Desde quando o governo brasileiro começou a planejar a substituição do comércio em dólares, adotado tradicionalmente e na quase totalidade dos intercâmbios internacionais do Brasil, por comécio em "moedas locais" -- ou seja, moedas nacionais, geralmente inconversíveis, ou possuindo diversas limitações para seu fluxo transfronteiriço normal -- venho alertando para a grande inconveniência desse tipo de procedimento, profundamente custoso para o Brasil, prejudicial à nossa economia e só adotado, me parece, por razões puramente ideológicas, tendo em vista o preconceito que exibem economistas e políticos do atual regime contra tudo o que seja americano, mesmo que seja em detrimento do próprio Brasil.
Este é o caso do sistema criado com a Argentina, absolutamente ridículo em volume e importância econômica, mas que foi obrigatoriamente forçado em cima do Banco Central contra princípios mínimos de administração de nossas contas externas.
Em primeiro lugar, isso obriga o BC a criar uma outra "janela" para operações externas, quando até o momento -- e desde o final dos anos 1930, quando passamos da área da libra esterlina para o domínio do dólar, como nossa moeda de transações externas -- usamos a moeda americana, o que unifica todo o sistema contábil de operações financeiras externas. Isso representa duplicação de procedimentos, contabilidade especial, e à parte de todas as demais, acarretando, portanto, custos adicionais a um sistema já consagrado e prático (posto que unifica todos os cálculos).
Em segundo e principal lugar, porque NÃO É FUNÇÃO de nenhum Banco Central, no resto do mundo, assumir custos e riscos cambiais em favor de agentes privados, ou seja, exportadores e importadores que fazem operações puramente comerciais.
Bancos Centrais são feitos para liquidar pagamentos externos quando -- e no nosso caso isso é um monopólio -- a moeda não é conversível e a autoridade monetária se encarrega de garantir a entrada e saída de moeda estrangeira. Ora, fazê-lo em moedas locais, sem garantia de que a política cambial não será manipulada pelos governos -- como parece ser o caso, infelizmente, da Argentina -- representa um risco adicional para o Banco Central. Sim, porque não sei se todos sabem, o comércio em "moedas locais" é liquidado pelos Bancos Centrais da Argentina e do brasil, no final do dia, em dólares, que continua a ser, assim, a moeda de referência obrigatória e de CÂMBIO entre o Brasil e a Argentina. A passagem pelas "moedas locais" é, assim, absolutamente ridícula, e só beneficia as pequenas empresas de fronteira, que podem até achar bom essa nova modalidade, mas isso representa uma parte muito pequena, insignificante mesmo, do comércio total do Brasil. As grandes empresas não tem nenhuma razão para abrir uma outra janela para suas transações externas, que continuarão a ser feitas em dólares mesmo para o comércio bilateral Brasil-Argentina. Elas não tem porque causar mais custos para seus sistemas contábeis, pois elas cuidam de seus retornos contábeis, algo que o governo parece descartar como inútil (claro, somos todos nós que pagamos).
Em terceiro e mais importante lugar, se começou tambem a falar em comércio em "moeda local" com a China, o que é abolutamente extraordinário em matéria de estupidez econômica e burrice administrativa.
Trata-se de uma regressão ao bilateralismo monetário de mais de 80 anos atrás, quando se começou a conceber o multilateralismo nos pagamentos internacionais, finalmente consagrado no sistema de Bretton Woods. Com todas as suas falhas, o sistema concebido em 1944 e administrado pelo FMI consagra a liberalização dos pagamentos correntes -- ou seja, os fluxos monetários que correspondem ao pagamento de fatores -- e a utilização de moedas conversíveis justamente para evitar o bilateralismo que tinha sido a característica, e a desgraça, dos anos 1930. Querer voltar atrás, agora, é um retrocesso inaceitável.
