Reforma agrária no século XXI
José Graziano da Silva
Jornal Valor Econômico, 25/01/2007, pág. A10
América Latina assiste ao crepúsculo da oligarquia agrária e do latifúndio, mas a pobreza e a fome no campo não declinaram
Socializar uma experiência histórica é a melhor forma de transformá-la em base de apoio para impulsionar sua própria evolução e assim influenciar a sua trajetória futura. Não só no Brasil, na América Latina de um modo geral, há uma percepção crescente de que a agenda da reforma agrária vive o grande momento dessa travessia.
A experiência de uma dezena de países ao longo de mais de quatro décadas atingiu um ponto de mutação. Mais que isso. A saturação das estruturas coincide com a emergência de uma nova realidade latino-americana, refletida na emergência de um colar de governos progressistas que dá à região a necessária credibilidade para promover um "aggiornamento" de suas políticas agrárias, adequando-as à realidade do século XXI.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que a reforma agrária não é um conceito anacrônico na política do século XXI . Sua pertinência não deriva apenas da vontade dos atores sociais, mas das estruturas existentes. O índice de concentração das terras agricultáveis supera os níveis de concentração de renda. Menos de 3% dos proprietários detém 57% da área disponível no globo. Nos países mais pobres esse desnível patrimonial solapa aspirações por justiça, dificulta o manejo do desenvolvimento e continua a asfixiar o desenvolvimento local.
Ao mesmo tempo, há uma profunda renovação das expectativas da sociedade em relação ao campo e à natureza. O velho reducionismo de um espaço rural encarado como mero entreposto de safras e insumos, caducou. Da dimensão territorial à cultural, passando pela ecológica, as fronteiras entre o rural e o urbano desbotam e chegam a se tornar invisíveis em algumas regiões, cobrando um tratamento articulado de políticas de desenvolvimento inovadoras. As condições de mercado impostas pela globalização, em contrapartida - alta produtividade, escala elevada e sofisticação comercial -, tornam cada vez mais complexas a produção e a sobrevivência no campo. O conjunto descarta utopias agrárias ancoradas na mera repartição de lotes entre famílias de produtores isolados para sua própria subsistência.
Contradições como essas não constituem um defeito da História. Antes, formam a expressão dinâmica da sua evolução, algo que não pode ser negado sob pena de concentrarmos esforços na batalha do dia anterior.
O Escritório Regional da FAO convidou especialistas e autoridades do Chile, Brasil, Paraguai, Bolívia, Venezuela e Peru, para aprofundar as discussões iniciadas em Porto Alegre, em março de 2006, na Conferencia Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR).
A convergência de relatos e diagnósticos nesses encontros é reveladora. Ao contrário do que asseveram análises simplistas à direita e à esquerda, o embate histórico entre reforma e contra-reforma no continente deixou um legado positivo para o século XXI: o latifúndio e as velhas oligarquias agrárias foram derrotados. Embora ainda persistam, até com certa força, em bolsões isolados, como categoria histórica perderam a centralidade econômica e política para a grande escala empresarial.
No Chile, por exemplo, até 1955, quase a metade das 345 mil famílias existentes no campo não dispunham de terra. Iniciada no princípio dos anos 60, a reforma agrária chilena expropriou 10 milhões de hectares. A ditadura militar reverteu quase a metade disso. Mas a retomada da democracia mostrou que a oligarquia rural foi desmontada, ainda que às custas de um processo de modernização conservadora, similar ao ocorrido no Brasil pós-1964.
A reforma agrária mais radical já feita no continente aconteceu no Peru entre 1968 e 1975 , durante o ciclo de governos militares reformistas. Eles praticamente aboliram a grande propriedade rural no país. Hoje 70% das terras peruanas estão nas mãos de pequenos e médios produtores. Na Bolívia, o reformismo agrário começou em 1953 e repartiu 57 milhões de hectares, mais da metade do território nacional; mas a maioria da população mais pobre, de origem indígena, continua sem aceso à terra. No Brasil, só entre 1995 e 2006, o processo envolveu grandezas da ordem de 940 mil famílias assentadas e 50 milhões de hectares repartidos. Embora acelerado nos últimos anos, o ritmo de acesso à terra é considerado insuficiente pelos movimentos de trabalhadores rurais. Na Venezuela, que ostenta um dos mais elevados índices de concentração fundiária da América Latina (5% dos proprietários detém 75% das glebas), a reforma intensificou-se a partir de 1999, mas ainda não atingiu sua maturidade. A nota destoante fica por conta do Paraguai: país de economia predominantemente agrícola, aí a reforma engatinha há mais de 40 anos diante de uma fila de 350 mil pessoas sem acesso à terra.
O crepúsculo estrutural do binômio latifúndio/oligarquia na América Latina, sem que se observe um declínio proporcional dos indicadores pobreza e fome no campo, reflete uma nova contradição, não um defeito da História. O descompasso reafirma a insuficiência de um ciclo reformista calcado em concepções agrárias desprovidas de um projeto de desenvolvimento nacional a elas integrado, que hoje requer a incorporação de novas funções econômicas e ambientais nessa fronteira da sociedade.
Legítimo e necessário, o acesso à terra é insuficiente para consolidar a renovação das forças políticas que podem comandar esse "aggiornamento" estratégico. As implicações práticas e teóricas desse fato vão animar novos projetos que a FAO pretende incentivar na América Latina nos próximos anos. Entre eles, a disseminação da ponte nova da bioenergia que pode resgatar o elo perdido entre desenvolvimento e justiça agrária no campo. Desde já, porém, emerge um balizador dessa travessia. Para que ela seja bem sucedida, os Estados nacionais não podem persistir numa atitude reflexa, quase pavloviana, diante das demandas emitidas pelos movimentos sociais organizados no campo. A equação agrária do século XXI requer um projeto de desenvolvimento legitimado por toda a sociedade. Trata-se de um novo passaporte para o futuro. Diante dele o Estado não pode ser um passageiro caudatário, a mercê de rotas inconsistentes e destinos obscuros.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e o Caribe.
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