sábado, agosto 28, 2010

Gilberto Freyre por Fernando Henrique Cardoso

Gilberto Freyre, perene
Fernando Henrique Cardoso
Conferência de sobre Gilberto Freyre, homenageado da Flip 2010
O Estado de S.Paulo, 05 de agosto de 2010

Cardoso é autor do prefácio da última edição de 'Casa-grande & Senzala'.

Não é a primeira vez que falo sobre Gilberto Freyre e cada vez que me convidam para falar ou escrever sobre ele fico na dúvida sobre se deveria ou não aceitar o desafio. Não há motivos especiais para que seja eu quem abra nesta Flip a semana de comemorações discorrendo sobre o homenageado: pois não fomos nós, os chamados sociólogos da escola paulista, Florestan Fernandes à frente, quem mais criticamos aspectos importantes da obra gilbertiana, notadamente a existência de uma democracia racial no Brasil, interpretação frequentemente atribuída a ele? E ao longo de minha carreira profissional (já vão quase sessenta anos de lida com as questões sociais) tampouco me distingui por ser um conhecedor da vasta bibliografia de nosso homenageado. Não obstante, mesmo com escusas de sobra para escapar da incumbência, caio novamente na tentação: quem sabe ao me aproximar de tão gabado Autor me sobrem umas lasquinhas de glória...

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Cada vez que volto à obra de Gilberto Freyre se repete o deslumbramento de descobrir facetas novas em seus escritos e de me deixar encantar pelo modo como ele envolve o leitor e quase o convence de suas teses, mesmo quando está navegando por mares cheios de escolhos e aprumando para portos que não parecem os mais seguros. Já escrevi que me indignei comigo quando li em El Mercúrio, no Chile ainda dominado pelos coveiros de Allende, um discurso de Jorge Luís Borges e me deixei fascinar por sua prosa. Borges, ele mesmo um arqui-conservador, agradecia uma homenagem que recebera de uma academia chilena silenciosa diante da brutalidade pinochetiana. Discorreu sobre a língua espanhola. A beleza das palavras, a graça de seu encadeamento, o inesperado das metáforas, o brilho do talento do escritor argentino me fizeram esquecer quem era o homenageado, quem o homenageava e em quais circunstâncias. Não é possível, pensei, que o senso estético me afaste tanto da moral.
Por sorte, a semelhança com a situação de leitura de Gilberto Freyre não implica, nem de longe, em tal permissividade. A comparação estanca na fruição da beleza, sem que o conservadorismo de Freyre e mesmo seus comprometimentos com situações autoritárias recordem o horror chileno de Pinochet. Não preciso me sentir moralmente culpado por deixar-me embalar pela prosa de Freyre, ainda quando possa vislumbrar a fragilidade factual ou mesmo interpretativa de um ou outro argumento do autor. Nem me molesta ressaltar as virtudes literárias de alguém, como Freyre, que se não deixou de ter seus pecadilhos de permissividade com governos autoritários, manteve-se quase sempre no campo democrático-conservador. O fato é que se me perguntarem, como me têm perguntado, o por quê da permanência de Casa Grande & Senzala, ou mesmo de Sobrados & Mocambos, direi, sem exclusão de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos. Palavras bem escolhidas. Frases concatenadas, graça no discorrer dos temas, de tal modo que a vasta erudição do autor e a imensidade das notas e citações são como papel de embrulho chinês ou como as caixinhas que os japoneses usam para dar um quê de mistério encobrindo os delicados presentes que oferecem. Lêem-se centenas de páginas de análises complexas de Casa Grande & Senzala ou de Sobrados e Mucambos no embalo de uma escrita de novela.
E olha que o estilo de Gilberto Freyre não é linear, nem na forma nem no andamento do raciocínio. Ele dá voltas, repete, leva o leitor a percorrer seus argumentos e suas descrições como que em espiral, como notou Elide Rugai Bastos em sua síntese de CG&S. De repente, acrescento, a espiral se desfaz circularmente, retorna ao passo inicial. Pior: nem sempre é conclusivo. Mesmo em Casa Grande & Senzala o último capítulo, que trata do papel do negro na sociedade brasileira, termina prometendo um novo livro que nunca escreveu. Não cumpre o requisito de voltar às premissas que, uma vez demonstradas, requerem, no rigor do trato acadêmico, uma síntese conclusiva. O mesmo se dá em Sobrados & Mocambos, embora neste, pelo menos o anunciado próximo volume se concretizou com a publicação de Ordem e Progresso, embora 23 anos depois, em 1959.
Além da metodologia: progresso e tradição
Este estilo, nas palavras do próprio Gilberto, foi algo deliberado: terminada sua tese de mestrado na Universidade de Columbia em 1923, Social Life in Brazil in the middle of the 19th century, que foi lida por Henry Mencken, o "mais anti-acadêmico dos críticos" CG&S, pág.48), este aconselhou-o a desenvolver a tese sob a forma de livro. Daí por diante nunca mais Gilberto voltou a escrever à moda da academia. Ganhou leitores, alçou voo mundo afora, popularizou-se. Entretanto, em certo período, especialmente no final dos anos cinquenta e mais claramente nos anos sessenta, quase se tornou moda nos círculos acadêmicos e em setores políticos progressistas ou de esquerda, fazer-se um muxoxo nas referências a ele. Por quê? Seria só em razão de suas posições políticas conservadoras? Seria o modo não bem comportado de redigir que se afasta do cânone acadêmico? Ou, quem sabe, o fato de haver idealizado o patriarcalismo brasileiro e adocicado o que teria sido o tratamento dado aos escravos pelos senhores, teses que tanto as pesquisas acadêmicas como os movimentos negros (retratados na obra de Florestan Fernandes e de Roger Bastide, por exemplo) começavam a rechaçar? Uma vez que participei das pesquisas desse grupo, talvez se justifique - buscando uma vereda não percorrida para voltar a caminhar no cipoal dos trabalhos sobre Gilberto Freyre - tentar recordar como nos anos cinquenta e sessenta encarávamos a obra do maestro pernambucano.
Sem dúvida, a idealização do patriarcalismo e a visão menos crítica dos efeitos da escravidão sobre as relações entre negros e brancos contribuíram para a reação negativa e mesmo para o simplismo das críticas. Não nos esqueçamos que a partir dos anos sessenta, avançando na década de setenta e até à queda do muro de Berlim, as ciências sociais latino-americanas (e não só) voltaram-se para o marxismo e muitas vezes para formas vulgares dele, sobretudo quando acasalado com as teologias da liberação (diga-se, de passagem, que o marxismo prevalecente na USP teve como ponto de partida um Seminário sobre Marx, iniciado nos anos 1950, com a virtude de ser mais rigoroso na exegese do autor). É certo, porém, que as primeiras críticas da escola paulista aos trabalhos de Freyre antecederam à voga marxista. Quando Florestan Fernandes, principalmente, endereçou suas setas contra qualquer coisa que se aproximasse da visão da existência de uma democracia racial entre nós ele estava no auge da defesa do método funcionalista de análise e não do marxismo. E talvez tivesse como alvo mais Donald Pierson do que Freyre. O que dizer então de Roger Bastide, sempre sutil, que, sendo o tradutor para o francês de Maîtres & Esclaves, não só nutria admiração pelo autor como em suas análises sobre a situação racial no Brasil não deixava de ponderar as particularidades por ela apresentadas em contraposição com o que prevalecia em sociedades racistas. Chegou mesmo a escrever "democracia racial" - o que Freyre não fez em Casa Grande & Senzala - ao se referir a, que toda a demografia do Brasil "está marcada pela mesma política de arianização que domina os aspectos sociais do país, consequência de sua democracia racial" (Bastide, R. Brasil Terra de contrastes, São Paulo, Difel, 1959, p. 62).
Provavelmente não foi só por discordâncias acadêmicas ou por reservas diante do conservadorismo de Freyre que este, aclamado no exterior, auto-proclamado - e não sem razão - como um inovador e respeitado nos círculos da intelectualidade mais conspícua, ficou distante da produção intelectual que surgia nas universidades. Valho-me de um dos melhores conhecedores da obra de Gilberto Freyre, Nicolau Sevcenco, que escreveu a apresentação da sexta edição de Sobrados e Mucambos. Para ele, paradoxalmente, o fato de Freyre ter tido uma formação acadêmica sólida nos Estados Unidos, ter convivido com a intelectualidade americana, conhecer o pensamento europeu, ser, em uma palavra, um cosmopolita e, ao mesmo tempo, ter-se distanciado do projeto político-intelectual das correntes progressistas e modernizadoras emergentes explique melhor a reação negativa destas. Talvez mais do que se distanciar desse projeto, Gilberto Freyre se tenha rebelado contra ele, na medida em que o projeto "desenvolvimentista" desmancharia as bases sob as quais se assentavam as formas de acomodação sócio-cultural do patriarcalismo brasileiro. Creio que isso de alguma forma marginalizou-o do debate então em marcha.
De fato, como veremos e todos sabem, todo o pensamento gilbertiano estava voltado para a singularidade das formas sociais e culturais do Brasil, centradas na família patriarcal e na miscigenação. Ora, o pensamento científico nas ciências sociais, que teve um dos marcos na fundação da USP sob influência europeia, assim como o pensamento político dos anos cinquenta em diante, que teve como referências o ISEB, a CEPAL e o Partido Comunista, queriam precisamente o oposto: livrar o país das mazelas de um passado que nos condenava ao subdesenvolvimento. De alguma maneira a identidade que Gilberto Freyre dava ao Brasil dificultava, se não impedia, tudo que o pensamento progressista da época queria: a industrialização, a ruptura da ordem senhorial, a emergência de uma cidadania livre das peias de uma cultura de submissão, a integração do país ao mundo.