Em quarto lugar, uma medida dessas só poderia beneficiar a China, posto que sua moeda não sendo conversível, os saldos que o Brasil obtivesse no comércio bilateral com ela, só poderiam ser utilizados no comércio COM A CHINA, ou seja, nos condenando a comprar dela tudo o que ganhassemos nesse intercâmbio bilateral, o que reconheçamos, é de uma estupidez exemplar.
A matéria abaixo trata discretamente do assunto, mas eu me permito reproduzi-la, mesmo depois de três meses de publicada, pois o tema me parece muito importante.
Comércio em moeda local pode sair caro, diz OMC
Jamil Chade
O Estado de S. Paulo, Sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
A Organização Mundial do Comércio (OMC) teme que a existência de várias moedas nos fluxos de bens internacionais pode encarecer as transações e aumentar as incertezas para exportadores e importadores. O assunto foi tratado em documento distribuído há poucos dias aos governos. Nele, a OMC quebra um de seus dogmas ao tratar do impacto do câmbio no comércio.
Legalmente, a OMC não tem direito de se intrometer nas questões cambiais, ainda que haja a possibilidade de os tribunais da entidade serem usados caso um país esteja prejudicando os demais ao manipular sua moeda. Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, insiste que o câmbio deve permanecer como um assunto do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nem a China e nem os Estados Unidos querem ver o tema desembarcando na OMC.
Mas, sutilmente, a entidade deu sua opinião sobre o fenômeno de eventuais novas moedas. A avaliação faz parte de um anexo ao seu relatório anual. No documento, a OMC admite que há uma tendência à perda de força do dólar como a principal moeda internacional. Mas ressalta que a erosão de credibilidade e de seu uso não ocorrerá de um dia para o outro e não há perspectiva de uma substituição. Não haveria nenhuma garantia de que a moeda americana vá perder seu papel de moeda internacional.
Já um relatório preparado pelo economista Joseph Stiglitz a pedido da Organizações Unidas (ONU) sugeriu que a prática adotada por Brasil e China ganhe terreno. A recomendação é permitir que os países usem moedas locais para fechar seus contratos de exportação e importação. Dessa forma, evitariam prejuízos com a variação do dólar ou com a falta da moeda americana em algum momento. Para Stiglitz, isso deve fazer parte de uma reforma do sistema financeiro internacional.
Mas o projeto enfrenta grandes problemas. O primeiro é a competitividade. Setores industriais no Brasil temem que os chineses se aproveitem do acordo de comércio na moeda local para incrementar ainda mais suas vendas ao mercado nacional. Nos últimos anos, o Brasil vem adotando uma série de medidas de restrição às importações chinesas.
Outro problema é o impacto que acordos de substituição do dólar teriam para o próprio valor da moeda americana. Os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) contam com reservas internacionais no valor de US$ 2,7 trilhões. Uma perda de credibilidade do dólar afetaria suas reservas.
Enquanto as análises se proliferam em relação ao futuro do dólar, a realidade é que nunca na história do sistema financeiro a moeda americana sofreu uma queda tão grande como moeda de referência como no segundo trimestre. Dados da Barclays Capital indicam que 63% das novas reservas obtidas por bancos centrais e comerciais foram em euros ou iene. No trimestre, o dólar representou apenas 37% das reservas adquiridas. No fim do anos 90, quando o euro era criado, o dólar sozinho representava 65% das novas reservas.
Em termos de estoque, o dólar ainda é majoritário. Mas nunca a taxa foi tão baixa como agora. A moeda americana representa 62% das reservas de Banco Centrais pelo mundo, calculada em US$ 4,2 trilhões. A taxa é a menor já compilada pelo FMI. No ano 2000, o dólar representava 71% dos estoques de reservas mundiais, de US$ 1,4 trilhão.
A recessão nos Estados Unidos, o déficit americano e a tentativa do banco central americano de inundar mercado com dólares para relançar a economia seriam alguns dos fatores que pesaram para a mudança.
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