ESCOLA PÚBLICA
Vítima indefesa das universidades
José Maria e Silva
Jornal Opção (Goiânia), 21/08/2011
O Ideb na porta das escolas não vai medir o mais grave problema da educação brasileira: a pedagogia da destruição que as universidades impõem ao ensino público
O governo goiano, por intermédio da Secretaria Estadual de Educação, adotou uma medida pioneira no País — a transformação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) numa espécie de DNA das escolas. A partir de agora, todas as escolas estaduais serão obrigadas a ostentar uma placa com a nota obtida no Ideb, tornando público seu sucesso ou fracasso no referido índice. Como pai da ideia, o empresário e economista Gustavo Ioschpe, pensador ad hoc da educação, esteve em Goiânia respaldando a decisão do secretário de Educação, Thiago Peixoto. Em seu Twitter, no final da tarde de segunda-feira, 15, Ioschpe não escondeu o entusiasmo: “Saindo de Goiânia. Ideb na Escola lançado na rede estadual de Goiás. Primeiro Estado. Grande vitória. Vamos em frente”.
A proposta de Gustavo Ioschpe ganhou força entre as autoridades do País e tende a virar lei federal, valendo para todas as escolas brasileiras. É o que prevê projeto de lei do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM), apresentado na Câmara dos Deputados em 7 de junho. No mesmo dia, o deputado Edmar Arruda, do PSC do Paraná, apresentou projeto semelhante, que foi apensado ao do parlamentar goiano. Uma semana depois, em 15 de junho, foi a vez do deputado Fernando Torres, do DEM da Bahia, apresentar projeto praticamente idêntico, também apensado ao de Caiado. E na mesma data, coube à senadora Lúcia Vânia, do PSDB de Goiás, inaugurar essa discussão no Senado, com um projeto de lei do gênero.
Além dessas iniciativas no Congresso Nacional, diversas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais pelo País afora estão discutindo projetos semelhantes, todos eles inspirados na proposta de Gustavo Ioschpe. No caso dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, o mais ousado é o de Ronaldo Caiado, pois ele obriga todas as escolas do ensino básico — não só as públicas, mas também as particulares — a exibir a nota obtida no Ideb. Se aprovado, o projeto de Caiado exigiria adaptações no Ideb, pois a Prova Brasil, um dos indicadores que compõem o índice, é aplicada por amostragem no ensino privado e não universalmente, como ocorre no ensino público urbano.
Paulo Freire da “direita”
A proposta de obrigar as escolas públicas a divulgarem seu Ideb foi lançada por Gustavo Ioschpe na revista “Veja”, na edição de 8 de junho. Ao final de um artigo em que falava de sua participação na “Blitz da Educação”, do “Jornal Nacional”, Ioschpe lançou o seguinte desafio: “As escolas públicas do País deveriam ser obrigadas por lei a pôr o seu Ideb em placa de 1 metro quadrado ao lado da porta principal, em uma escala gráfica mostrando sua nota de zero a 10. Na placa deveria aparecer também o Ideb médio do município e do Estado. A maioria dos pais e professores hoje não sabe se a escola do filho é boa ou ruim, e, se esperarmos que consultem o site do MEC, seremos o país do futuro por muitas gerações. Mande um e-mail para seu deputado e exija essa lei”.
Como as edições de “Veja” são datadas com base na quarta-feira, mas começam a circular no sábado anterior (no caso, 4 de junho), o projeto de lei de Ronaldo Caiado, como ele próprio admite, foi inspirado no artigo de Gustavo Ioschpe, mesmo tendo sido apresentado em 7 de junho. A partir daí, o Ideb na porta das escolas tornou-se uma febre entre políticos de todo o País. Em 7 de julho, Ioschpe anunciou no seu Twitter: “Bomba! Cidade do Rio de Janeiro vai aderir amanhã ao Ideb na Escola. Gol de placa! Parabéns a Eduardo Paes e Claudia Costin” (secretária de Educação da cidade). O próprio prefeito Eduardo Paes respondeu: “Ioschpe, vamos seguindo suas dicas. Aqui no Rio o esforço é total para avançar na educação”.
