Declaração de voto: um manifesto quase marxista
Paulo Roberto de Almeida
Resumo: Considerações sobre a conjuntura política brasileira e declaração de natureza moral sobre o processo eleitoral, com diagnóstico sobre o momento bonapartista vivida pelo sistema político.
Palavras-chaves: política brasileira; campanha eleitoral; atitude dos candidatos.
I Parte: Dez pequenas regras eleitorais
Não! Contrariamente ao que diz o título do artigo, não vou declarar o meu voto na urna, nas próximas eleições, para qualquer candidato que seja, do mais humilde concorrente a conselheiro municipal – cargo, aliás, que não está em causa desta vez; mas este texto vale também para os vereadores – aos mais ambiciosos pretendentes ao cargo supremo na Nação. Não é esse o objetivo a que aspira este pequeno ensaio, cuja única intenção é a de fixar alguns parâmetros pelos quais eu vou decidir o meu voto, independente de qual seja ele. Não vou definir agora quais são, ou serão, meus candidatos preferenciais em outubro de 2010, nem pretendo influenciar os leitores ou lhes sugerir um nome ou outro dentre os candidatos em liça. Trata-se aqui, apenas e tão somente, de uma declaração de cunho “moral”.
Os que me leem habitualmente, neste espaço ou em outro qualquer, e os que por acaso passarem por aqui ou vierem a tomar conhecimento deste ensaio, podem ficar seguros de que não faço, nunca fiz, jamais farei propaganda para alguém, para qualquer candidato, de qualquer partido, tanto porque nunca pertenci a qualquer um deles, jamais pretendo ingressar em algum, nem milito por alguma causa política institucional. Meus poucos objetivos na vida cívica são: os de querer a política da verdade e o simples respeito à lógica; de manter um compromisso intransigente com a honestidade – acima de tudo intelectual, mas também política –, metas que podem ser complementadas pelo engajamento na causa das liberdades democráticas e pela luta sem qualificativos pelos direitos humanos, sem qualquer concessão a ditaduras, ou a ditadores, caudilhos, líderes populistas, aos embromadores políticos habituais e outros patifes eleitorais. Pode parecer antiquado, mas é o que me basta.
Sendo assim – certo de que o que vai acima ficou muito claro – devo talvez começar por dizer, não exatamente quais são os meus parâmetros de escolha eleitoral, pois existem muitas variáveis envolvidas, mas iniciar pelos elementos de fato e pelas situações políticas que rejeito absolutamente, pois eles já fornecem uma base de julgamento sobre o quê, exatamente, vai determinar o meu voto e as minhas escolhas eleitorais no escrutínio de outubro de 2010. A rejeição de certos “pecados” políticos já representa um começo para o estabelecimento ulterior de uma plataforma de “acolhimento” do que chamaria “boas virtudes” na vida cívica. Vou, portanto, começar por fazer uma pequena lista negativa, para depois oferecer algumas reflexões de ordem geral sobre o que me parece “original” no atual jogo eleitoral. Terminarei por uma análise “marxista” do cenário político brasileiro.
1. Sou contra os simplismos eleitorais
Muitos políticos pensam que os eleitores são, de modo geral, idiotas, ou então ingênuos. Embora muitos possam sê-lo, em virtude do baixo nível educacional da maioria de nossa população, em particular de uma débil educação política, que nada mais é do que o reflexo da primeira, os brasileiros costumam ser espertos, capazes de captar de modo relativamente rápido se alguém é sincero ou não. Acontece que a grande massa dos cidadãos eleitores carece de informações fiáveis e suficientes, de modo a poder formar uma opinião fundamentada sobre as origens dos problemas sociais – e todo mundo sabe que eles abundam – e sobre os meios para resolvê-los.
A prática habitual dos candidatos, em época de eleição, é prometer desenvolver ações contra isso e mais aquilo, e a favor de todos os brasileiros, dizendo que vão criar programas para isso e mais aquilo, eventualmente através de um novo órgão estatal ou ministério. Nunca vi um político dizendo claramente: “para resolver o problema ‘x’ são necessários ‘y’ de recursos; examinando-se o orçamento brasileiro constata-se que não há mais espaço para aumentos da tributação; cumpriria portanto diminuir os gastos com a rubrica ‘z’ para liberar recursos para esse programa”. Ou então, dizer simplesmente: “não creio que cabe ao governo resolver esse problema, que pode ficar a cargo da própria sociedade, por meio da iniciativa privada; para isso, vamos eliminar essa tributação absurda que pesa sobre os empresários, e abrir espaço para o investimento privado, o único capaz de criar renda e riqueza para a sociedade”.
Invariavelmente, todos prometem aumentar a oferta de empregos, embora poucos o fazem de verdade. Nunca vi nenhum deles reclamar da alta carga que pesa sobre os salários no Brasil – sobre os lucros também – ou dizer que a legislação laboral (e sindical) é anacrônica, e que com elas vamos continuar exibindo baixas taxas de emprego formal e altas taxas de desemprego aberto e disfarçado; jamais algum deles vai dizer que a rigidez do salário mínimo simplesmente impede o emprego de milhões de trabalhadores de baixa qualificação técnico-profissional.
