Vale a pena desenvolver o biodiesel?
Por Fernando Lagares Távora 2 Comentários Instituto Fernand Braudel, 03/09/2012
A produção mundial de biodiesel, em 2010, foi de 19,5 bilhões de litros. Os continentes europeu e americano respondem por quase 80% dessa produção, com 13 bilhões de litros de biodiesel (US EIA, 2011). A estimativa para 2020 é de uma produção de 41,9 bilhões de litros (FAO, 2011)[1].
Em 2010, a capacidade total brasileira, já instalada, de produção de biodiesel alcançou 5,8 bilhões de litros ao passo que a demanda pelo combustível foi da ordem de 2,5 bilhões de litros, o que indica uma sobreinstalação de 137%[2]. Além disso, há grande disparidade no tamanho das usinas. Há casos, como no Mato Grosso e em Minas Gerais, em que a maior usina tem 191 e 126 vezes, respectivamente, a capacidade de produção da menor (MME, 2011).
Nos últimos dois anos, em decorrência da expansão significativa da capacidade ociosa da indústria de produção de biodiesel, têm surgido demandas recorrentes perante os poderes Executivos e Legislativos para criação de um novo marco regulatório para o combustível[3].
Entre as demandas mais comuns, ressaltadas, por exemplo, pelo Centro Brasileiro de Infraestrutura[4] – estão: i) incentivos à exportação do biocombustível; ii) estabelecimento de metas compulsórias mais robustas para mistura de biodiesel; iii) redução da carga tributária; iv) reformulação do sistema de leilões para a comercialização do produto; v) políticas mais inclusivas para a agricultura familiar; vi) fomento à diversificação de matérias-primas para a produção do biodiesel[5].
O grande problema decorrente do atendimento de demandas dessa natureza pode ser uma maior intervenção estatal no setor, o que acaba provocando distorções alocativas, já que parte das medidas modifica não só o preço pago pelo biodiesel, mas também o custo repassado para a sociedade.
Por outro lado, a falta de intervenção pode inviabilizar o desenvolvimento de uma indústria da qual o país dispõe de clara vantagem comparativa: não só terras abundantes, mas também inúmeras fontes de matéria-prima e um inestimável pacote tecnológico já desenvolvido.
Atualmente, o cenário produtivo de biodiesel é nebuloso: mais da metade da capacidade produtiva encontra-se ociosa; o país praticamente não exporta nada de biodiesel; a produção existente é altamente concentrada no insumo soja; o critério social ainda é cambaleante porque há necessidade de consolidação da participação da agricultura familiar, principalmente com uso de uma maior diversidade de matérias-primas; o custo tecnológico ainda é alto, pois o preço do biodiesel é superior ao do diesel; enfim, há vários temas a serem debatidos na consideração de proposta de um novo marco regulatório.
Inicialmente, cabe ponderar que fomentar a introdução de um novo marco regulatório deve passar pela análise dos prós e contras da utilização de biodiesel na matriz energética do país. De fato, nesta oportunidade, não se está discutindo a introdução desse biocombustível na matriz brasileira, o que ocorreu com a edição da Lei nº 11.097, 13 de janeiro de 2005, mas das condições que levam à necessidade de aprimoramento ou “refundação” de um marco regulatório[6].
O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) foi lançado pelo Presidente da República em dezembro de 2004. Em 2005, foi aprovada a mencionada Lei nº 11.097, de 2005. A partir de então, o Estado passou a ter metas de uso de biodiesel na matriz energética nacional. De 2005 a 2007, a adição de dois por cento de biodiesel ao diesel fóssil era facultativa, evoluindo para ser obrigatória, no mesmo percentual (2%), de 2008 a 2012. O percentual subiria para cinco por cento a partir de 2013.