Gustavo Ioschpe, um jovem de 34 anos, virou sumidade da educação no País, uma espécie de “Paulo Freire da direita”, como poderia dizer a esquerda se ousasse brincar com o santo nome de Freire. Entre seus fiéis seguidores no Twitter estão dois goianos: o próprio secretário estadual de Educação, Thiago Peixoto, e a ex-secretária e ex-deputada federal Raquel Teixeira. Outros políticos do País inteiro, talvez na esperança de conseguir espaço na grande imprensa, enchem o Twitter do economista não apenas com mensagens de apoio, mas também com o anúncio de projetos de lei baseados em sua proposta. Além deles, Ioschpe vem recebendo respaldo da grande imprensa e de outras instituições, especialmente de “Veja”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e Grupo RBS, além do publicitário Nizan Guanaes.
Ideb não é varinha mágica
A proposta de obrigar as escolas públicas a expor o seu Ideb não é ruim. Mas confundir termômetro com varinha de condão é péssimo. O Ideb detecta sintomas, mas é incapaz de curar doenças. E, como todo indicador de qualidade, ele enfrenta críticas desde que foi criado, em 2007, pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação, que também criou o Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), em 1990, e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 1998. É certo que grande parte dessas críticas têm um fundo ideológico e não se alicerçam na realidade do ensino, mas na utopia dos críticos. Mesmo assim, não convém fazer do Ideb uma espécie de solução mágica para todos os problemas do ensino público; agir assim é contrariar a própria razão de ser desse índice.
Por mais que sejam passíveis de falhas, os índices de qualidade da educação são uma tentativa salutar de avaliar o ensino com base em dados concretos, evitando o discurso apocalíptico ou salvacionista que sempre caracterizou os pensadores da educação. Como observa Emile Durkheim (1858-1917), no clássico “A Evolução Pedagógica”, cada teórico da educação tende a avaliar a escola com base na utopia que professa e não na realidade que vê. Essa tendência começou com a “Didática Magna” (1633), do tcheco João Amós Comênio (1592-1670), ancestral do ensino dito progressista, e virou doença com o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de “Emílio ou Da Educação” (1762). Rousseau influenciou todo o pensamento pedagógico moderno, mesmo tendo sido um completo fracasso na criação dos próprios filhos, os quais abandonou.
Uma das críticas ao Ideb parte do professor Dermeval Saviani, livre-docente da Unicamp, com pós-doutorado pela Universidade de Bologna, na Itália, que, em entrevista ao caderno “Mais!”, da “Folha de S. Paulo”, em 29 de abril de 2007, acusou o índice de ser fruto de uma “pedagogia de resultados”. Eis o que afirmou Saviani ao jornal: “É uma lógica de mercado, que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos da chamada 'pedagogia das competências' e da 'qualidade total'. Esta, assim como nas empresas, visa a obter a satisfação total dos clientes e interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço, os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável”.
Utopia histórico-crítica
A exemplo da quase totalidade dos pedagogos brasileiros, começando por Paulo Freire (1921-1997), criador do que chamo de “autoajuda marxista”, Dermeval Saviani acusa o Ideb de se guiar pela “lógica de mercado”, mas se esquece que sua própria crítica é pautada pela utopia socialista da “pedagogia histórico-crítica”, uma corrente pedagógica criada por ele, com fundamento em Karl Marx (1818-1883) e, por isso mesmo, muito utilizada nos cursos de pedagogia do País. Até mesmo a avaliação do Plano Nacional de Educação 2001-2008, encomendada pelo próprio MEC e capitaneada por professores da Universidade Federal de Goiás, padece de marxismo congênito, o que mostra a enorme dificuldade de se avaliar a qualidade da educação básica no País, pois a universidade, responsável por essa avaliação, tem um forte viés ideológico.
Ao contrário do que pensam os pedagogos marxistas e os militantes sindicais, não é errado, em si, cobrar resultados das escolas. Eles próprios fazem isso o tempo todo, só que de uma forma perversa: os resultados que cobram dos professores não dizem respeito ao mundo concreto, mas ao “outro mundo possível”, em nome do qual excluem os alunos do mundo real. Trata-se da lógica irracional da utopia, que faz tábula rasa da realidade. A depender dessa pedagogia, a escola se torna partido político, o professor vira militante de uma causa e o ensino se transforma em pura doutrinação. Prova disso é que o linguista Marcos Bagno, no famigerado “Preconceito Linguístico” (que já está na 50ª edição), chega a questionar o ensino como instrumento de promoção social do aluno e indaga textualmente: “Valerá mesmo a pena promover a 'ascensão social' para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta hoje?”