O paradoxo reside precisamente em que Gilberto Freyre, longe de haver sido o ensaísta que os cientistas sociais "do Sul" imaginavam, de pouco rigor científico, era um acadêmico sólido, que disfarçava a erudição no correr da pena e que pregava contra a maré não só acadêmica, mas talvez generalizando um pouco, da corrente ideológica hegemônica. Estávamos na época em que as "teorias do desenvolvimento" frutificavam, o estado era visto como a mola do crescimento econômico, a industrialização era a aspiração de muitos e os laços da família patriarcal, sem se desfazerem completamente, não eram mais a chave para explicar as formas de coesão social. Havia, por consequência, muito mais do que apenas, o que não deixou de haver também, uma diferença metodológica entre os sociólogos "uspianos", funcionalistas ou marxistas, e quejandos ou somente uma crítica a posições políticas específicas. Havia um choque de "ideologia" nos dois lados, que ultrapassava as querelas acadêmicas.
Que Gilberto Freyre exibia um conhecimento enciclopédico da bibliografia da época é indiscutível. A posição de "intelectual nordestino" já havia produzido, entretanto, certa incompreensão quanto a sua modernidade na literatura. Ao mesmo tempo em que entrou em contato com a vanguarda intelectual dos Estados Unidos, onde chegou a descobrir Yeats, Tagore e John Dewey, e da Europa - onde encontrou o cubismo e a influência da arte africana nos pintores inovadores, foi retratado em Paris por Rêgo Monteiro, conheceu Tarsila, tornou-se amigo de Manuel Bandeira-, não comungava propriamente dos ideais ao mesmo tempo nativistas e "ocidentalizadores" da Semana de 1922 do Teatro Municipal de São Paulo. Nosso Gilberto era menos encantado que os paulistas dos salões de Dona Veridiana com Blaise Cendras. Estará produzindo seu "Manifesto Regionalista" em 1926, o que o fez ser visto pelos modernizadores do Sul mais como um "tradicionalista" do que um revolucionário. Quem sabe, fiel a sua visão e a seus sentimentos, quisesse certa continuidade na ruptura e não o repúdio das tradições. Não importa, o apodo de conservador e tradicionalista acompanhou-o desde antes de assim ser considerado por alguns cientistas sociais depois que escreveu Casa Grande & Senzala.

FHC e Luiz Felipe de Alencastro, na mesa de abertura da Flip. Foto: Tasso Marcelo/AE
Gilberto e a metodologia científica
O domínio da literatura sociológica contemporânea por Gilberto Freyre, era enorme. Se não deixava que o esnobismo do vocabulário cientificista torturasse seus textos não era por desconhecimento da informação básica das ciências sociais, era por deliberação, como eu disse. O que não o deixava despreocupado de mostrar que tinha domínio da bibliografia. Alguns dos longos prefácios às edições de suas obras principais mostram essa obsessão. Em Ordem e Progresso há uma introdução que exemplifica bem esta atitude. Para começar o título da secção, "nota metodológica" chama a atenção, como se dizia na época com certo pedantismo, para o "aparato metodológico e conceitual" de suas análises. Recordo-me dos cursos que eu dava na FFCL da USP na segunda metade da década de 1950, nos quais os autores citados por Freyre nos eram familiares e hoje estão provavelmente esquecidos: o manual de E.S. Johnson, Theory and Practice of Social Studies publicado em 1956, a metodologia pregada por Emory Bogardus no livro Sociology, em que se discutia, além das técnicas quantitativas de investigação, o valor da utilização de novos métodos qualitativos ligados às histórias de vida e às entrevistas.
Mencionei os dois livros acima só para exemplificar. Gilberto Freyre exibia conhecimento também da literatura francesa contemporânea, especialmente Raymond Aron e Georges Gurvitch, na época o "papa" da Sorbonne. Dialogava intelectualmente com as propostas metodológicas em voga mantendo o ponto de vista, que parecia ser a pedra de toque de sua metodologia, de que a vivência direta e a empathic ability, habilidade empática (escrita por ele em inglês) são fundamentais para a interpretação de épocas históricas. Não se pense, entretanto, que ao defender tais procedimentos - distintos radicalmente das técnicas quantitativas de análises empíricas e do objetivismo das análises de sociólogos como Durkheim - nosso autor desdenhasse da precisão e de cuidados técnicos. Em uma referência defensiva sobre a tal "empathic ability", conceito que GF foi buscar em autor obscuro num capítulo de uma coletânea organizada em 1953 por Leon Festinger e Daniel Katz, Researh Methods in Behaarioul Sciences, justificou amplamente suas escolhas metodológicas. Note-se que o livro de Festinger e Katz, pouco difundido no Brasil, era de leitura difícil, mais usado por especialistas em análises quantitativas. Portanto, não havia em GF desconhecimento do "cientificismo", mas sim não aceitação de o ter como a única ou principal maneira de analisar os processos sociais.
Gilberto Freyre acreditava ter sido pioneiro em incluir nas análises sociais aspectos subjetivos e mesmo valorativos, como instrumentos de conhecimento e interpretação histórica. Tendo partido da antropologia, mas dedicando-se à análise de formações sociais e de sua transformação - Ordem e Progresso estuda a desagregação do mundo senhorial com a abolição da escravidão e o estabelecimento da República - incluia muito de psicologia social nas interpretações. Não descuidava, por outro lado, dos condicionamentos do meio ambiente e dos biológicos, nem de deixar de mencionar, vez por outra, a relevância dos processos econômicos para as transformações sociais. Acreditava ter inventado uma maneira de lidar simultaneamente com as intuições e com a captação de sentido das ações sociais e da cultura, pela empatia que tinha com as situações analisadas.
Em seu debate metodológico rebelou-se com interpretações que desdenhavam da história, explicando o presente por ele mesmo, como se cada nova fase partisse ex nihil, de si mesma. Freyre achava que além de tomar em conta o passado e ver como ele se reproduzia ou se modificava no presente, as análises deveriam incluir as orientações e visões que os homens anteviam e como vislumbravam o futuro. Foi buscar em Gurvitch e Aron a noção de que o entrelaçamento entre as condições sociais e as "construções mentais" é importante. Apoiou-se com muita liberdade em W.I. Thomas (no artigo "The relation of research to the social process") e em um crítico literário americano, John Brown, para chegar ao que queria: à noção de que há tempos co-existentes, tempos menos cronológicos do que psicológicos e que a inter-subjetividade é parte constitutiva da realidade. Esta tanto é dada como é imaginada pelos atores sociais. Mais ainda, quando passa dessas considerações abstratas para a cronologia, procurou definir as épocas como sendo compostas por quatro gerações. Resumindo, diz nosso autor: "o tempo do relato literário e sociológico tipicamente brasileiro parece dever corresponder a situação mais complexa de entrelaçamento na consciência do brasileiro dos três tempos: o presente, o passado e o futuro" (O e P, p. 58).
Em uma de suas constantes afirmações auto-laudatórias diz que os franceses até criaram uma noção inspirada em suas obras. Vale a pena a longa reprodução do texto para mostrar o jeito de GF escrever sobre seus inventos metodológicos:
"Precisamente essa intimidade de estrutura é que vem sendo analisada pioneiramente em estudos brasileiros de sociologia genética com um afã de profundidade que críticos estrangeiros supõem não haver sido até hoje ultrapassado ou sequer igualado por analistas do mesmo assunto noutros países, havendo-se criado na França expressão "sociologia proustiana" para caracterizar a especialização brasileira. Especialização baseada numa extensão e numa intensificação do método empático de análise, compreensão e interpretação do que de mais íntimo se possa encontrar no passado de uma sociedade, que talvez repugne, como método, aos puros objetivistas em questões de metodologia antropológica, sociológica ou literária" (O e P, p. 54).
Percebe-se na escritura peculiar de nosso autor a reação ao contraste entre certo desdém sobre seus trabalhos que acreditava haver no meio local acanhado e a quase glorificação que recebia no meio mundial. Ao mesmo tempo responde aos "objetivistas", isto é, aos que proclamavam ser devotos da "sociologia científica", mostrando que estes se restringiam a um tipo de abordagem, que repugnava tudo que fosse subjetivo. Chama também a atenção que Gilberto Freyre ao tentar construir um método para juntar compreensão à interpretação, de indagar, portanto, sobre o sentido das ações sociais e não só sobre seu encadeamento causal, não faça qualquer referência a Max Weber (a quem GF conhecia, se mais não fosse, por ser familiarizado com o livro de Aron sobre A Sociologia Alemã e por ser Ordem e Progresso posterior ao admirável Raízes do Brasil, no qual Sergio Buarque faz ampla utilização dos conceitos weberianos).
O ponto que desejo ressaltar, porém, não é o das eventuais lacunas na revisão sociológica apresentada por Gilberto Freyre, mas sim o do vasto domínio que ele exibia da literatura sobre métodos de pesquisa. Foi por opção que deu amplo espaço à análise do significado das ações sociais e, portanto à cultura, em suas análises sobre a formação do Brasil, como Roberto Da Matta salientou e com o que se identificou ao fazer a apresentação de Sobrados e Mucambos. Gilberto foi, na verdade o antropólogo que se voltou à sociologia e, acreditando que a realidade social é histórica, não desdenhou de que a história é produto da ação humana e que esta guarda um significado e se orienta por objetivos valorativos, além de estar condicionada fisicamente e pelo meio ambiente.
A crítica metodológica dirigida a GF não poderia, portanto, resumir-se a sua desqualificação por ele não ser adepto do que chamava de cientificismo, ou seja da visão positivista da ciência, posição que muitos cientistas sociais recusam, nem muito menos a de crer que seus trabalhos eram meros "ensaios". Isso é, que não poderiam ser submetidos a algum método de validação, uma vez que seriam meramente intuitivos. Embora seus críticos mais afoitos se tivessem aferrado a esses temas, as críticas mais pertinentes deveriam dirigir-se a outros pontos: tomando como válida sua opção de incluir a experiência vicária e a intuição simpática como parte das interpretações (embora dela discordando, eventualmente), foi ele capaz de extrair tudo que essa perspectiva permitia? Ao reconstruir, perdoem-me o abuso vocabular, seu "todo sócio-estrutural significativo", seus conceitos básicos captaram o fundamental do processo histórico? Sua abordagem culturalista foi precisa ou extrapolou englobando o conjunto do país ao que vivenciara e analisara em uma região? Justificou suas generalizações, embora não estatisticamente?
