A chegada da Corte portuguesa ao Brasil
Notícias da Academia Brasileira de Ciências
Entre os dias 5 e 7 de maio, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) promoveu a sua tradicional Reunião Magna, cujo tema foi “Da vinda da Corte aos Desafios Presentes na Ciência no Brasil”. Anualmente, a Reunião Magna da ABC marca o ingresso oficial à Casa dos membros titulares eleitos naquele ano, bem como promove simpósios científicos, conferências magnas e palestras de jovens cientistas.
Sob a coordenação do Acadêmico e historiador José Murilo de Carvalho (UFRJ), a mesa redonda A Chegada da corte portuguesa ao Brasil contou com a participação de quatro especialistas: o Embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Alberto da Costa e Silva; o Acadêmico e professor da Universidade de Oxford, Leslie Bethell; as historiadoras Francisca Azevedo, da UFRJ, e Lúcia Maria das Neves, da UERJ.
Alberto da Costa e Silva, Leslie Bethell, José Murilo de Carvalho, Francisca Azevedo e Lúcia Neves
Porque a Corte Portuguesa veio para o Brasil?
O professor Leslie Bethell, historiador inglês e membro estrangeiro da ABC, é atualmente diretor do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ele abordou o cenário político europeu há 200 anos, com ênfase nas disputas entre as potências hegemônicas - Inglaterra e França -, nas implicações das Guerras Napoleônicas e do bloqueio continental na transmigração da corte portuguesa para o Brasil, bem como no desenrolar da Política Joanina em terras brasileiras.
Bethell explicou que as guerras napoleônicas foram uma continuação das guerras da Revolução Francesa e o ápice do longo conflito entre França e Inglaterra. Na última fase da Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte buscou criar condições propícias para iniciar um projeto de desenvolvimento nacional que tornaria a França uma das grandes nações européias, a ponto de questionar a hegemonia britânica no início do século XIX. Com o fortalecimento econômico em plena marcha, o país acabaria entrando em rota de colisão com a Inglaterra em busca de um novo equilíbrio de forças no mercado europeu.
A expansão napoleônica, devido à superioridade inglesa no Velho Continente, somente poderia ocorrer, portanto, através da força militar. Porém, na batalha de Trafalgar as frotas francesas foram destruídas e, assim, estabelecida a supremacia britânica dos mares. Com o controle destes, continuou Bethell, os ingleses podiam iniciar uma estratégia ofensiva sobre as regiões coloniais francesas e patrocinar uma discreta política de pressão sobre a abertura de mercados ibero-americanos, formalmente ainda ligados às metrópoles européias.
Assim sendo, Napoleão, a fim de enfraquecer e abrir os mercados mundiais para a França, decretou o Bloqueio Continental contra a Inglaterra, proibindo a costa européia de comercializar com ela. Portugal, entretanto, mostrou-se relutante em aplicar a determinação francesa devido à estreita relação de comércio com o país. Por conta disso, as tropas francesas invadiram Lisboa e a Corte portuguesa se viu obrigada a abandonar o Reino. Escoltada pelo exército inglês, a comitiva real partiu rumo ao Brasil.
O historiador destacou que a maior conseqüência da chegada da Corte ao Brasil foi a abertura dos portos às nações amigas, que significou o fim do monopólio português do comércio do Brasil e o início de sua transferência ao nascente capitalismo industrial inglês. A concorrência inglesa, contudo, seria nefasta para qualquer pretensão de projeto de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. É por isso que, segundo Bethell, “o beneficiário principal e imediato da mudança da Corte foi a Inglaterra, no que diz respeito aos interesses comerciais e industriais ingleses”.
Uma nova União Ibérica: o Projeto Carlotista
Francisca Azevedo, Doutora em História Social pela UFRJ, onde atua como Professora Associada no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História Social, tratou em sua palestra das conseqüências da vinda da Corte e da crise nas monarquias ibéricas para a América Espanhola. Ela contou que a paz entre elas começou a ser ameaçada nesse momento, depois de um longo período de trégua. E foi a partir daí que começaram articulações para a entrada de Napoleão em território espanhol ameaçando, assim, a política externa portuguesa.