Indicadores de qualidade como o Ideb procuram mostrar que não é preciso virar o mundo de ponta-cabeça para se ensinar português e matemática a uma criança, como acreditam os discípulos de Paulo Freire. Sem dúvida, como dizia Durkheim, “a vida é, às vezes rude, outras vezes, enganosa ou vazia”, mesmo assim, a escola não pode abdicar do mundo tal como ele é, como se fosse uma seita milenarista dedicada a pregar o Apocalipse para melhor apressar o novo Éden. O papel da escola não é educar o aluno para utópicos mundos possíveis, mas para concretos mundos prováveis, os quais lhe compete deduzir com base na realidade. Isso não é “lógica de mercado” - é apenas lógica de sobrevivência humana, que vale em qualquer sociedade desde que o mundo é mundo. Privar o aluno disso, como fazem os pedagogos ditos progressistas, é um crime.
Condições sociais
Sem dúvida, fatores socioeconômicos interferem na educação. Quanto mais baixo é o nível social de uma família, mais difícil é o aprendizado de seus filhos. Obviamente, nem todo pobre está fadado à ignorância. Ao contrário do que prega a maioria dos intelectuais contemporâneos, a inteligência também depende de fatores hereditários. Mesmo assim, não dá para negar que o aluno do ensino público costuma ficar em desvantagem em relação a seus concorrentes do ensino privado. Felizmente, os pedagogos abandonaram o determinismo marxista do passado, mas o Inep continua reconhecendo, acertadamente, que o capital cultural do aluno tende a ser influenciado pelo seu nível socioeconômico.
Só que o instituto também mostra, na análise da Prova Brasil, que o desempenho dos alunos com o mesmo perfil nem sempre é igual. As escolas foram agrupadas por cinco níveis socioeconômicos, do nível 1, o mais baixo, ao nível 5, o mais alto. A escola com maior desempenho no nível socioeconômico mais baixo obteve 206 pontos na Prova Brasil, enquanto a escola de maior desempenho no nível socioeconômico mais alto alcançou 224 pontos. A diferença também se repete entre as escolas de menor desempenho, que obtiveram nota 144 no nível 1 e 174 no nível 5. A média das escolas variou de 173 pontos no grupo de menor nível socioeconômico para 207 pontos na de maior nível.
“A medida que o nível socioeconômico cresce, também aumenta a nota da escola”, conclui o Inep. “Este é um fato já amplamente conhecido, mostrando que o desempenho do aluno reflete, ainda que de forma, não determinística, o capital cultural de sua família, que, no Brasil, está muito associado ao nível socioeconômico”, acrescenta. Mas, em seguida, ressalva que, numa mesma cidade, entre alunos com o mesmo nível socioeconômico, houve expressiva variação de desempenho na Prova Brasil. No nível 3, por exemplo, a pior nota foi 133 e a melhor, 208. “A diferença entre esses dois valores - 75 pontos - é tão relevante que corresponde a mais de três anos de escolarização”, sustenta o Inep. E conclui: “Como a diferença entre as escolas de um mesmo nível socioeconômico não está nos alunos, esta deve ser procurada na gestão pedagógica, na forma de ensinar, na cultura, nos valores da escola ou no projeto pedagógico. Todos esses pontos passíveis de serem mudados com a ação da escola”.
Dimensão moral da escola
A conclusão do Inep mostra o quanto pode ser perigosa a transformação do Ideb na solução para todos os problemas do ensino. O fato de um determinado grupo de alunos ter o mesmo nível socioeconômico não significa que eles sejam todos iguais e que qualquer diferença em seu aprendizado seja responsabilidade exclusiva da escola, como acredita o Inep. O mundo sempre foi prenhe de pobres geniais e ricos estultos que contrariam o determinismo dessa tese. Além disso, a educação comporta uma dimensão moral que jamais é avaliada por indicadores de qualidade como o Ideb. O que mais atrapalha o aprendizado de um aluno não é o seu baixo nível socioeconômico e, sim, o seu baixo nível moral. Ninguém é capaz de ensinar um aluno indisciplinado, que se recusa a aprender. E isso o MEC, o Inep e as universidades se recusam a enxergar.
Uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), que teve o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), ajuda a elucidar essa questão. Realizado entre 2009 e 2010 em 61 escolas da Zona Leste da cidade de São Paulo e divulgado em julho último, o estudo constatou que, quanto maior a vulnerabilidade social de um determinado território, menor é o nível da qualidade de ensino de suas escolas e também menor é a aprendizagem dos alunos. O estudo tomou como parâmetro as notas das escolas no Ideb e constatou que, quanto mais vulnerável é o território em que a escola está situada, menor é a sua nota.
A vulnerabilidade social do território da escola é tão importante que interfere até na bagagem cultural que o aluno traz de casa. A pesquisa do Cenpec mostra que, nas escolas de baixa vulnerabilidade social, 39% dos alunos de maior nível cultural conseguem atingir um nível adequado ou avançado no Ideb. Já nas escolas de alta vulnerabilidade, esse índice cai para 19%. Além disso, 41% dos alunos de maior nível cultural não conseguem nem mesmo atingir o nível básico no Ideb quando estudam em escolas vulneráveis, enquanto nas escolas de baixa vulnerabilidade apenas 19% desses alunos ficam abaixo do básico.
Uma tragédia educacional
Quando a vulnerabilidade da escola se soma ao baixo nível cultural que o aluno traz de berço, então, temos uma verdadeira tragédia educacional. Do total de alunos com baixos recursos culturais que estudam em escolas altamente vulneráveis, cerca de 50% se situam na categoria abaixo do básico, enquanto apenas 10% se situam nos níveis adequado e avançado. Já nas escolas de baixa vulnerabilidade social, mesmo os alunos que trazem pouca bagagem cultural de casa conseguem um desempenho bem melhor: os que se situam abaixo do básico caem para 38% (12 pontos a menos em relação às escolas de alta vulnerabilidade) e os que conseguem atingir o nível adequado sobem para 24% (14 pontos a mais).
Os pesquisadores do Cenpec concluem que, nos territórios de alta vulnerabilidade, as escolas são o principal equipamento público de referência e “tendem, por isso, a ser tomadas pelos problemas sociais do território”. Vale a pena transcrever uma da conclusões do estudo: “As escolas de meios vulneráveis tendem a apresentar um corpo discente fortemente homogêneo no que diz respeito aos baixos recursos culturais familiares e ao local de residência na vizinhança vulnerável da escola. Elas tendem, por essa razão, a reproduzir, em seu interior, a segregação territorial urbana e sociocultural da população que atendem, bem como os problemas decorrentes dessa segregação”.
Os pesquisadores do Cenpec não dizem, mas eu digo: esse quadro se torna ainda mais grave pela influência das universidades no ensino básico. De acordo com a ideologia pedagógica predominante no País (o construtivismo), o aprendizado do aluno deve ocorrer de modo autônomo a partir do seu contexto cultural. Com isso, o professor que leciona nessas regiões de alta vulnerabilidade social não pode fazer da escola um instrumento civilizador - tem de deixar que o aluno despeje na sala de aula toda sorte de barbárie que traz do seu contexto. Se não agir assim, o professor será acusado de opressor e preconceituoso. Por isso, até os livros didáticos de português, inspirados na sociolinguística de Marcos Bagno, estão banindo a norma culta do idioma, com se a função da escola fosse referendar as gírias dos guetos.
O paradoxo das notas
Se o Ideb for colocado na porta das escolas para que elas possam pedir socorro à sociedade, ele será bem-vindo. Mas se for utilizado como instrumento de pressão contra diretores e professores, será mais um desastre na educação brasileira. O verdadeiro problema do ensino básico não é o professor, mas o aluno. Não basta que o professor saiba ensinar - é preciso que o aluno queira aprender. Até Jesus Cristo, na Parábola do Semeador, deixa isso claro: é impossível cultivar uma semente na pedra. Em toda a história da educação brasileira, jamais as escolas públicas contaram com tanto recursos materiais e humanos como contam hoje. Nas grandes cidades, um percentual expressivo de professores tem especialização, mestrado e até doutorado, mas as notas do Ideb são mais altas nas pequenas cidades, onde a qualificação do professor é menor.