A sociedade patriarcal
A resposta não é fácil. Toda síntese requer alguma simplificação. Ao tempo de Casa Grande & Senzala as interpretações contemporâneas do Brasil já sofriam a influência de algumas grandes sínteses. As mais abrangentes terão sido Os Sertões de Euclydes da Cunha, os livros de Oliveira Vianna e os trabalhos de Alberto Torres. O livro de Euclydes, embora mais denso em análises de acontecimentos e mais guiado pelas ideias da época sobre as relações entre o homem e o meio ambiente, tinha alcance político imediato menor para as elites dirigentes do que os de Oliveira Vianna. Euclydes tratava do povo e de uma região. As elites prefeririam tratar do governo e do país todo. Oliveira Vianna, desde O Ocaso do Império, dos anos 1920, procurava mostrar a falência do sistema representativo e da República liberal. Mas é nos livros subsequentes, A Evolução do Povo Brasileiro, de 1922, e, sobretudo, em Problemas de Política Objetiva, de 1930 - anteriores, portanto, ao livro fundamental de Freyre - que suas análises políticas ganham mais força. Para ele o mal do Brasil não era a centralização, mas a descentralização, não o executivo forte, mas sua debilidade para enfrentar os localismos, os "gânglios" dispersos de população e de poder local da época colonial que se transformaram em coronelismo e clientelismo na República. Logo, conviria substituir os laços de solidariedade clânica, por meio de uma instituição que desse mais organicidade à Nação: um Estado mais forte e atuante. Foi o que pregou em Problemas de Política Objetiva.
As ideias de Oliveira Vianna se completaram no final dos anos 1940, com a publicação de As Instituições Políticas Brasileiras. Para se opor ao espírito clânico, ao personalismo e ao privatismo tradicionais, incluindo-se aí o do latifundiário, seria preciso um Estado deliberadamente voltado para a construção da Nação. Para se contrapor às praticas político-sociais herdadas da sociedade colonial, de pouco valeriam as ideias que desde o Iluminismo fundamentavam a democracia. Sua aplicação entre nós não passava de "idealismo". Nossas leis e Constituições absorveram ideias inglesas, francesas ou norte-americanas sem correspondência com a realidade. Nada mais "fora de lugar" no Brasil do que a noção de contrato entre homens livres e iguais, pois há uma "desigualdade natural" entre pessoas e raças. Os estadistas do Império teriam servido melhor à construção do Brasil do que os idealistas republicanos. Eles foram centralizadores, mais ou menos autoritários e aferrados às responsabilidades do Estado. Mostraram-se pouco interessados em acabar com a escravidão, fundamento de nossa riqueza. Para Oliveira Viana, como mostrou Jorge Caldeira em sua História do Brasil com Empreendedores, não era o latifundiário - portanto o senhor-quem deveria sustentar a ordem hierárquica do país, mas o Estado, fiador do bom funcionamento das partes constitutivas do organismo nacional.
É certo que houve toda uma linhagem de pensadores liberais no século dezenove e no início do vinte, como Tavares Bastos e de juristas como Ruy Barbosa e mesmo de críticos sociais como Nabuco. Estes, entretanto, na visão de Oliveira Vianna teriam sido "idealistas", alheios às realidades sociais do país. Não era essa, além do mais, a ideologia dominante nos anos trinta, nem entre nós nem muito menos na Europa em que Mussolini já fazia fulgor e logo depois Hitler viria a ofuscá-lo no anti-liberalismo. No Brasil Alberto Torres, em a Organização Nacional e noutros livros, todos anteriores a Freyre, constituía uma exceção: positivista, propugnador pela necessidade de um governo forte, defendia ao mesmo tempo os direitos individuais e não ultrapassou inteiramente os marcos de um pensamento contratualista.
Criticava, por certo, o juridicismo, cheio de ideias importadas. Sua experiência como ministro, governador do Rio de Janeiro e membro do Supremo Tribunal Federal fizeram-no ver os limites da crença cega de Ruy na eficácia das leis. Distinguiu-se de outros influentes autores de sua época porque não tomava a tese do condicionamento racial como restrição para a formação nacional nem, portanto, se deixou embalar pelas vantagens do branqueamento. Mesmo tomando-se em conta a posição complexa, mais eclética e menos radicalmente autoritária de Alberto Torres quanto ao papel do estado, é inegável que as décadas de vinte e trinta do século passado, nas quais se formou o pensamento de GF, estavam sendo preponderantemente influenciadas por um pensamento organicista e politicamente centralizador, quando não abertamente autoritário. Além do mais as próprias ligações estreitas de Oliveira Vianna com o pensamento de Alberto Torres e a influência daquele sobre Paulo Prado (de quem, por sua vez era socialmente protegido) diminuiriam o peso das vertentes não estatal-autoritárias que existiam em Alberto Torres. A tradição de pensamento corporativista no Brasil foi tão forte que, a crer nas interpretações de Jorge Caldeira, nem mesmo o Visconde de Cairu, tido e havido como o primeiro pregador das vantagens do livre mercado para o Brasil, teria escapado.
Gilberto Freyre, na década de trinta, erige outros atores sociais como foco para explicar as hierarquias e dar sentido à organização social: as instituições domésticas - com o pater família à frente. A família patriarcal, não o estado, constituiria a mola central do Brasil. O senhor em si não seria parte permanente, natural, constitutiva da nação. Foi produzido por um sistema, o escravocrata, tanto quanto o negro, que se tornou escravo por força do processo social de dominação e não por ser portador de uma condição natural de inferioridade. Essa posição de GF era nova, rompia com a visão prevalecente no Império para justificar a escravidão - a desigualdade natural entre os seres humanos em função da raça - e discrepava das concepções corporativistas que davam como natural as diferenças entre partes "funcionais" do sistema social, composto de escravos, senhores e outras categorias sociais de menor alcance explicativo. Gilberto Freyre não aceitou a teoria da existência de desigualdades "naturais" socialmente funcionais dos organicistas-corporativistas, nem viu na vontade de construir uma nação pela concentração de poder central os caminhos para corrigir os malefícios do passado colonial-escravocrata. E tampouco fez como Caio Prado, que em A Evolução Política do Brasil (livro publicado logo depois de Casa Grande & Senzala) incorporou o papel central do "latifundiário" proposto por Oliveira Vianna transformando o latifúndio agro-exportador na pedra de toque da formação do Brasil (abrindo brechas assim para introduzir a perspectiva de luta de classes).
Pelo contrário, GF criou categorias analíticas sociológicas e histórico-culturais. Para isso não desdenhou da base produtiva: foi sim o latifúndio açucareiro que deu sustentação à sociedade patriarcal, afirmação repetida o tempo todo em seus trabalhos. Aliás, as referências à influência das formas econômicas sobre a sociedade e a cultura repetem-se em GF. Apenas, elas não teriam sido o fator decisivo para explicar as particularidades brasileiras: o que distinguiu a sociedade brasileira não foi a grande propriedade escravocrata em si, que também existiu nos Estados Unidos. Foi a forma peculiar como se constituiu a "família patriarcal", um produto histórico-cultural. Cito:
"A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador do Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o Rei de Portugal quase reina sem governar" ( C&S p. 81)
Oliveira Vianna via os males do Brasil na dispersão geográfica dos núcleos do povoamento e nos vícios decorrentes do acasalamento entre política local e personalismo. A geografia e a cultura, além da diversidade racial e da miscigenação condicionavam nossa formação e eram obstáculos dos quais decorria o pessimismo vigente nas interpretações do Brasil e que foram recolhidas por Paulo Prado. Para corrigir as distorções produzidas por esta situação é que tanto Torres quanto Oliveira Vianna propunham o Estado-forte. Gilberto Freyre, em contraposição, valorizava a força da sociedade e da cultura brasileiras. A sociedade escravocrata se organizara e se hierarquizava o redor do núcleo familiar. A oposição direta não seria sequer entre senhores e escravos, mas Casa Grande patriarcal e tudo que se lhe opunha. A escravidão concede Freyre, justificando-a até certo ponto, foi o modo que o português colonizador encontrou para levar adiante o empreendimento econômico da conquista. Muita terra, poucos portugueses, índios abundantes e, posteriormente, negros disponíveis teriam viabilizado a obra da conquista. Cito outra vez:
"O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo" (C&S, p. 322).
Agregando às dúvidas de Oliveira Lima sobre se teria sido um crime levar os escravos negros para a América e opondo-se a Varnhagen que lastimava a concessão de grandes tratos de terra no lugar de propriedades menores, diz Freyre:
"Para alguns publicistas foi erro enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades de trabalho poderia ter adotado o colonizador português" (p. 323).
Colonizador acrescento, que GF já havia caracterizado criticamente como inclinado a adotar o cativeiro para obter êxitos econômicos, mesmo na terra de origem. Ora, como os portugueses foram os pioneiros em estabelecer colônias de exploração agrícola em terras tropicais, dada a escassez de mão de obra local que pudesse ser assalariada, só o latifúndio e a escravidão, indígena ou negra, permitiriam construir "a grande obra colonizadora".
"No Brasil iniciaram os portugueses a colonização em larga escala nos trópicos por uma técnica econômica e por uma política social inteiramente nova: apenas esboçada nas ilhas sub-tropicais do Atlântico. (...) O colonizador português do Brasil foi o primeiro entre os colonizadores modernos a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal (...) para a criação local de riqueza" (...) à custa do trabalho escravo: tocada portanto daquela perversão de instinto econômico. (CG&S, p. 79). Ademais, "No Brasil (...) as grandes plantações foram obra não do Estado colonizador, sempre somítico em Portugal, mas de corajosa iniciativa particular" (CG&S, p. 80).
