo político, que é uma arte difícil de executar. As sociedades que foram capazes de converter pluralidade em pluralismo político, diz ele, acertaram no alvo do bom governo republicano.
Nelas, interatuam dois ou mais partidos no marco de uma Constituição e um conjunto de regras fielmente acatadas por governantes e governados, acrescenta. Caso contrário, há um quadro de permanente confrontação.
A contraconstitucionalidade tem como primeira característica a cooptação de antigos adversários para fundi-los em um novo movimento. A segunda é o debilitamento constante dos partidos políticos. O caso brasileiro introduz uma novidade, que é o Poder Executivo debilitando seu próprio partido, para que o presidente não seja afetado em sua popularidade. A terceira é a pretensão de impor o exercício da democracia baseado em maiorias dominantes e não em maiorias limitadas.
O método de cooptação - cuja modalidade brasileira no governo do PT-Lula foi o mensalão - é típico dos grandes movimentos populistas envolventes e inclusivos, afirma Botana.
Quando há o pluralismo político de partidos, o que prevalece não é a cooptação, mas a oposição competitiva e até governos de coalizão
Segundo o autor, é possível detectar nesses movimentos um centro de gravitação encarnado no rol hegemônico do Poder Executivo, que atrai outros setores partidários, estes em busca de proteção e recompensas.
Nessas operações, a nítida diferença entre os que estão dentro do "movimento" e os que ficaram de fora é decisiva. O chefe do "movimento" é quem traça a linha de demarcação.
Segundo Botana, essa relação amigo-inimigo pode chegar ao extremo de uma perseguição por parte de quem está no poder contra a oposição.
Quando se pratica sinceramente o pluralismo político de partidos, o modelo que prevalece não é o de cooptação, mas o de oposição competitiva e até, em certos casos, o de coalizão de governo. Esse estilo requer a preservação da identidade partidária, avalia, coincidindo com a crítica do quadro brasileiro, onde o PT não tem mais nenhuma identidade política.
E, como se estivesse tratando das tentativas de cooptação de setores do PMDB, ele conclui: não há democracia sem regra de maioria, mas tampouco há democracia se esta maioria, em lugar de atuar dentro das margens do pluralismo político, tende a dividir os partidos, incorporando no seio de seu movimento parcelas dos mesmos para se transformar em maioria dominante. Essa concepção movimentista e hegemônica tem complicado nossa história política, diz ele.
Pode-se dizer o mesmo para o Brasil. Botana termina o artigo afirmando que esses postulados acerca do reconhecimento do adversário em sua diversidade, riqueza e capacidade para exercer alternativamente o poder não são simples de coordenar.
Se tomarmos a América do Sul como um todo, as idéias de Botana servem muito mais para entender essa lógica do que o populismo tradicional.
A busca de redefinir as regras constitucionais num momento de popularidade, convocando uma Assembléia Constituinte - como o fez Chávez e o faz Morales, trata apenas de garantir a hegemonia do Executivo sobre o Legislativo e, como movimento, a perpetuação no poder, com um verniz legal a um golpe branco. O enquadramento do governo Lula - antes pelo mensalão e, depois, pela criação de um movimento informal dependente da popularidade do chefe para incorporar segmentos de outros partidos (metade dos diretórios do PP no Brasil estão com Lula etc.) - sob o véu do uso abusivo das medidas provisórias vai caracterizando esse quadro de contraconstitucionalidade.
Se essa análise serve para a Argentina de hoje, ela serve também para o Brasil de hoje, mesmo que observadas as diferenças.
CESAR MAIA, 61, economista, é prefeito do Rio de Janeiro pelo PFL.
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