São duas as razões para esse paradoxo: primeiro, os cursos de pós-graduação, em muitos casos, só servem para confundir o professor do ensino básico, na medida em que desprezam sua experiência didática em nome de utopias mirabolantes; segundo, a aprendizagem do aluno da escola básica depende mais da autoridade do que da capacidade intelectual do professor. Por isso, Cajuru, no interior de São Paulo, com 23.371 habitantes, e Eirunepé, na Amazônia, com 30.665 moradores, saíram-se muito bem no Ideb de 2009. Cajuru conseguiu colocar seis de suas oito escolas no ranking das melhores médias, enquanto uma escola pública de Eirunepé obteve a quarta melhor nota (8,7), ultrapassando em 3,6 pontos a meta para 2011. Em cidades pequenas, as famílias tendem a estar mais próximas da escola e, com isso, reforçam a autoridade do professor — que é imprescindível para o aprendizado do aluno.
E é justamente a autoridade do professor que vem sendo vilipendiada pelas universidades. As pesquisas acadêmicas sobre educação costumam apontar o suposto autoritarismo dos mestres como causa da violência e indisciplina entre os alunos e ainda acusam os professores de não serem suficientemente criativos para atrair a atenção da classe. É o que se vê no livro “Juventudes: Possibilidades e Limites”, publicado pela Unesco, como resultado de um grande seminário sobre o tema realizado na Universidade Católica de Brasília em novembro de 2009, com o apoio do governo federal. Nesse seminário, ongueiros, executivos federais e doutores universitários foram praticamente unânimes em criticar os professores, acusando-os de não dar voz aos alunos, como se os alunos, hoje, não dessem palpite em tudo dentro da escola. Os professores é que são silenciados, tanto que nunca são chamados a falar nesses seminários.
Leniência do sistema de ensino
Um dos participantes da conferência, o assessor da presidência do BNDES, Ricardo Henriques, chegou a afirmar que “há uma falta de aderência dos professores à vontade dos alunos” e acusou o docente de ser “desencadeador de situações de violência”, como se o professor não fosse uma vítima acuada pela classe, que, uma vez referendada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pode fazer dele o que quiser. Todos os professores que ouvi em minha dissertação de mestrado — defendida há quase dez anos — disseram já ter sido xingados com palavrões por alunos. Um deles afirmou: “Um aluno que xinga o professor, que ameaça de morte o professor, tem que ser pelo menos suspenso. Mas não acontece nada. Hoje, o aluno dizer para o professor ‘vai tomar no cu’ é uma coisa normal. Aluno já me mandou fazer isso. Conversei com a diretora e ela disse que não podia fazer nada. Isso está errado. A escola tinha que poder fazer alguma coisa”.
Que outro profissional convive com isso todo dia como o professor é obrigado a conviver? E o professor não tem a quem reclamar. Os intelectuais universitários veem-no como um incapaz; as autoridades educacionais tratam-no como um relapso; os pais consideram-no um serviçal de seus filhos; os alunos transformam-no em verdadeiro palhaço. E todas as instâncias educacionais do País tentam esconder essa realidade, pois o estudante não pode ser responsabilizado por nada. E quando alunos agridem violentamente um colega ou um professor, muitas vezes é a vítima quem tem de mudar de escola. E se ocorre de o agressor ter de sair, ele jamais é expulso, mas apenas transferido pela própria direção. Ou seja, é premiado, pois não terá nem o trabalho de procurar vaga em outro estabelecimento de ensino — a direção da escola é obrigada a fazer isso por ele.
Entre as soluções para a violência que os acadêmicos defendem estão a abertura das escolas para a comunidade nos finais de semana — sobrecarregando ainda mais o professor — e a promoção da “Cultura da Paz”. Esse movimento, criado pela ONU e encampado pelo MEC, consiste em legitimar as gangues que depredam a escola, pois retira delas o caráter de agressoras — que, de fato, são — para conferir-lhes o “status” de parte legítima de um conflito social. Como se não bastasse, as universidades ainda defendem que os próprios alunos sejam capacitados em mediação de conflitos, fingindo não ver que esses conflitos, na maioria das vezes, envolvem drogas, facas, estiletes, armas de fogo e propensão à chacina, pois membros de gangue são animais selvagens: não sabem o que é honra se deleitam em massacrar, em grupo, a vítima indefesa.
Professor como subcidadão
É na porta desse tipo de escola que a Secretaria Estadual de Educação vai pendurar a placa com a nota do Ideb. Como eu disse, a medida pode ser positiva, desde que não se transforme em mais um instrumento de tortura psicológica contra professores e diretores e sirva como um pedido de socorro da escola, permitindo-se a ela que explicite todos os seus problemas, como a violência, a indisciplina, a vadiagem dos alunos e a tresloucada inclusão de deficientes mentais grave entre alunos normais. Por que Thiago Peixoto, Ronaldo Caiado, Lúcia Vânia, Eduardo Paes e várias outras autoridades pelo País afora dão as costas para esses problemas que os professores relatam todos os dias e correm para pôr em prática as ideias de Gustavo Ioschpe, sendo que muitos mestres da rede pública têm de magistério o que Ioschpe tem de vida?