Para comprovar a tese cita viajantes que chamaram a atenção para a ausência de entraves burocráticos à obra colonizadora, dada a ausência da administração. Gilberto viu nisso uma característica e mesmo uma vantagem. E não se diga que neste capítulo - o inicial de |Casa Grande e Senzala -- o autor tivesse apenas idealizado: a minúcia, como em todo o livro, do conhecimento das fontes históricas (documentos, livros de viajantes, comentaristas, etc.) desmente uma vez mais a noção de que sua obra foi basicamente ensaística.
A mola da sociedade escravocrata teria sido o "projeto produtivo" do português, sua antevisão do futuro que, condicionada pelo meio ambiente - a vastidão das terras, o clima tropical - e pelos condicionamentos demográficos, escassez de brancos e abundância de indígenas e mais tarde de negros, criou as bases para que fosse plasmada uma cultura, uma adaptação de costumes, práticas, valores e crenças que marcaram nossa formação. Tudo isso se concretiza ao redor do latifúndio e da hierarquização entre Casa Grande e Senzala, senhores e escravos. Mas a dinâmica deste todo histórico-estrutural, de base econômica dada, só se entende quando se acrescentam as dimensões culturais. Estamos longe de, sem negar sua importância, ver no "latifúndio-exportador" o sentido da sociedade colonial, como em Caio Prado ou mesmo em Oliveira Vianna. Por certo, GF não nega o óbvio, como já disse, o papel da economia agro-exportadora. Mas o sentido profundo da construção do país foi a matriz histórico cultural constituída ao redor da Casa Grande.
Deixo de lado considerações sobre até que ponto o modelo de sociedade escravocrata construído por GF poderia generalizar-se para o Brasil, uma vez que as análises se basearam em Pernambuco e em partes do Nordeste.
Certamente não foi assim em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, por exemplo. Nem nas regiões mineradoras ou nas faixas de comunicação comercial por onde o país se expandiu sem se basear no latifúndio patriarcal ao estilo do que ocorreu no Nordeste e, em outra época, nas terras fluminenses e mesmo paulistas, com o açúcar e o café. Há argumentos para mostrar que na caracterização histórico-cultural tomar o caso extremo é uma forma de iluminar as demais situações, ainda que por contraste.
A contribuição inovadora de GF para caracterizar a sociedade patriarcal não justifica, entretanto, como veremos adiante, seus excessos arbitrários ao caracterizar o papel inovador do empreendedorismo dos colonos portugueses e ao se aferrar às características de plasticidade cultural que teriam possibilitado além da aculturação a ascensão social de negros, índio e mestiços. Para construir a imagem positiva dos colonos GF se opõe à visão de que os portugueses vindos para cá seriam os "piores elementos" (degredados, condenados, etc.). Pelo contrário, gente de boa cepa também veio e muitos deles deram origem às grandes famílias patriarcais:
"A colonização do Brasil se processou aristocraticamente, mais do que a de qualquer outra parte da América (...) Mas onde o processo de colonização europeia afirmou-se essencialmente aristocrático foi no norte do Brasil" (CG&S, p. 266-7).
As características fundamentais da formação da sociedade brasileira, embora esta fosse assentada em uma economia escravista, teriam sido dadas pelo equilíbrio de antagonismos que a matriz cultural aqui desenvolvida permitia:
"Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o paria. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo" (CG&S, p. 116).
Entendem-se os motivos que levaram os sociólogos da "escola paulista" a criticarem GF: onde está a especificidade desses antagonismos, ainda que Freyre os tenha hierarquizado, pois há um antagonismo principal e geral, aquele entre senhores e escravos? Não haveria traços culturais semelhantes em outras formações sócio-econômicas? Talvez, mas nosso autor não faz as análises comparativas suficientes para sustentar o argumento. Fosse só isso e o pecado talvez pudesse ser considerado venial. Mas Freyre vai mais longe em sua visão sobre o equilíbrio de antagonismos:
"Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado no sadismo do mando, disfarçado em "princípio de Autoridade" ou "defesa da Ordem." Entre estas duas místicas - a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia - é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída da do regime de senhores e escravos" (CG&S. p. 114-115). GF vê certas vantagens nessa situação "as de uma dualidade não de todo prejudicial à nossa cultura em formação. (...) Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura como no Brasil" (CG&S, p. 115).
Este processo de "harmonização de contrários", diz Freyre, ainda está incompleto; o vácuo e a deficiência da intercomunicação entre as culturas ainda é enorme.
"Mas não se pode acusar de rígido, de falta de mobilidade vertical (...) o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos." (CG&S, p. 115).
A generalização dos qualificativos, a imprecisão e a variabilidade dos argumentos, sem falar na referência ao término "precoce" da escravidão, abrem flanco à crítica fácil. O linguajar é atraente e a criatividade grande. Não faltam insights que iluminam o processo sócio-cultural do Brasil, mas o ressaibo conservador com a implícita aceitação de tudo que está dado, não podem ser aceitos acriticamente. Nem por ter sido um grande intelectual nosso autor deixou de extravasar seus preconceitos e de contagiar as análises com crenças e valores nem sempre abertamente expostos.
A democracia racial
A ideia tão difundida de que Gilberto Freyre teria caracterizado o Brasil como uma "democracia racial" precisa ser mais bem qualificada. Ao descrever as qualidades dos portugueses em sua terra de origem, Freyre insistia em que eles já possuíam uma cultura baseada em equilíbrios entre contrários, com plasticidade suficiente para aceitar práticas de miscigenação racial e cultural. As análises históricas vêm acompanhadas de referências às fontes e a seus intérpretes. Chama mesmo a atenção o enorme conhecimento que GF tinha da formação histórico-cultural lusitana. Foi na interpretação, na valorização de certos traços culturais e sociais, que GF introduziu algum viés, embora tenha sempre se oposto ao racismo prevalecente em muitos círculos. Para começar nosso autor descreveu os portugueses - com exceção dos habitantes ao Norte, mais celtas - como um povo cujo sangue já carregava as marcas árabes e africanas. Da África negra e berbere.
Como negasse o valor explicativo das diferenças raciais em si mesmo, acrescentava sempre dimensões culturais: não apenas o português era amorenado, mas também sua cultura absorvera muitos traços muçulmanos desde a ocupação árabe. Eram os "moçarabes", nos quais se juntavam traços culturais dos escravos negros e dos berberes:
"O que se sente em todo este desadoro de antagonismos são duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram e se hostilizam". Daí que "se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos" (CG&S, p. 69).
Essa contradição sem dialética - sem produzir propriamente uma síntese -- esse equilíbrio entre antagonismos teria sido a marca distintiva de nossa cultura. Em Casa Grande & Senzala não se fala em "propensão democrática" nem mesmo em "democracia racial" mas em oposições que se equilibram. O português do século da descoberta e dos séculos iniciais da colonização já tivera na Europa tanto a experiência de intercâmbio cultural, quanto conhecera e se aferrara a alguma instituições que recriou na América: a poligamia e a escravidão de negros e árabes não lhe eram estranhas. GF chega mesmo a dizer que o português era o mais propenso dos povos europeus a praticar a escravidão, assim como a poligamia herdada da África. Nem essa nem o desregramento sexual e moral nasceram no Novo Mundo; já eram vividos na Europa pelos colonizadores. Sem motivos para orgulho de superioridade racial, havendo expulsado os mouros, sendo bravos guerreiros, cobriram-se no manto da Igreja para notabilizarem-se como combatentes dos hereges. A igreja, a escravidão, o desregramento moral e a empresa colonial produtiva chegaram juntas ao Brasil pela mão dos portugueses. Estes, contudo, não partiram, na origem, de uma sociedade propriamente feudal, nem jamais deram à superioridade de pele e de sangue preeminência maior, pois dela não dispunham.
O mesmo estilo de abordagem se desdobra para caracterizar a junção de outras "raças" e culturas formadoras do Brasil. Na análise da contribuição dos índios, GF, uma vez mais, exibe notável conhecimento das fontes históricas e da antropologia da época. Deixo de citar os autores que serviram de base para suas descrições e interpretações para não cansar o leitor, mas posso assegurar - tendo eu próprio seguido no início dos anos 1950 cursos de antropologia - que a bibliografia referida era a que então se ensinava. Discípulo de Boas, leitor contumaz, GF não pecava por falta de base científica. Repito, quando pecava era por sua "visão", por suas interpretações, como disse acima.
Retomando o fio: GF também viu o processo de contato entre portugueses e indígenas como um antagonismo entre culturas atrasadas e mais desenvolvidas. Com a presença do colonizador, destrói-se o equilíbrio nas relações entre os indígenas e o meio físico, "principia a degradação da raça atrasada ao contato da adiantada". Os indígenas foram vítimas de duas influências desagregadoras, deletérias mesmo, nas palavras de Gilberto: a dos portugueses e a dos jesuítas, que se anteciparam nas tentativas de europeização ao imperialismo burguês europeu.
"O imperialismo português - o religioso dos padres, o econômico dos colonos - se desde o primeiro contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de repente, com a mesma fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe tempo para perpetuar-se em várias sobrevivências úteis" (CG&S, p. 231).