Segundo Francisca, o processo de independência da América Espanhola está intimamente relacionado com o contexto europeu da época. As invasões napoleônicas na península ibérica, no final de 1807, comprometeram a própria existência da soberania das Coroas de Espanha e Portugal que, desestabilizadas e enfraquecidas, abriram espaço para a independência de suas colônias.
Um episódio marcante, destacou Francisca, foi a tomada do trono espanhol por Napoleão e a decisão de encarregar seu irmão da governança, que deu origem à tentativa, por parte de Carlota Joaquina, de estabelecer de uma nova União Ibérica.
A Corte portuguesa, então, tomando conhecimento do ocorrido e sendo Carlota Joaquina a única herdeira direta de Carlos IV, rei de Espanha, em liberdade e mulher de D. João VI, imediatamente aceitou a proposta de Carlota de torná-la regente da Espanha a partir do Vice-Reino da Prata. Nascia, aí, uma tentativa de se criar uma nova União Ibérica nesse momento, contou a Professora.
O projeto foi aceito pela Corte em virtude das vantagens que essa nova União Ibérica poderia trazer para Portugal. Para a Espanha, o projeto Carlotista representava não apenas o engrandecimento do império, mas a independência da Península Ibérica frente aos dois blocos de poder na Europa - Inglaterra e França -, que obrigavam Espanha e Portugal a ficarem oscilando entre eles. E estes, unidos, formariam uma grande frente a esses poderosos.
Francisca explicou, ainda, que Carlota Joaquina realizou dois feitos importantes nessa disputa: a revogação da Lei Sálica, que impedia a ascensão da mulher ao poder e o reconhecimento do seu direito ao trono de Espanha. Segundo ela, grande parte das juntas governativas da América espanhola, com exceção de México e Peru, apoiou o projeto Carlotista. Porém, ele não se realizou e Carlota voltou para Portugal, finalizou a historiadora.
A transferência da corte no imaginário dos súditos portugueses
A Doutora em História Social pela USP e Professora Titular de História Moderna da UERJ, Lucia Maria das Neves, explorou as conseqüências da transferência da corte portuguesa para a colônia no imaginário dos súditos portugueses e no estabelecimento de disputas entre os projetos dos diferentes setores da elite que permaneceu em Portugal.
Para se entender a situação, explicou Lucia, “é preciso pensar que o mundo em que esses homens viviam, o chamado Antigo Regime, era bastante diferente daquilo que se percebe hoje, bem como o modo como encaravam a figura do soberano, que era uma figura sagrada, e a Corte, onde todas as decisões políticas eram tomadas”. Assim, pôde-se verificar que a vinda da família Real foi algo inusitado e desesperador para os portugueses. “Foram os primeiros soberanos a cruzar o oceano e a única potência a exercer sua soberania do outro lado do Atlântico, preservando uma proposta de império”, contou a pesquisadora.
No entanto, dentro dessa situação inusitada, as opiniões se dividiram. Embora alguns súditos achassem que a resolução de D. João foi acertada no que diz respeito à defesa de Portugal, essa opinião não foi compartilhada pela maioria dos portugueses. Muitos acreditavam que a saída da Corte representava uma fuga tumultuada, um ato de covardia que deixou o povo de Lisboa abandonado em mãos francesas.
A historiadora contou que a primeira sensação dos súditos foi de que a França os estaria protegendo. Já as elites mercantis acreditaram que essa aproximação poderia fazer com que houvesse uma diminuição da tutela inglesa. Porém, não foi isso que aconteceu. As invasões, disse ela, trouxeram conseqüências negativas para Portugal, como a fome, o alastramento de epidemias e as mortes, além da intensa crise na qual entraram a agricultura e a pecuária. Acabaram provocando, então, uma dependência ainda maior da Inglaterra.
Assim, a população portuguesa se colocou contra a dominação francesa. Contudo, Lucia explicou, algumas camadas, como a nobreza e o clero, que viam nesse momento a possibilidade de recuperarem seus antigos direitos, apoiaram os franceses. E essa visão era compartilhada por outros setores mais letrados, que achavam necessária a reformulação do estado do Antigo Regime, transformando os súditos desse sistema em cidadãos modernos, representados em Assembléia e que tivessem uma Constituição.