A importância excessiva que os políticos dão ao empresário e economista é uma forma indireta de desmerecimento do professor. É como se ele valesse mais do que todos os professores brasileiros juntos. Mas os políticos não são os únicos culpados por agirem assim. Foi a universidade quem transformou os professores do ensino básico em subcidadãos. Raras são as pesquisas acadêmicas que ouvem o professor e, quando o fazem, é apenas para desacreditar o que ele diz. Por isso, Gustavo Ioschpe consegue pontificar sobre educação com tanta facilidade, apesar de nunca ter posto os pés numa escola pública, a não ser como celebridade, nas asas do “Jornal Nacional”. Ioschpe é colunista da grande imprensa desde os 20 anos e logo se tornou uma espécie de guru da educação, sobretudo depois do lançamento do livro “A Ignorância Custa um Mundo”, em 2004.
Filho de um engenheiro e industrial gaúcho com uma jornalista e socióloga, Gustavo Ioschpe é herdeiro da Iochpe-Maxion (sem o “s”), empresa do ramo automotivo e ferroviário, além de dono da G7, uma produtora de documentários sobre futebol. Como se vê, educação para ele é quase um hobby, talvez um desafio cognitivo. Isso não significa que não esteja certo em muitas de suas análises, como a defesa que faz do mérito na educação e a crítica ao corporativismo dos sindicatos. Errados estão os que o transformam em gênio salvador do ensino público, apenas porque teve a ideia de pendurar o Ideb, feito um chocalho, no pescoço do professor. Imaginem se um secretário de Saúde resolvesse esfregar na cara dos médicos um indicador da medicina proposto por um profissional de outra área. Ficaria pouco tempo no cargo.
Mais ônus sobre a escola
O principal objetivo de se colocar o Ideb na porta das escolas é mobilizar a comunidade, sobretudo os pais de alunos, para que cobrem a melhoria da qualidade de ensino. Mas é pouco provável que isso aconteça. A tendência é que justamente os pais irresponsáveis, interessados em terceirizar a criação de seus próprios filhos, monopolizem as cobranças junto à direção da escola. As leis vigentes, começando pela Constituição de 88 e passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, facilitam isso. Elas tanto fizeram para destruir o pátrio poder que muitos pais já estão achando boa a ideia de não terem que se preocupar com os próprios filhos. O próprio MEC deixa claro, no documento sobre a Prova Brasil, que a melhoria da nota no Ideb é responsabilidade exclusiva da escola e jamais do aluno. Sem dúvida, um convite para que os pais lavem as mãos e deixem o problema nas costas do professor.
Aqui vai um só exemplo dessa tendência cada vez mais crescente. Em março deste ano, um grupo de pais do Rio de Janeiro foi condenado a pagar uma indenização de R$ 18 mil por danos morais à diretora de uma escola — ela tinha sido achincalhada por alunos no Orkut, com palavras de baixo calão. Em sua defesa, os pais dos alunos alegaram que a diretora constrangia seus filhos e que eles apenas queriam “estar na moda” ao criar o Orkut. Ora, esse tipo de pai pode ser um aliado da escola na luta pela melhoria do ensino? É óbvio que não. Um pai responsável simplesmente mandaria o filho apagar o Orkut difamatório e iria pessoalmente com ele pedir desculpas à diretora.
Como dizia Durkheim, toda sociedade, para sobreviver, necessita de um mínimo de conformismo lógico associado a um mínimo de conformismo moral. E é justamente a lógica e a moral que estão sendo sistematicamente destruídas pelas próprias universidades, que deveriam ser suas guardiãs. Isso se reflete cotidianamente no ensino, indispondo filhos contra pais, alunos contra mestres, e obrigando a escola básica a acolher e educar com eficácia todo tipo de transgressor, mesmo o violento. Caso se faça um levantamento das teses e dissertações sobre educação produzidas por mestres e doutores do País, dá para criar um outro Ideb: o Índice de Destruição da Educação Básica. É esse índice que precisa ser exposto — só que na porta das universidades brasileiras.
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