A partir dessa visão distingue três dimensões características. As do "imperialismo dos colonos", quer dizer, a utilização do indígena pelo português em seus empreendimentos conquistadores (de terras, como nas bandeiras, digo eu, ou de exploração produtiva), as do "imperialismo religioso", dos jesuítas, e a da "convivência de contrários". Por isso, Freyre ressalta o contraste com a colonização inglesa que matava diretamente os indígenas, enquanto em nosso caso, sua cultura era desagregada por ambos, jesuítas e colonos, e suas populações eram lentamente exterminadas pelas moléstias e os maus tratos tanto por parte dos portugueses quanto dos padres. Mas a população indígena teria sido ao mesmo tempo relativamente "preservada" para ser usada na exploração econômica e, sobretudo, sua cultura mantida e modificada pelas consequências do contato e da miscigenação. Nesse passo, novamente, a visão edulcorada do convívio entre contrários se mostra forte:
"Nem as relações sociais entre as duas raças, a conquistadora e a indígena, aguçaram-se nunca na antipatia ou no ódio cujo ranger, tão adstringente, chega-nos aos ouvidos de todos os países de colonização anglo-saxônica e protestante. Suavizou-as aqui o óleo lúbrico da profunda miscigenação. Quer a livre e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento da Igreja e do Estado" (CG&S, p. 131).
Freyre, como fará com relação aos negros, se delicia ao descrever a lubricidade prevalecente na Colônia, ao dar interpretações de fundamento sexual à couvade, ao descrever aspectos físicos dos órgãos sexuais dos nativos. Tudo isso, mais a necessidade de povoar e ampliar a base produtiva, levou ao inter-casamento, quando não ao intercurso sexual frequente. Mesmo ressaltando que o estilo de interconexão racial e cultural permitiu manter a cultura autóctone mais viva na brasileira (toponímias, culinária, formas de lidar com as crianças, abrandamento da língua, poesia, música etc.) do que o ocorrido em outras plagas, GF acentuou sempre os aspectos perversos da desagregação cultural provocada pela colonização. Sua crítica mais persistente e dura foi antes contra o jesuíta do que contra o colono. Não poupou palavras referindo-se à "crueldade" dos jesuítas. Estes tentaram construir uma nova base moral para os indígenas sem antes "lançar uma permanente base econômica" (CG&S, p. 225). Resultado: a família dos indígenas se desagregou sem suportar os moldes cristãos, prevaleceu a miséria, aumentou brutalmente a mortalidade infantil, houve a "degradação da raça" que pretenderam salvar (CG&S, p. 225).
Essa desagregação cultural e moral ocorreu a partir de quando os padres resolveram colocar os índios em missões sob sua proteção. Antes, nos séculos. XVI e XVII, o clima teria sido outro:
"As crônicas não indicam nenhuma discriminação ou segregação inspirada por preconceito de cor ou de raça contra os índios; o regime que os padres adotaram parece ter sido o de fraternal mistura dos alunos" CG&S, p. 223/224).
Ainda assim a crítica dura de Freyre denunciando maus tratos aos indígenas se voltou menos contra os portugueses do que contra os jesuítas. A estes não perdoou nada:
"O missionário tem sido o grande destruidor de culturas não europeias, do século XVI ao atual; sua ação mais dissolvente que a do leigo" (...) O que se salvou dos indígenas no Brasil foi a despeito da influência jesuítica." (CG&S, p. 178).
Com seu estilo, cheio de espirais que se tornam círculos, como disse, Gilberto escreve, ao mesmo tempo o contrário:
"Campeões da causa dos índios, deve-se em grande parte aos jesuítas não ter sido nunca o tratamento dos nativos da América pelos portugueses tão duro nem tão pernicioso como pelos protestantes ingleses" (CG&S, p. 217). E dá nova cambalhota na argumentação:
"Ainda assim os indígenas nesta parte do continente não foram tratados fraternal ou idilicamente pelos invasores, os mesmos jesuítas extremando-se às vezes em métodos de catequese os mais cruéis. Da boca de um deles, e logo do qual, do mais piedoso e santo de todos, José de Anchieta, é que vamos recolher estas duras palavras; 'espada e vara de ferro, que é a melhor pregação' (CG&S p. 217).
Sobre os colonos portugueses, que teriam sido mais flexíveis e mais interessados nas mulheres indígenas e em tê-los, homens e mulheres, como força de trabalho, nosso autor diz contraditoriamente que também repartiram a responsabilidade por algumas formas de desagregação da cultura e da moral indígena:
"Os colonos e não os jesuítas terão sido, em grande número de casos, os principais agentes disgênicos entre os indígenas: os que lhe alteraram o sistema de alimentação e de trabalhos, perturbando-lhes o metabolismo; os que introduziram entre eles doenças endêmicas e epidêmicas; os que lhe comunicaram o uso da aguardente de cana" (CG&S, p. 180).
Se foi assim, torna-se difícil entender no que consistiu o "equilíbrio" entre antagonismos e que atores sociais foram flexíveis e quais os impenetráveis. Tudo parece fazer crer que para Gilberto Freyre os jesuítas representaram a encarnação do mal maior - quem sabe ressaibos de antropólogo que não suporta a violação direta da cultura indígena pelos missionários -- mas dos colonos não se pode dizer que possuíssem disposição anímica capaz de facilitar o equilíbrio entre culturas e raças.
É, entretanto, quando trata dos escravos e negros nos dois últimos capítulos de CG&S que as teses de Freyre, sua força expositiva e suas interpretações, se tornam mais claras. No primeiro deles, sobre o negro na vida sexual e na família dos brasileiros, nosso autor volta a exibir pleno domínio da literatura antropológica de sua época, inclusive de antropologia física. Dedica-se a desmentir as hipóteses relativas à inferioridade dos negros, desde as que se baseavam em medições do peso e da estrutura dos cérebros, até às que se referem às influências climáticas e de regime alimentar sobre o comportamento dos africanos. Entra mesmo na controvertida discussão sobre a transmissibilidade de caracteres adquiridos que, como sabemos, ocupou páginas e páginas da literatura em moda naquele período. Baseado em Franz Boas, Melville Herkovits, Pitt-Rivers, Lowie e até mesmo Ruth Benedict, desfaz passo a passo as teorias em voga sobre a importância de diferenças raciais seja as baseadas na genética, seja as que acentuavam fatores climáticos e ambientais para distinguir comportamentos. O que conta mesmo para Freyre são as diferenças culturais que se constroem historicamente. Apreciação válida tanto para os negros como para os ameríndios:
"Lowie parece-nos colocar a questão em seus verdadeiros termos. Como Franz Boas, ele considera o fenômeno das diferenças mentais entre grupos humanos mais do ponto de vista da história cultural e do ambiente de cada um do que da hereditariedade ou do meio geográfico puro"(CG&S, p. 381).
A frase resume o pensamento de GF sobre a matéria. Daí concluir:
"O depoimento dos antropólogos revela-nos no negro traços de capacidade mental em nada inferior à das outras raças." CG&S, p. 379).
Se diferenças há, foram criadas pelas relações entre os homens, sempre em interação, obviamente, com o meio ambiente, o clima, regime alimentar etc. Mas o fundamental para explicar diferenças são as formas de sociabilidade, as relações de hierarquia, as técnicas criadas para a adaptação ao meio, etc. Estamos longe de Nina Rodrigues, ou mesmo de Oliveira Vianna e seus próximos.
Outra contribuição importante do livro nessa matéria foi precisamente a de distinguir entre culturas, tanto ameríndias como africanas. Indo além das pegadas de Nina Rodrigues que mostrara haver outras culturas além da Banto entre os escravos brasileiros, GF acrescenta, dando ênfase, o papel que, entre outras etnias, os Nagô e Yoruba e os Hauçá - esses já mestiços de hamitas e berberes - exerceram na formação cultural dos brasileiros. Alguns desses grupos já teriam vindo para cá islamizados. Em uma palavra, e parodiando: as próprias culturas africanas já formariam um melting pot. Razão adicional para confirmar que:
"dentro da orientação e dos propósitos deste ensaio, interessam-nos menos as diferenças de antropologia física (que ao nosso ver não explicam inferioridades ou superioridades humanas, quando transpostas dos termos de hereditariedade de família para os de raça) que os de antropologia cultural e de história social africana" (CG&S, p. 387.)
Apesar dessa conclusão, GF faz uma longa digressão sobre a superioridade cultural dos estoques negros vindos para o Brasil e, no Brasil dos que foram para o Nordeste, em comparação com o que ocorreu com os Estados Unidos. Critica o arianismo de Nina Rodrigues e de Oliveira Vianna, mas se refere aos fula e aos hauçá, como mesclados com povos não negros, no momento em que está mostrando a "superioridade" destes em comparação com outros grupos africanos; discorre sobre as características diferenciais de certos grupos de negros nas várias regiões do Brasil; minimiza, é verdade a cor da pele como traço distintivo, mas fala no tipo de cabelo como diferencial. Enfim abre espaço para o crítico que queira se esquecer de suas orientações basicamente anti-racistas e culturalistas para mostrar contradições no texto. Que as há, as há e de sobra. Mas o "sentido geral da interpretação", se posso dizer assim, foi outro, foi o de desmentir a inferioridade do negro e acentuar as diferenças e possibilidades de fusão entre as culturas.
Na verdade Gilberto estava procurando valorizar as culturas negras para se opor às teses da inferioridade racial. Descreve com alguma minúcia (p. 391-393) a variedade cultural africana, hierarquiza seus desenvolvimentos relativos, reafirma vantagens dos escravos brasileiros em comparação com os americanos e mesmo do Caribe - por exemplo, maior proximidade com a África, manutenção de um comércio constante entre as duas regiões e com isso revitalização cultural - e termina por dizer que duas grandes áreas culturais, especialmente contribuíram para a formação brasileira, os bantos e sudaneses:
"Gente de áreas agrícolas e pastoris. Bem alimentada a leite, carne e vegetais. Os sudaneses da área ocidental, senhores de valiosos elementos de cultura material e moral próprios, uns e outros adquiridos e assimilados dos maometanos" (CG&S, p. 393).
