sexta-feira, agosto 14, 2009

485) Democracias de fachada: como manipular

O buraco negro da manipuladura
AUGUSTO DE FRANCO
Folha de S. Paulo, 13 de agosto de 2009, p. A-3

A democracia também não tem proteção eficaz contra o uso de procedimentos democráticos (como as eleições) contra ela própria

A DEMOCRACIA surgiu na velha Grécia como um movimento de desconstituição de autocracia. O motivo fundante foi evitar a volta de tiranias como a dos psistrátidas.
Para tanto, foram criados procedimentos e mecanismos que, mal ou bem, cumpriram sua função nos cem primeiros anos da experiência. Reinventado pelos modernos, o software democrático manteve ativa tal funcionalidade. De sorte que, nos últimos dois séculos, as democracias floresceram, e as ditaduras feneceram.
Péricles e seu "think tank" ateniense (o núcleo do "partido" democrático ao qual pertenciam Protágoras e Aspásia) já haviam se dado conta em meados do século 5º antes da era comum que a democracia nascia com um defeito genético: ela não tinha proteção eficaz contra o discurso inverídico. E ainda não tem: contra um Címon jactante ou contra um Sarney resiliente (na mentira), pouco podem as regras da democracia.
Não se deram conta, porém, os fundadores, de que a democracia tinha outro gene defeituoso, que só foi ativado recentemente, após a última onda democratizante do século 20, que sepultou as ditaduras latino-americanas (com exceção de Cuba) e os regimes autocráticos da ex-URSS e do Leste Europeu.
Esse gene recessivo revelou-se como um erro de projeto: a democracia também não tem proteção eficaz contra o uso de procedimentos democráticos (como as eleições) contra ela própria.
O primeiro pensador democrático a antever os efeitos devastadores do uso da democracia contra a democracia foi John Dewey, que percebeu as armadilhas da sua instrumentalização a serviço da conquista do poder de Estado. E o último a teorizar sobre isso com consistência foi, sem dúvida, Ralf Dahrendorf, que constatou que apenas a eletividade não é um critério capaz de garantir a legitimidade dos regimes tidos por democráticos.
O fato é que uma nova onda autocratizante começou a se avolumar após o breve sopro democrático dos anos 80 e 90. Agora as ameaças à democracia não vêm mais das ditaduras clássicas, em que grupos autoritários empalmavam o poder por golpes de força. Não, agora elas vêm de governos eleitos por larga maioria que, depois, ocupam e pervertem as instituições da democracia para controlá-las.
São governos que foram, sim, eleitos democraticamente, mas para conseguir um aval para não governar democraticamente. Suas primeiras providências são perseguir os meios de comunicação e abolir a rotatividade democrática.
São as protoditaduras, como as que se instalaram na Federação Russa, na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua. E a inclusão virtual do Paraguai, de Honduras e de El Salvador nessa lista evoca o "efeito dominó".
Pode-se dizer que, com exceção da Rússia, a grande "autocracia do petróleo e do gás", são, todos eles, Estados-nações inexpressivos.
É verdade, mas o problema é que essas protoditaduras são apoiadas politicamente por uma retaguarda importante ("mais civilizada", nem que seja por força da maior complexidade das suas sociedades), composta por democracias formais parasitadas por governos neopopulistas manipuladores, como Brasil e Argentina. Estas representam um fenômeno lateral na nova onda autocratizante, para o qual a análise política ainda não cunhou um termo: na falta dele, caberia designá-las, com perdão do neologismo, de "manipuladuras".
Menos mal para nós que Lula não seja um Putin (agente de um "partido" de assassinos, a KGB, sob o silêncio cúmplice do mundo) ou um Chávez (promotor de uma revolução bolivariana, inclusive financiador de ações de luta armada, também sob o silêncio irresponsável do mundo).
Péssimo para nós que nosso presidente continue prestando apoio político aos próceres do bolivarianismo e a seus pupilos (como agora a esse caudilho Zelaya). Se os governantes de um país importante como o Brasil podem entrar na nova onda autocratizante, mesmo que na sua retaguarda política -e ninguém diz nada, porque, convenhamos, oposição de verdade não há por aqui-, estamos correndo sério risco: nós e as demais sociedades latino-americanas que ainda não tombaram nesse "efeito dominó".
Será apenas uma questão de tempo a degeneração completa das nossas instituições -que, aliás, já começou.
Hoje o Senado, a Petrobras e órgãos de Estado como as agências reguladoras e o Itamaraty, os fundos de pensão, parte das ONGs. Amanhã, quem sabe, outros níveis de governo, demais Legislativos, Ministério Público e Judiciário. Vai tudo ser engolido pelo buraco negro da manipuladura.

AUGUSTO DE FRANCO , 59, analista político, é autor, entre outras obras, de "Alfabetização Democrática". Foi conselheiro e membro do Comitê Executivo da Comunidade Solidária durante o governo FHC (1995-2002).

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