Em 2008, foi lançada a mistura de diesel com 2% de biodiesel, o chamado B2. Em julho de 2009, o País adotou o B4 (diesel com 4% de biodiesel) e, em janeiro de 2010, entrou no mercado o B5 (diesel com 5% de biodiesel). Com essas medidas, o Governo Federal adiantou a meta do ano de 2013 em três anos.
Holanda (2004) entendeu que as motivações para produção de biodiesel no Brasil seriam os benefícios sociais e ambientais. A geração de emprego e renda a partir da produção do biodiesel e a redução de emissões de gases provocadores do efeito estufa seriam fortes elementos para o Brasil optar pela produção de biodiesel.
A seguir, na Tabela 1, são reproduzidas as diretrizes para o lançamento do PNPB, conforme Rodrigues (2006), como pontos positivos para uso do biodiesel, e feitos alguns comentários.
Tabela 1 – Prós do uso do biodiesel no Brasil
Prós | Comentários |
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a) introdução do biodiesel na matriz energética nacional de forma sustentável, permitindo a diversificação das fontes de energia, o crescimento da participação das fontes renováveis e a segurança energética; | O PNPB ainda é muito concentrado na cultura da soja. Além disso, tem ocorrido sobreinstalação e uma maior participação do biodiesel depende de se encontrar novas utilidades ou ampliação do limite de mistura. |
b) geração de emprego e renda, especialmente no campo, para a agricultura familiar, na produção de matérias-primas oleaginosas; redução de disparidades regionais, permitindo o desenvolvimento das regiões mais carentes do País: Norte, Nordeste e Semi-árido (sic); | Com base em estudos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Holanda (2004) entende que seria possível criar 180 mil empregos para cada 1% de substituição do diesel pelo biodiesel produzido a partir da agricultura familiar. O número de empregos ainda não seria compatível com a expectativa original; A geração de renda para a agricultura familiar encontra barreiras. Seria essa produção familiar eficiente? Não haveria ganhos de escala suficientes para justificar a concentração da produção das oleaginosas em grandes propriedades? Não seria essa característica a responsável por ser a soja a grande fonte de matéria-prima para o biodiesel? Se isso for verdade, é ineficiente querer abastecer as usinas de biodiesel com pequena produção familiar. Ficaria muito caro. Seria melhor, alternativamente, a utilização de outros programas sociais para atendimento a esse público. |
c) diminuição das emissões de poluentes e dos gastos relacionados ao combate aos chamados males da poluição, especialmente nos grandes centros urbanos; | A lógica é que o biodiesel apresenta ciclo fechado: o CO2 é absorvido no crescimento da planta e liberado no uso do biodiesel. Esse não é um ponto pacífico e gera debates sobre sua efetividade. Holanda (2004), no entanto, destaca, com base em estudo do Departamento de energia e de Agricultura americano, que o biodiesel reduz as emissões líquidas em 78%. |
d) economia de divisas, com redução de importações de diesel; | A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) estimou em US$ 1,4 bilhão a economia com uso do B5 [7]. Dados da ANP indicam que o país importou, em 2011, cerca de 8,74 milhões de m3 de diesel. |
e) concessão de incentivos fiscais e implementação de políticas públicas direcionadas a regiões e produtores carentes, propiciando financiamento e assistência técnica e conferindo sustentabilidade econômica, social e ambiental à produção do biodiesel; | A tributação diferenciada para produção de biodiesel faz parte das políticas públicas no País. Atualmente, existe uma taxação diferenciada para o biodiesel no país, que considera matéria-prima adquirida, tipo de agricultura e região da aquisição. É essencial destacar que há custos econômicos para a sociedade optar por concessão de subsídios. |
f) regulamentação flexível, permitindo uso de distintas matérias-primas oleaginosas e rotas tecnológicas (transesterificação etílica ou metílica, craqueamento, etc) | Como já afirmado, não tem ocorrido diversificação sustentável de matérias-primas. Outras rotas tecnológicas ou mesmo outros combustíveis ainda não estão disponíveis em escala comercial. |
Fonte: Rodrigues (2006), com complementação. Elaboração pelo autor.