Feita a ressalva da multiplicidade de etnias vindas para cá, da sofisticação cultural relativa de algumas delas e do hibridismo de todas - não só racial, mas cultural, basta lembrar as influências maometanas no catolicismo brasileiro graças aos africanos - Gilberto retoma a tese principal. Vai buscar apoio em Nabuco para dizer que não se pode avaliar a contribuição (positiva ou negativa) do negro para a nossa formação, separando-o do escravo, de sua condição social:
"uma discriminação se impõe: entre a influência pura do negro (que nos é quase impossível isolar e a do negro na condição de escravo. (...) Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro por si, que apreciamos. (...) O negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial e da nossa primeira fase da vida independente, deformado pela escravidão. Pela escravidão e pela monocultura" (CG&S, p. 397).
Em seu arrazoado em defesa do negro diante dos preconceitos vigentes, GF rebate a ideia comum de que a luxúria, a depravação sexual e o erotismo adviessem de sua influência. Arriscando-se em juízos de valor e baseado em testemunhos insuficientes, afiança que, pelo contrário, nas culturas africanas haveria maior moderação sexual do que entre os europeus, tanto que " a sexualidade africana para excitar-se necessita de estímulos picantes" (p. 398). Deixando-se levar pela imaginação menciona vários autores, chegando até citar um que, contrariamente à crença generalizada, fala de terem os africanos "órgãos sexuais pouco desenvolvidos". A necessidade de festas orgiásticas e de símbolos fálicos desproporcionais viria como compensação à realidade.
Dito isso, o desregramento moral, a concubinagem, a proliferação sem Deus nem lei, adviriam do interesse do senhor em multiplicar o número de escravos e da própria libido desabrida que os portugueses já haviam desenvolvido na Europa e trouxeram com eles. A "esse elemento branco e não à colonização negra deve-se atribuir muito da lubricidade brasileira." (CG&S, p. 405).
O resto é a chaga moral da escravidão, não "culpa" do negro, posto que não há escravidão sem depravação, diz textualmente. E não se pense que GF poupa os senhores de terem mantido, como fizeram os jesuítas com os índios, relações cruéis com os negros. Basta ler as descrições sobre as crueldades habituais no regime escravocrata nas p. 458-9 de CG&S. A amante negra, o filho mulato, a proximidade entre o escravo e a casa grande não esmoreceram as relações desiguais e cheias de maldade, eivadas de sado-masoquismo. Ao mesmo tempo, e a despeito da desigualdade e da crueldade, foi havendo a assimilação cultural. Para não me alongar por desnecessário, basta ler as páginas sobre como a própria língua portuguesa foi sendo amaciada, abrandada e tornada mais meiga graças ao convívio com os negros, nas relações entre as casas grandes e as senzala. Na interpretação de GF isso reforça a crença de que:
"A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados, o caso dos pronomes que sirva de exemplo", referindo-se a que os portugueses colocam o pronome depois do verbo, enquanto os brasileiros tanto o usam assim, como fazem-no anteceder ao verbo. A partir dessa constatação de simbiose lingüística, opõe o que teria ocorrido no Brasil com a dureza das duas metades entre os ingleses e os americanos. E reafirma:
"Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-saxão, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se veem mutuamente enriquecendo de valores (...) (CG&S, p. 418) e por aí segue em uma descrição onde o que "eu gostaria que fosse" e o que realmente é se misturam no devaneio literário.
É esta ambiguidade permanente na escrita e nas interpretações de GF que lhe dá encanto, dificulta sua compreensão e gera incertezas sobre o significado profundo de sua obra. Mesmo criticando a sociedade escravocrata, mostrando suas degenerescências, não atribuindo aos negros os males do país (nem aos indígenas), mas a um sistema social iníquo, de repente, volta à tese do equilíbrio entre contrários e suas vantagens comparativas com outras culturas. Há um episódio descrito por Freyre do chibateamento de um soldado português ao qual até mesmo José Bonifácio - antiescravista ferrenho - assistiu impávido e por vontade própria. Isso mostraria o quanto todos estavam envoltos pela cultura da violência escravista. Não obstante, poucas páginas adiante, o próprio Gilberto Freyre gaba essa mesma cultura porque;
"Verificou-se entre nós - diz GF - uma profunda confraternização de valores. Predominantemente coletivistas, os vindos da senzala, puxando para o individualismo e para o privatismo, os vindos das casas grandes" (p. 438), confraternização que não adviria dos puros valores cristãos, do cristianismo ascético ao estilo protestante. Mas que se deu porque o cristianismo das senzalas, mais lírico festivo e doméstico penetrou na moral geral. A conversão dos negros ao catolicismo laicizado e sua aceitação pelos senhores, mostraria a plasticidade que só mesmo a "aproximação das duas culturas" poderia ter produzido e que não teria ocorrido em outras áreas onde a escravidão se implantou.
Para Gilberto Freyre as formas de socialização e aculturação que tornaram nossa sociedade diversa das demais de base escravocrata foi a convivência entre contrários, em permanente ora equilíbrio, ora desequilíbrio, mas sem ruptura e sempre com plasticidade cultural. Como se na oscilação entre um e outro polo houvesse espaços para acomodações sem a eliminação de quaisquer deles. Não que graças a isso se houvesse formado propriamente uma "democracia racial", pois a desigualdade, a crueldade e a violência entre senhores e escravos não é negada. A despeito delas, contudo, Gilberto encontra formas de mostrar que era assim, mas não seria bem assim. Dialética com uma contradição principal, mas que não se resolvia pela fusão total nem pela superação de ambos polos, se não que se arrastava oscilando e provocando pequenas mutações em cada um dos polos.
Preconceito e mobilidade
O último capítulo do livro dá continuidade à análise do papel do negro na família patriarcal. É nele que GF oferece maior flanco para a crítica. Sem negar as condições sociais, econômicas e mesmo ambientais que levaram à formação da sociedade patriarcal com todos os seus males, insiste na menor vigência de preconceitos e maior existência de formas de mobilidade social na sociedade patriarcal brasileira. Os casamentos inter-raciais, o concubinato, inclusive entre padres e mulheres negras e mulatas, a maior proximidade física entre as raças, a menor vigência de preconceitos e a existência de formas de mobilidade social abrandariam a dureza da sociedade escravocrata. Começa por afirmar uma estranha tendência "genuinamente portuguesa e brasileira, que foi sempre no sentido de favorecer o mais possível a ascensão social do negro" (CG&S, p. 503). Isso em um parágrafo no qual desmerece a crítica feita a partir de documentos que mostraram ter existido traços de discriminação racial na Colônia. Para se contrapor à menção a uma lei que declarou infames os portugueses que se ligassem a caboclas, apoiou-se em outra disposição, famosa, do Marquês de Pombal, que falava em dar incentivos aos colonos portugueses que tivessem filhos com as "tapes" para incentivar o povoamento da Amazônia. Embora, no caso se tratasse exclusivamente de mulheres indígenas, GF aproveita a opinião de Pombal para criticar alguns autores que faziam "do tipo mais complacente e plástico do europeu - os portugueses - um exclusivista feroz, cheio de preconceitos de raça, que nunca teve o mesmo grau elevado dos outros" (CG&S, p. 503).
No embalo de ver condições menos difíceis para a vida de negros e mulatos no Brasil patriarcal, nosso autor não para aí:
"muito menino brasileiro deve ter tido por seu primeiro herói, não nenhum médico, oficial de marinha ou bacharel branco, mas um escravo acrobata que viu executando piruetas difíceis nos circos. (...) E felizes dos meninos que aprenderam a ler e escrever com professores negros, doces e bons. Devem ter sofrido menos que os outros alunos de padres, frades, "professores pecuniários', mestres régios (...) (CG&S, p. 505) e segue numa reconstrução imaginária do que poderia haver ocorrido.
Noutra página, com seu estilo peculiar, referindo-se ao tratamento vigente nos colégios, ao contrário, fala do "sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro" (CG&S, p. 507). Assim como se refere a "negras e mulatas degradadas pela escravidão" e na "degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada." (p. 515)
Também se refere à existência de preconceitos contra os filhos de mestiços e desvantagens a que se submetiam, levando muitos deles a terem um complexo de inferioridade. Mas, acrescenta isso "mesmo no Brasil, país tão favorável ao mulato." (CG&S, p. 537).
Compreendem-se as dificuldades dos sociólogos da "escola paulista" em aceitar afirmações desse tipo, apresentadas sem maiores esforços para demonstrar sequer sua plausibilidade. Na verdade Gilberto Freyre neste capítulo se esmera em mostrar as condições especiais que teriam caracterizado a relação entre negro e brancos. E cai em uma emboscada: termina por assumir, abertamente posições preconceituosas. Assim, referindo-se com entusiasmo à "atividade patriarcal dos padres", embora exercidas em "condições morais desfavoráveis", afirma tratar-se de
"(...) contribuição de um elemento social e eugenicamente superior. Homens das melhores famílias e da mais alta capacidade intelectual. Indivíduos educados e alimentados como nenhuma outra classe, em geral transmitiram aos descendentes brancos, e mesmo mestiços, essa superioridade ancestral e de vantagens sociais." (CG&S, p. 535).
Freyre se refere a essa suposta "superioridade eugênica" mais de uma vez. Louva a reprodução pelos padres de filhos e netos de "qualidades superiores", assim como escolhe ao arbítrio exemplos de mestiços que no passado e até à sua época teriam chegado ao topo das elites literárias, profissionais e políticas. Isso mostraria a mobilidade social existente e, subliminarmente, insinua, como consequência, a pouca eficácia dos preconceitos, quando os havia.
Não é de espantar, pois, que também com referência aos judeus tanto em Casa Grande & Senzala como em outros escritos, nosso autor tenha distribuído qualificativos não isentos de preconceitos. Não me vou referir a eles por desnecessário: o livro de Sílvia Cortez Silva, Tempos de Casa Grande, publicado este ano, documenta largamente traços de anti-semitismo de Gilberto Freyre. Daí a considerar GF racista e ou mesmo anti-semita vai distância: seu estilo oscilante e seu prazer de gosto duvidoso de distribuir epítetos raciais não se limitavam aos judeus. Isto não os justifica, mas é preciso colocá-los no sentido geral da obra e não isoladamente.