Entretanto, havia ainda um grupo fiel à dinastia de Bragança. Ele acreditava que os direitos dessa dinastia teriam que ser mantidos, se não através de D. João, talvez, de D. Pedro. Fiel também aos Bragança estava a camada mais baixa da população e foi ela, sobretudo, que se colocou contra os franceses.
Portanto, é possível perceber que houve um grande conflito nesse período entre um Portugal de um antigo regime e uma França revolucionária. Um conflito que vai ser traduzido, muitas vezes, nessa idéia do bem e do mal, respectivamente.
Lucia concluiu, então, que a imagem de D. João foi desgastada, especialmente porque ele não retornou a Portugal. Desse modo, a política americana foi se diferenciando por completo dos interesses do outro lado do Atlântico, criando profundos conflitos no interior do Império Luso-Brasileiro.
Atuação dos comerciantes portugueses em suas possessões africanas
O Embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva apresentou um trabalho de grande originalidade a respeito das relações estabelecidas entre os comerciantes portugueses em suas possessões africanas com os diversos povos de grandes e pequenos reinos, pequenas vilas sem Estado ou cidades-estado que habitavam aquela região.
Em sua palestra, Alberto da Costa e Silva explicou que os reis e chefes africanos consideravam os portugueses como hóspedes ou tributários, dos quais cobravam anualmente um imposto em tecidos e outros bens para assegurar seu livre trânsito nas terras por eles dominadas. Caso o compromisso não fosse honrado, além de as caravanas portuguesas serem impedidas de passar por esses territórios, o comércio também ficava proibido. Além disso, as poucas feiras lusitanas eram inteiramente controladas por esses chefes, que determinavam o preço das mercadorias lá compradas e vendidas.
O comércio de escravos, entretanto, era a principal atividade de todo o complexo colonial. Havia comercialização de outros produtos, como marfim, couro, peles, cera, ouro, etc. Mas o lucro de todos somados não chegava nem próximo do montante oriundo do mercado escravo, assim como a soma dos custos de todas as mercadorias inglesas compradas pelo Brasil não alcançava o valor gasto com escravos, principal produto de importação do país.
As regras do sistema colonial determinavam que as relações comerciais se dessem tão somente entre cada um dos domínios ultramarinos e a metrópole que, por sua vez, intermediaria e controlaria a troca entre eles. No entanto, o Brasil, de um lado, e Cabo Verde, São Tomé, Angola, Guiné e Moçambique, de outro, contrariavam os mandamentos do sistema, pois esses territórios se ligavam diretamente pelo comércio de escravos, que mudou inteiramente o regime e os conceitos do sistema colonial.
Alberto da Costa e Silva finalizou dizendo que até a independência do Brasil, as possessões africanas foram para Portugal quase que apenas fornecedoras de mão-de-obra escrava. Só depois de 1822 é que Lisboa passaria a olhar para Angola, Moçambique e Guiné com outros olhos. Além disso, reafirmou o não-comércio na África sem o consentimento dos reis e chefes africanos. Fora dos enclaves portugueses e de outros países europeus, explicou Alberto da Costa e Silva, o controle do continente se repartia entre grandes e pequenos reinos, cidades-estado, microestados e grupos de aldeia sem poder centralizado. “E a maioria de seus povos jamais colocou os olhos sobre um europeu”, concluiu.
E se a Corte portuguesa não tivesse vindo para o Brasil?
Por fim, o coordenador da mesa, o Acadêmico José Murilo de Carvalho, fechou a apresentação propondo um experimento mental: imaginar o que poderia ter ocorrido se a decisão de D. João tivesse sido outra, se a Corte portuguesa não tivesse vindo para o Brasil. Provavelmente a colônia portuguesa perderia o centro político e o centro de legitimidade, condições necessárias, ainda que não suficientes, para a manutenção da unidade territorial brasileira.
A mesa redonda foi fundamental para dar ensejo a uma reflexão sobre as circunstâncias de um período histórico de importância capital para a formação social, econômica, política e cultural do Brasil. A partir desse período passaram a ser estabelecidas as primeiras instituições que viriam a possibilitar o florescimento da Ciência no Brasil, ao mesmo tempo em que se consolidava no país uma estrutura sócio-econômica e política, co-extensiva às mazelas que esta mesma Ciência deve contribuir para superar.
(Daniela Mesquita e Francisco Araújo para as Notícias da ABC)
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