A seguir, é apresentada a Tabela 2, que traz uma compilação de críticas ao PNPB, em seu período inicial, apresentadas por Campos e Cornélio (2009)[8], e suplementada por outros argumentos contrários ao uso do biodiesel.
Tabela 2 – Contras do uso do biodiesel no Brasil
Contras | Comentários |
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a) A ambição social do biodiesel teria sucumbido por práticas tradicionais e pela oferta vinda do Centro-Sul. | Em 2010, mais de 100 mil famílias participaram do PNPB, em 1.091 municípios, e a aquisição de oleaginosas foi da ordem de R$ 1 bilhão de reais em 2010. O Selo Combustível Social e a questão da agricultura familiar são considerados instrumentos inclusivos de políticas do Governo Federal. |
b) O biodiesel é uma ameaça à segurança alimentar. | A Conab (2008) afirma que novas fronteiras corresponderam a apenas 2% da expansão da cana na safra 2007/2008. Sendo que as atividades que foram mais deslocadas são: pastagem (66,4%), soja (17%) e laranja (5%). Para outras fontes de biocombustível, esse patamar seria ainda mais desprezível. |
c) O biodiesel seria inviável economicamente, pois não pode competir com o diesel, e não apresentaria sinais de poder ser competitivo. | A ideia não é comparar a competitividade de ambos os combustíveis, mas sim desenvolver condições para que haja evolução tecnológica do biodiesel. Além disso, aproveitar a vantagem de uso de biodiesel para reduzir os impactos ambientais da existência de um diesel altamente poluidor. |
d) a escolha das matérias-primas está equivocada e centrada na soja. | Problema recorrente e, ao que tudo indica, a crítica é correta. Mas se não fosse a soja, a pergunta que se põe é: seria possível cumprir a Lei nº 11.097, de 2005, e disponibilizar o B5 ao país?[9] |
e) a mamona seria inviável tecnicamente. | Os produtos regionais não se mostraram adequados até o presente momento, seja tecnologicamente, seja economicamente para produção de biodiesel. Mais pesquisas e desenvolvimentos são necessários. |
f) possível superação por novos combustíveis, que tenham custo menor e rendimento maior. | É possível que o uso de um diesel menos poluente tenha impacto ambiental positivo maior do que a mistura de biodiesel a um diesel de pior qualidade (mais poluente). Além disso, o surgimento de um novo combustível pode inviabilizar o biodiesel, mas isso é verdade até mesmo para o petróleo. No entanto, o desenvolvimento de tecnologia pode, a longo prazo, viabilizar o biodiesel como ocorreu com álcool (ver Goldemberg et al., 2004). |
Fonte: Campos e Cornélio (2009), com complementação. Elaboração pelo autor.
O setor de biodiesel tem que lidar com alguns obstáculos e desafios para sua consolidação no Brasil. Entre eles, a necessidade de criação de um mercado mundial para o biodiesel, a resolução de questões produtivas internas e de choques tecnológicos, redução de contestações ambientais e a necessidade do convencimento de seu papel social. Há, ainda, a demanda por aprimoramentos operacionais, como o do sistema de leilão de venda de biodiesel, para uma maior inclusão de pequenos produtores, e legais, como no caso de se propor um projeto para um novo marco legal ou outras medidas legislativas.
À luz desses prós e contras, entende-se que a instituição, manutenção ou modificação de uma política de biodiesel (uso obrigatório, isenção tributária, subsídio ao produtor, etc.) só se justifica se o uso do biocombustível gerar ganhos de bem-estar à sociedade.
Por outro lado, se não for um bom negócio produzir e usar biodiesel (tanto em termos econômicos quanto em termos de suas externalidades ambientais e sociais), não se deveria insistir nessa estratégia, e a criação de incentivos poderia ser resultado apenas delobby de setores interessados em viabilizar suas produções ineficientes ou mesmo sua expansão.