A desagregação da ordem patriarcal
Não farei referências minuciosas aos demais volumes da trilogia famosa, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, porque já alonguei demais o texto para esta conferência. Mas não posso deixar de aludir a que é neles que se vê com mais nitidez o aspecto nostálgico da reconstrução que Freyre fez da formação patriarcal do Brasil. É também em SeM que fala mais abertamente da mobilidade democratizadora das relações sociais. Mesmo sublinhando a continuidade desses processos, ele acha, entretanto, que a ruptura da ordem patriarcal teve efeitos antes negativos do que positivos no equilíbrio dos contrários. A urbanização alterou as antigas formas de acomodação social:
" (...) o equilíbrio entre brancos de sobrados e pretos, caboclos e pardos livres de mucambos não seria o mesmo que entre brancos das velhas casas-grandes e os negros das senzalas" (SeM, p. 270).
Como recorda Brasílio Salum Jr. em resumo crítico de SeM, a ideia de patriarcalismo não se resumia à família ampliada, gravitando ao redor das casas grandes, mas era um conceito que abrangia "um complexo de elementos econômicos, sociais e políticos em que ressalta, mais que todos, o escravismo." (in Dantas Mota, L, org., Introdução ao Brasil: um banquete no trópico, São Paulo, Senac, 2ª. ed., 2002, p. 332).
Rompida a coesão social da senzala, os pretos e mulatos livres, passaram a viver e se organizar nos mucambos de forma distinta. A urbanização veio junto com a industrialização e esta reforçou o processo migratório que se iniciara desde a lei do Ventre Livre. Daí por diante, como Freyre escreve em Ordem e Progresso, a gravitação da sociedade brasileira se deslocou "do Oriente para o Ocidente". A civilização que se formara durante três séculos, civilização "agrária, agrícola e que absorvera, como seus, costumes orientais", isto é mouriscos e africanos, alguns destes também orientalizados, passa a sofrer os efeitos da europeização, ocidentaliza-se. Perde muito do "que nos era próprio".
Na visão de Gilberto Freyre o Brasil urbanizado e industrializado acentuaria as diferenças regionais, provocaria maior mobilidade social e geográfica e viveria sob novas tensões que não provieram das diferenças "de raças", como se essas "fossem, biológica ou psicologicamente incapazes de se entenderem ou de se conciliarem" (reproduz Salum, p. 353), e sim dos sub-grupos que se formaram em várias épocas, respondendo a visões culturais distintas. A industrialização e a concentração do progresso econômico em certas áreas aumentaram as distâncias sociais e as disparidades regionais, criando novas minorias, econômica e politicamente poderosas. Apesar disso e de que GF descreve em tom quase queixoso este "progresso europeizante", a matriz cultural que gerara o equilíbrio entre contrários continuava forte e o ator privilegiado da plasticidade sócio-cultural do Brasil permanecia sendo o mestiço, o mulato. A este, acrescentou mais um matiz em Ordem e Progresso: o dos amarelinhos, brasileiros esquálidos, quase raquíticos, baixos, mas intelectualmente brilhantes como... Santos Dumont, Ruy Barbosa, Euclydes da Cunha e outros eminentes personagens. Os mestiços continuavam a demonstrar serem capazes de criar uma sociedade progressista adaptada aos trópicos e aos tempos.
Há coerência e continuidade entre CG&S e SeM. As diferenças entre sua visão apresentada nestes dois livros e a dos intérpretes do Brasil mais favoráveis aos aspectos "ocidentalizadores" aparecem com nitidez em Ordem e Progresso. Este livro, fruto tardio da trilogia gilbertiana e, menos conhecido do que os dois anteriores, nem por isso é menos interessante. Interessante metodologicamente porque GF aplicou questionários para obter histórias de vida e com elas recompôs as mudanças sociais e culturais ocorridas entre 1870 e 1920, período abrangido pelo livro. O conhecimento da antropologia corrente na década de 1950, exibido na introdução metodológica, é impressionante. O modo de analisar não se modifica, contudo, em função desse conhecimento. Persiste em fazer sociologia histórica. Se não analisa a vida cotidiana de forma tão pormenorizada como nos outros volumes da trilogia, continua fiel à abordagem "em pinça", juntando comportamentos concretos, individualizados, que transcorriam no dia a dia da família, da rua, do trabalho, às modificações estruturais da sociedade. Interessante também porque o livro é de enorme valia para mostrar como diferentes tempos históricos se cruzam e como certos valores e formas de conduta persistem, apesar das mudanças estruturais, mantendo-se o jogo de equilíbrios entre contrários.
É mais do que conhecida a posição de Freyre sobre as "constantes" histórico-culturais, assim como é sabido seu apreço às posições "revolucionário-conservadoras", isto é, a dos homens que tendo entendido os novos tempos que adviriam, nem por isso deixaram de guardar o que de melhor havia no tempo antigo. Ordem e Progresso analisa as mudanças advindas da Abolição e da proclamação da República pondo ênfase na continuidade da unidade nacional, na manutenção de formas de coesão social, no respeito à propriedade privada e na manutenção de certo espírito que vinha do Império, espírito qualificado pelo autor como democrático, mas que seria melhor qualificar de "tolerante e paternalista". Fiel a suas convicções, GF realça a capacidade de conciliação que os políticos brasileiros demonstraram na transição da monarquia escravocrata para a República com predomínio do mercado livre. Conciliação que em muitos outros autores é percebida como a causa de nossos males, pois impede as rupturas revolucionárias.
Em OeP, o autor deixa mais claras suas ideias sobre o equilíbrio dos contrários. Se em plena escravidão viu canais lubrificados de ascensão social dos negros e tolerância racial, era de imaginar que mantivesse essa visão para o período pós-escravista e pós-monárquico. Da leitura resulta a sensação de que teria havido um apego à antiga ordem por setores negros, ex-escravos beneficiados com a Abolição - exemplificado pela Guarda Negra em defesa da monarquia -- ao mesmo tempo em que houve a aceitação pragmática dos novos tempos. Isso não só da parte dos negros e mulatos, mas também da elite. Na verdade, contraditoriamente, o Imperador, símbolo da tolerância que permitiu o equilíbrio de contrários, seria um "inadaptado": com alma republicana, formação humanística e vernizes europeus. Exercia simbolicamente a função de Grande Patriarca, mas não vestia o figurino do Homem de Estado. Jamais cultivou as Forças Armadas, deixou que o bacharelismo urbano medrasse em detrimento da força dos patriarcas rurais, foi fraco no entender os verdadeiros interesses do estado escravocrata. Em uma palavra: semeou a tempestade republicana.
Essas atitudes talvez expliquem o pouco reconhecimento explícito dos negros ao Império no momento de sua queda. Por sorte as "constantes culturais" fizeram com que a República não fosse sociologicamente uma Revolução, mas uma transmutação. Muito da antiga ordem permaneceu e os positivistas, pregando um estado centralizador e preocupados com a unidade nacional, não deixaram que aqui se reproduzisse o drama das "republiquetas" espanholas nas Américas, como antes o Império já havia logrado impedir que ocorresse. Melhor ainda: a vertente positivista que acabou predominando na República não foi a dos jovens militares radicalizados, simbolizados por Benjamin Constant, mas a de homens ponderados que sabiam que "a substância monárquica no Brasil se afigurava arcaica, mas não a forma autoritária de governo" (...) "prevaleceu o espírito de autoridade socialmente responsável, contra o de individualismo liberal" (OeP, p. 215)
Os negros e mulatos, mesmo não tendo condições para se oporem à República teriam percebido a Monarquia como instituição capaz de
"maternal ou paternalmente estender à gente de cor a proteção necessária ao seu desenvolvimento em parte viva de uma democracia social e não apenas política, um espírito que, na gente mestiça ou negra mais humilde vinha de longe" (OeP, p. 207).
Essa visão sobre a prevalência de um espírito benevolente na Monarquia reaparece em várias partes do livro:
"um regime tradicionalmente protetor deles (dos negros e mulatos humildes) contra os abusos dos particulares ricos" (OeP p. 208).
Mantivera-se, portanto, entre os negros uma certa nostalgia do Império, como se Monarquia e Escravidão não formassem um só bloco, como mostrou Sergio Buarque em sua clássica análise do período. Nostalgia que não se transformou nunca em movimento regressivo. Teria sido uma gratidão íntima, sem efeitos práticos. Ao mesmo tempo, as forças renovadoras continuavam atuando e modificando a ordem patriarcal. Esta tivera seu auge na Colônia, mantivera-se, embora enfraquecida, no Império, começava a desfazer-se na República. E, certamente não era para esse tempo futuro que se voltavam as melhores esperanças de Gilberto Freyre. Agudamente ele reconhecia que:
"A substituição do trabalho escravo pelo livre importava numa substituição do sentido de tempo na economia brasileira que não passou de todo desapercebida dos publicistas nacionais da época" (OeP, p. 255)
O avanço do capitalismo e da industrialização requeria que houvesse maior racionalidade no uso do tempo e o "trabalho abstrato" ganhava preeminência. Nas palavras um tanto confusas de Freyre para explicar o que Marx já o fizera mais claramente:
"no Brasil escravocrático, o capital vinha funcionando simultaneamente como senhor do 'dinheiro da terra', dos 'utensílios' e do 'trabalho; mas não do dinheiro vivo representado pelo tempo. Para que o tempo no Brasil passasse a significar como na nova Europa industrial e nos Estados Unidos, dinheiro vivo, era preciso que o trabalho se tornasse também agente na produção nacional: agente responsável." (OP, p. 256).
