Da Alca para o Álcool
MARCOS S. JANK
Jornal O Estado de São Paulo, Domingo, 4 de março de 2007 - Aliás, pág. J-3.
Fato inédito, os presidentes Bush e Lula vão se encontrar duas vezes durante o mês de março, no final desta semana em São Paulo e no dia 31, em Washington. No centro da agenda está a assinatura de um acordo histórico de cooperação em biocombustíveis. Brasil e EUA controlam 72% da produção mundial de etanol e têm grande potencial na área do biodiesel. Quais são os fatores que estão produzindo a forte expansão da agroenergia no mundo? Qual é o impacto dos biocombustíveis nos mercados de energia e alimentos? Quais são os países e as culturas agrícolas mais eficientes nesta corrida global? Qual o nível de proteção vigente neste novo mercado? O que esperar da visita de Bush e como os dois maiores produtores poderiam cooperar para iniciar um padrão regulatório de longo prazo que amplie a produção sustentável, o consumo e, quem sabe, o comércio de combustíveis renováveis?
Os biocombustíveis vêm crescendo de forma espetacular nos últimos anos, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. No ano passado, os EUA superaram o Brasil como maior produtor mundial de etanol. Estima-se que até 2012, a produção americana deva quase triplicar (veja o mapa da agroenergia na página) e será 50% superior à brasileira. Além disso, em janeiro último, o presidente Bush anunciou a meta de substituir 15% da gasolina por combustíveis renováveis e alternativos, o que representa a impressionante cifra de 132 bilhões de litros (hoje a produção mundial de etanol não passa de 50 bilhões de litros). Já a União Européia está mais preocupada em substituir o óleo diesel, e se auto-impôs a meta de 5,75% de uso de combustíveis renováveis até 2010, atingindo um consumo de 10 bilhões de litros de biodiesel naquele ano.
A febre dos biocombustíveis vem sendo puxada por três fatores: preocupações ambientais, segurança energética e suporte à renda dos produtores rurais. Preocupações ambientais derivam basicamente da crescente busca pela redução de emissões de gases de efeito-estufa, que geram o aquecimento global. Segurança energética relaciona-se com a redução da dependência de petróleo importado, um bem cada vez mais caro e escasso, oriundo de países e regiões politicamente instáveis. Subsídios agrícolas originam-se de poderosos lobbies de agricultores, que conseguem convencer os seus governos a introduzir programas de auto-abastecimento. Esse último vetor faz com que as tarifas que incidem sobre biocombustíveis sejam extremamente elevadas, ao contrário do que ocorre no mercado de petróleo, que é totalmente liberalizado (veja tabela). É irônico notar que o mundo quer reduzir a sua dependência por um produto cujo comércio é absolutamente livre, em favor de combustíveis renováveis, mais limpos e socialmente includentes, porém ainda protegidos por tarifas elevadas.
O impacto dos combustíveis de origem agrícola no mercado global de energia ainda é irrelevante. Juntos, eles não chegam a 1% da produção de combustíveis fósseis, em termos de equivalente energético. Há muito espaço para crescer e, ao contrário do petróleo, que está concentrado no subsolo de uns poucos países (e daí a possibilidade de estabelecer um cartel), o crescimento da energia renovável só depende de renová-la mais e mais, ou seja, de aumentar a área cultivada ou a produtividade das culturas envolvidas, em escala global. As duas razões acima enterram qualquer idéia prematura de formação de uma “OPEP do etanol”, com o Brasil funcionando como uma espécie de Arábia Saudita.
Ocorre que se o impacto dos biocombustíveis no mercado global de energia é ainda reduzido, o seu impacto nos mercados agrícolas tem sido notável, principalmente no caso do milho e das oleaginosas. A produção de etanol já consome cerca de 20% do milho produzido nos EUA e o seu crescimento fez com que os preços do grão subissem 80% em relação à safra anterior, causando fortes desequilíbrios na estrutura dos mercados agropecuários, com impactos negativos na competitividade das carnes, dos lácteos e do açúcar à base de milho. Além disso, as exportações americanas de milho vão despencar (hoje os EUA controlam quase 70% do mercado) e a área plantada com o grão vai crescer mais de seis milhões de hectares, avançando sobretudo nas áreas de soja. Curiosamente, o avanço do milho sobre a soja nos EUA beneficiará fortemente os países do Mercosul, que dividem o controle do mercado da oleaginosa com os americanos. Assim, no curto prazo, quem mais ganhará com a expansão da produção de álcool nos EUA não serão os usineiros, mas sim os sojicultores brasileiros!
Nos EUA, a disputa entre os chamados “quatro Fs” (Food, Feed, Fiber e Fuel, termos que sintetizam os principais destinos dos produtos agrícolas: alimentos, rações, fibras e energia) está pegando fogo e já há um amplo consenso de que os EUA não conseguirão ir muito longe com a expansão de etanol de milho, que deve parar em torno dos 50 bilhões de litros projetados para 2012. Vem daí o enorme interesse daquele país em desenvolver etanol à base de celulose, produzido a partir de capins, palhadas (restos de culturas agrícolas que sobram após a colheita), bagaços e produtos florestais. Esta alternativa deve, porém, levar pelo menos uma década para se tornar economicamente viável.