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[1] Para uma visão energética complementar da importância dos biocombustíveis, verWorldwatch Institute (2007).
[2] Considerando a hipótese de o País não poder exportar o excedente produzido.
[3] Para um debate ampliado sobre a questão, vide Távora (2012).
[4] Vide Valor Econômico (2012).
[5] A UBRABIO defende avanço no Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) com a ampliação para a mistura B7 e a introdução do Biodiesel Metropolitano (B20) – 20% de biodiesel adicionado ao Diesel 50 –, e também a criação de um Programa de Certificação de Qualidade do Biodiesel. Para maiores detalhes, vide UBRABIO (2012).
[6] Ver Távora (2012) para uma discussão ampliada sobre o tema.
[7] Ver http://www.brasileconomico.ig.com.br/noticias/anp-calcula-menos-us-14-bilhao-em-importacao-de-diesel-com-b5_74290.html. Acesso em 14/5/2012. Para outros dados detalhados sobre biocombustíveis, ver ANP (2012).
[8] Os autores contestam muitas dessas questões com argumentos mais técnicos.
[9] Estima-se, por exemplo, que o dendê, a soja e o girassol produzam 4.752, 554-922 e 767 l/ha, respectivamente (Wikipédia, vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Biodiesel. Acesso em 27/6/2012). No entanto, o custo do biodiesel a partir de soja é muito inferior. Para uma análise de dados, ver, por exemplo, Barros et al. (2006).
Bibliografia
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP (2012)http://www.anp.gov.br/ Acesso em março de 2012.
Barros, G. S. de C., Silva, A. P., Ponchio, L. A., Alves, L. R. A., Osaki M, Cenamo, M. (2006) Custos de produção de biodiesel no Brasil. Revista de Política Agrícola, Ano XV – nº 3 – Jul./Ago./Set. 2006.
Campos, A. A., Carmélio, E. C. (2009) Construir a diversidade da matriz energética: o biodiesel no Brasil. Biocombustíveis – a energia da controvérsia. Editora Senac, São Paulo.
Companhia Nacional de Abastecimento – Conab (2008). Perfil do setor do Açúcar e do Álcool no Brasil, Brasília, Brasil, Abril 2008:http://www.conab.gov.br/conabweb/download/safra/perfil.pdf. Acesso em abril de 2008.
Food and Agricutlure Organization – FAO (2011) http://www.fao.org/ Acesso em fev./2012.
Goldemberg, J., Coelho, S. T., Nastari, P. M., Lucon, O. (2004). Ethanol learning curve – the Brazilian experience. Biomass and Bionergy, 26 (2004), 301 – 304.
Holanda, A. (2004) Biodiesel e inclusão social. Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, Brasília.
Ministério das Minas e Energia – MME (2011). Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB). Apresentação realizada na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, em 14 de julho de 2011.http://www.senado.gov.br/atividade/comissoes/CRA/AudPub.asp Acesso em ago./2011.
Revista Valor Econômico (2008) Biocombustíveis – A força do verde, Edição especial.
Jornal Valor Econômico (2012) Produção de biodiesel ainda derrapa, Edição de 13/3/2012.
Távora, F. L. (2012) Biodiesel e Proposta de um Novo Marco Regulatório: Obstáculos e Desafios. Textos para Discussão 116, Senado Federal, Brasília. Disponível em:http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD116-FernandoLagaresTavora.pdf. Acesso em agosto de 2012.
União Brasileira do Biodiesel – UBRABIO (2012) Boletim Informativo UBRABIO, Brasília, 7ª edição, abril/maio de 2012.
US Energy Information Administration – US EIA (2011)http://www.eia.gov/cfapps/ipdbproject/IEDIndex3.cfm?tid=79&pid=79&aid=1. Acesso em janeiro de 2012.
Worldwatch Institute (2007) Biofuels for transport: global potential and implications for energy and agriculture. Earthscan, London, UK and USA
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