Elide Rugai Bastos sintetiza bem as análises de Ordem e Progresso dizendo que a nova tensão a que se refere o livro tem no fundo a preocupação com a atração exercida pela economia americana, pelo capitalismo internacional, pela industrialização destruidora eventual da agricultura de exportação, enfim, demolidora das bases do sistema patriarcal:
"A motivação principal do trabalho encontra-se na resposta à pergunta como na mudança de regime se mantém a organicidade da sociedade e a unidade nacional? Se no Império a simbiose monarquia e patriarcado favoreceu uma ordem de certa forma democrática, no momento republicano o que favorecerá sua continuidade ?" Elide Rugai Bastos. "Sobrados e Mucambos", in Mota, Lourenço Dantas, org., p. 360)
A partir da República, com o "americanismo" de Rui Barbosa e as novas forças econômicas, somadas à presença dos imigrantes e à regionalização do progresso econômico (na verdade, digo eu, a mudança de eixo econômico do Nordeste para o Sudeste e Sul, mas, sobretudo, São Paulo) estariam sendo destruídas as bases da economia latifundiário-patriarcal e a cultura por ela gerado? Sim e não, responderá Gilberto: o equilíbrio entre contrários amortecia a voragem modernizadora. O positivismo, do lema "ordem e progresso" elevado à condição de dístico da bandeira nacional, já mostrava que o elemento "ordem" não deveria se separar do "progresso". O exército nacional, de alguma forma substituiria o elemento agregador simbólico representado pela monarquia. O "presidencialismo imperial" que dura até hoje, asseguraria que na república federativa os focos locais de poder econômico e político, a integridade territorial do país e, quem sabe, o espírito público coletivo, permanecessem vigentes, assim como a sociedade se manteria "etnicamente democrática". Sociologicamente a República seria a continuação do Império.
Mesmo assim, Gilberto Freyre, dessa feita como cientista político, lastima que a República não tenha entendido bem o que tampouco o imperador entendera: a necessidade de preservar melhor as sugestões de espaço - o tropical- e de passado, o lusitano e hispânico. A "gente utópica" (lembrando Oliveira Vianna) que fez a República olhando para o futuro americano-europeu e criando um "terceiro tempo social" (os outros dois teriam sido o da Colônia e o do Império) também não soube pouparmos de ver na industrialização o caminho único da modernização. O protecionismo industrial levou à criação de uma indústria "carnavalesca", e ao se proteger uma região - a sudeste -- protegeu-se, de fato, uma classe. Até mesmo a valorização da ciência em detrimento da religião foi uma forma de desconsiderar nossas bases culturais mais profundas. Daí a crise da República: governo e sociedade se desentenderam. No fogo cruzado entre, por um lado os diferentes projetos políticos propostos para o Brasil, os de Rui, Nabuco e Rio Branco, que foram capazes de permanente reconciliação e não deixaram o país se dividir em duas metades e, por outro lado, o dos que valorizaram a prata da casa e certo regionalismo, como em Canaã de Graça Aranha que mostrava o conflito entre o adventício e o antigo, ou de Euclydes, que nos Sertões dá preeminência ao clima e ao meio tropical para explicar as formas de sociabilidade, a República ficou hesitante, sem enfrentar as grandes questões sociais. Gerou mais desilusões do que realizações e a partir da década de 1920 preparou o fim do tempo histórico-social da sociedade patriarcal.
Em suma, "os tempo modernos exigiam mudanças e a ordem patriarcal tornou-se impedimento a um desenvolvimento secularizador. Cindiu-se o pacto" (Rugai, op cit pág 384)
A soma e o resto
Terminado o texto desta conferência, reli o que escrevi, ou melhor, o que disse sobre Gilberto Freyre há alguns anos em uma solenidade no Itamaraty e que foi transcrito em artigo revisado por mim e publicado sob o título "Livros que inventaram o Brasil" (Novos Estudos, n. 37, novembro de 1993). Decepcionei-me: disse de modo mais sucinto e talvez de maneira mais simples e elegante o que repito agora, dezessete anos depois.
Consolei-me com uma coisa, não modifiquei no essencial minhas opiniões sobre Casa Grande & Senzala. Da nova leitura desse e dos demais livros mencionados nesta conferência, ficou mais claro para mim, entretanto, que se houve muita inovação no pensamento de nosso autor, seu texto, embora fascinante, tem um andamento tão oscilatório e com afirmações tão contraditórias que talvez isso, tanto quanto o inegável viés nostálgico de certas análises, dificultou o reconhecimento do significado da obra de Gilberto Freyre pelos sociólogos da "escola paulista" e por outros cientistas sociais.
Mesmo mais tarde, em gerações posteriores à minha e com saber especializado mais profundo, continuou difícil aceitar a importância da obra de nosso homenageado sem a advertência de um "porém". Exemplo disso é o livro de Ricardo Benzaquen de Araújo, Guerra e Paz, que faz uma análise de CG&S mais do ângulo antropológico e procura ser equilibrado no julgamento (embora de escrita quase tão elusiva quanto a do mestre criticado) mas não consegue esconder a perplexidade diante dos vai-e-vens interpretativos e mesmo descritivos.
É inegável, contudo que Gilberto Freyre significou uma ruptura com o pensamento predominante em sua época, tanto por ter se afastado das interpretações sobre o Brasil que endeusavam o papel do estado e se enamoravam do autoritarismo, quanto por ter, a seu modo, repudiado o racismo e valorizado a miscigenação. Nesse sentido a obra mantém validade nos dias de hoje. Gilberto Freyre não chegou a fazer, contudo, crítica radical de nossa herança em matéria de cultura política e de organização institucional como fez Sergio Buarque de Holanda, seu contemporâneo. Sérgio criticou o que se valorizava na época e ainda hoje: o caráter cordial dos brasileiros, nossas especificidades culturais afetivas. Mostrou as consequências políticas desastrosas da herança ibérica cozida no sol dos trópicos: o personalismo, o caudilhismo, a falta de regras e de hierarquias que significam muito mais arbítrio senhorial do que camaradagem entre iguais. Gilberto raramente fala de igualdade e com a noção de "equilíbrio entre contrários" - essencial em suas interpretações - passa a impressão de aceitar a desigualdade, embora reaja à ideia de desigualdade racial. Sergio mostra que sem a igualdade abstrata, formal, da lei e sem seu exercício prático ancorado na cultura política, não há democracia. Critica o que Gilberto erige como feito luso-brasileiro de adaptação aos trópicos com a colaboração indígeno-africana: nossa matriz cultural. Mais ainda, Sergio Buarque de Holanda acreditava que a renovação político-cultural viria com a urbanização e o advento das massas de cidadãos reivindicantes. Gilberto, pelo contrário, viu na urbanização e na industrialização a ameaça ao que de melhor havia em nossas tradições culturais.
Não cabem dúvidas que Gilberto Freyre revolucionou a perspectiva de análise da sociedade brasileira, mas o fez como um "revolucionário-conservador", ao estilo que tanto o agradava. Ressaltou características da cultura política de conciliação, saudando-as, o que tanto pode ser lido como visão conservadora da história quanto, à luz até mesmo de experiências recentes, uma das "constantes culturais" que podem nos ser incômodas.
No tópico específico das relações entre as raças e da falada "democracia racial", parece ser mais correto dizer que via mais um equilíbrio entre diversos do que uma "democracia", expressão que usou raramente e mais se referindo a uma eventual convivência harmoniosa entre desiguais do que no sentido corrente da expressão. Cabe acentuar, nesse caso sim, que Gilberto Freyre, apesar dos deslizes costumeiros salpicando uma ou outra frase com expressões "racistas", era profundamente contrário ao afastamento físico e cultural entre as raças. Se pensou contudo em igualdade foi a que seria assegurada pela miscigenação racial e pelo sincretismo cultural. Não concebia, como está se tornando voga hoje em dia, uma afirmação racial que marcasse diferenças entre "raças", a dos brancos e a dos não brancos. A ideologia emergente em nosso meio marca as diferenças e as identidades, para depois pedir igualdade entre elas. Gilberto Freyre propugnava uma névoa entre os matizes da pele e o repúdio de diferenças essenciais.
Com todas essas ressalvas, como explicar a perenidade da obra de Gilberto Freyre? Em outras ocasiões, além de me referir, como nesta conferência, a suas qualidades literárias e aos aspectos inovadores reiterados, fiz menção a que ela tem uma força mítica. Especifico os dois sentidos aos quais caberia o qualificativo. Primeiro, a moda de Lévi-Strauss:
"D'abord chaque mythologie locale, confrontée à une histoire et à un milieu donnés, nous apprend beaucoup sur la société d'où elle provient, expose ses ressorts, éclaire le fonctionnement, le sens et l'origine des croyances et des coutumes dont certaines posaient, parfois depuis des siècles, des probèmes sans solutions. À une condition toutefois: ne jamais se couper des faits. (...) Revenir aux mythes certes; mais sourtout aux pratiques et aux croyances d'une société déterminée qui peuvent seules nous renseigner sur ces relations qualitatives." (Claude Lévi-Strauss, "Histoire de Lynx", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 2009, p.1429).
Não será isso que faz Gilberto Freyre depois de estabelecer a relação binária - própria dos mitos - de contrários que se equilibram? Suas análises minuciosas das relações entre as pessoas, seu destrinchar permanente de traços culturais, suas tentativas de delimitar as relações entre o físico, o biológico e o meio ambiente, sempre revisitadas à luz da vivência humana, constituem a força de seus livros, tanto ou mais que suas "visões" encantatórias.
Também noutro sentido, menos usual, há uma força mítica na obra de Gilberto Freyre. Refiro-me ao mito soreliano (de Eugène Sorel) visto como um conjunto de imagens intuídas que desperta sentimentos. Nesse sentido, a sociedade patriarcal, as relações desiguais, mas próximas, entre as raças, o repúdio do racismo como conceito heurístico, a afirmação de uma cultura própria funcionariam como um ponto de fuga que, se não retrata a realidade, faz parte dela. Faz-nos recordar também que não existe uma "realidade" dada. Nas sociedades, de certa maneira, tudo é processo, ora mais estável, ora se desfazendo, ora se refazendo, mas sempre guiado por distintas visões de futuro.

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