O interessante é que o impacto da expansão da agroenergia nos mercados agrícolas é muito menor em países como o Brasil, que produzem álcool carburante a partir da cana-de-açúcar, uma planta realmente espetacular. A cana é bem mais eficiente que o milho ou qualquer outra cultura agrícola. A sua produtividade atinge sete mil litros por hectare, mais do que o dobro do milho. O custo de produção é 30% menor e o balanço energético é extremamente favorável: a cana produz 8,3 unidades de energia renovável para cada unidade de energia fóssil utilizada para produzi-la, um valor 5,5 vezes superior ao que o milho produz. Além disso, o Brasil não tem as limitações de expansão de área que os EUA possuem, já que a cana-de-açúcar pode facilmente se expandir em áreas tradicionais de pastagens, em rotação com a soja. O Brasil poderia produzir os 132 bilhões de litros de etanol, que seriam necessários para substituir 15% da gasolina dos EUA, com cerca de 20 milhões de hectares de cana-de-açúcar, o triplo da área atual de cana, porém apenas 10% da nossa reserva de pastagens. Ocorre que o Brasil ainda tem muito espaço para ampliar a produtividade agropecuária, e o crescimento da agroenergia pode perfeitamente se fazer de forma sustentável, por meio de sistemas que integram de maneira mais eficiente a agricultura (soja, milho, algodão e cana-de-açúcar) e a pecuária (bovinos, aves e suínos).
No caso do biodiesel, é interessante notar que a planta mais eficiente para produzi-lo é a palma (ou dendê), cultivada em larga escala em países como Malásia e Indonésia. Ou seja, as plantas mais promissoras para produzir biocombustíveis situam-se nas regiões tropicais do planeta, porém, infelizmente, o protecionismo vigente impede o real aproveitamento das vantagens comparativas. A geopolítica da agroenergia poderia beneficiar dezenas de países em desenvolvimento se o foco da questão fosse o interesse dos consumidores (e não dos produtores), a redução de gastos com subsídios, o equilíbrio entre as cadeias agroindustriais envolvidas, o apoio aos países mais pobres, os investimentos em infra-estrutura e tecnologias de ponta e o respeito ao meio ambiente. Estou consciente de que é muito difícil avançar nesses vetores todos ao mesmo tempo, mas tenho certeza que é possível fazê-lo.
A visita de Bush pode ser um primeiro passo na direção correta. Tudo indica que o presidente americano vem ao Brasil para assinar um memorando de entendimentos que conterá: 1 - o desenvolvimento de projetos comuns de pesquisa de etanol de celulose; 2 - o estabelecimento de normas internacionais para a commodity, já que o bom funcionamento de qualquer mercado depende de padrões universais; 3 - a decisão de desenvolver projetos que apóiem a expansão do produto em terceiros mercados, principalmente na América Central e no Caribe. O Departamento de Estado, porém, foi taxativo em afirmar que o tema do “acesso a mercados” não estará sobre a mesa.
É claro que qualquer forma de colaboração entre os dois maiores atores é sempre bem-vinda, além de inédita. A Alca (Área de Livre Comércio das Américas) foi enterrada porque não houve suficiente diálogo e entendimento entre os Estados Unidos e o Brasil, países que foram indicados como co-presidentes do processo negociador justamente para fazer o bloco avançar. No lugar da Alca, instalou-se uma miríade de pequenos acordos bilaterais e sub-regionais em todas as direções, de pequena abrangência e repletos de assimetrias, imediatismos e confusões.
O álcool representa uma chance de ouro para EUA e Brasil tentarem se entender e coordenarem o crescimento harmônico deste novo paradigma dos setores agrícola e energético. Comecemos com estudos detalhados cobrindo as áreas de pesquisa, produção, infra-estrutura, potencial energético e impactos sociais e ambientais. Em seguida, iniciemos projetos ambiciosos de pesquisa conjunta em novas tecnologias agroindustriais e automotivas e fixemos padrões globais para as commodities agroenergéticas. Vamos também cooperar na expansão da oferta e da demanda em terceiros países. Avancemos igualmente com investimentos conjuntos em produção e infra-estrutura nos dois países e lutemos para estabelecer políticas mais coerentes, voltadas para os vetores apontados anteriormente, incluindo, desde já, o espinhoso tema do protecionismo, mesmo que apenas numa nota de rodapé neste primeiro momento.
A agroenergia precisa de “regras do jogo” claras e estáveis, que reduzam os custos de transação e a volatilidade dos mercados e garantam maior previsibilidade para os investimentos necessários em pesquisa, capacidade instalada, infra-estrutura e comércio. Não podemos desperdiçar esta oportunidade!
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