De modo geral, a simplificação do debate político no Brasil é extrema e os candidatos continuam se esforçando para torná-lo ainda mais simplista e enganador. Talvez seja por recomendação dos responsáveis da campanha, que tendem a nivelar por baixo; mas o fato é que os discursos e as propostas estão sendo veiculadas como se destinassem a crianças da quarta série, ou a pessoas incapazes de compreender o modo de funcionamento de uma economia moderna. As campanhas eleitorais deveriam justamente servir para educar o eleitorado, não para idiotizá-lo ainda mais.
2. Sou contrário aos reducionismos políticos
O que leva um político a responsabilizar a falta de ação do Estado, a ausência de “vontade política” ou o descaso dos antecessores pela existência de um problema qualquer em determinada área? Provavelmente essa mesma atitude que estava presente no comportamento indicado no item anterior: a tendência ao simplismo, que caminha de mão dada com o reducionismo, ou seja, a atribuição de um problema qualquer a uma causa única, geralmente equivocada, mas que passa a servir de motivo presumido para a falência em questão.
O desemprego, por exemplo, já mencionado acima, costuma ser atribuído à ausência de investimentos. O que faz então o político candidato? Ele promete a criação de um programa qualquer, no âmbito do ministério setorial, para “estimular” a criação de empregos, com algum anúncio de apelo popular. Tal foi o caso, por exemplo, do programa “Primeiro Emprego”, lançado pelo governo Lula desde o primeiro ano de seu governo: definhou até que ninguém mais mencionasse sequer a sua existência. Por que falham esses programas voluntaristas? Porque justamente tendem a atribuir a uma causa simples a inexistência de empregos, deixando de focar no conjunto de condições do mercado de trabalho que simplesmente desestimulam os empresários a empregar mais jovens: ausência de educação profissional e capacitação técnica, excesso de tributação e de regulamentação sobre o mercado de trabalho, rigidez das normas trabalhistas e tendência da “justiça trabalhista” – uma excrescência brasileira que nem deveria existir – a sempre dar ganho de causa ao trabalhador, penalizando a cada vez o empregador.
Não me lembro de ter ouvido qualquer candidato, em qualquer época, discutir esse conjunto de problemas que afeta milhões de brasileiros e impede o crescimento do emprego e, portanto, da renda. O mesmo tipo de reducionismo figura em várias outras questões da mesma espécie: candidatos preferem encontrar uma causa simples, geralmente equivocada, em lugar de se munir de análises técnicas isentas, e baseadas em dados fiáveis, para expor o problema em toda a sua complexidade.
3. Sou contra populismos e demagogias
“Soluções” de grande apelo popular são comuns em épocas eleitorais, geralmente com a transferência dos custos para o conjunto da sociedade, mais diretamente contra os empresários. Um exemplo típico, aliás, já em curso de utilização no Brasil, é essa tendência de prometer algum benefício social para categorias específicas, jovens ou velhos, por exemplo. A multiplicação dos benefícios para idosos – como passagem reduzida nos ônibus interurbanos ou gratuita em ônibus urbanos – ou para estudantes – com a disseminação de meias entradas, inclusive para professores, nos ingressos de espetáculos – apenas transfere para o conjunto da sociedade os custos de uma medida demagógica que os políticos querem empurrar para os empresários e os trabalhadores, de modo geral.
No mesmo sentido vai a redução da jornada de trabalho sem redução de salário, o aumento da licença-maternidade para trabalhadoras grávidas, ou a promessa de transporte gratuito para mulheres no transporte coletivo: o único resultado só pode ser a diminuição da empregabilidade para o conjunto de trabalhadores, em especial para as mulheres em idade reprodutiva. Ocorre, também, o aumento preventivo – e a corrupção, como é previsível – no sistema de transporte coletivo em zonas urbanas, o qual, aliás, já funciona em condições inaceitáveis de cartelização e de deformação dos regimes de concorrência e de concessão (o mesmo parece acontecer no caso da coleta de lixo).
Os maiores abusos dos candidatos se prendem geralmente a promessas de aumento do salário mínimo, de construção de escolas e hospitais, de ampliação dos serviços públicos e compromissos do mesmo gênero. Não existe, obviamente, qualquer correspondência dessas promessas com a existência de estudos técnicos vinculados aos anúncios efetuados, em típicas atitudes de palanque.
4. Sou contra os exercícios de mistificação política
A mistificação política, muito associada à mentira, ocorre quando o candidato deforma as políticas dos adversários, se atribui feitos que não lhe são de direito (ou seja, se torna um usurpador), se arvora em criador de todas as coisas e patrono de todas as bondades a serem promovidas pelo Estado (ou seja, com o dinheiro de todos nós). Mistificação política ocorre quando o candidato divide a sociedade em “membros da elite”, de um lado – à qual ele diz, obviamente, que não pertence, mesmo sendo manifestamente parte da tropa, qualquer que seja o seu nível de renda – e, de outro, essa categoria mítica que se chama “povo”, que são todos os que votam, de preferência em favor do candidato. Mistificação existe sempre e quando o candidato pretende encarnar todas as virtudes e seus opositores possuiriam todos os defeitos. Mais ainda: apenas ele e suas políticas têm o poder de satisfazer os desejos e as necessidades do “povo”, sendo que os adversários – ou “inimigos” políticos, como esse tipo de personagem vê seus concorrentes eleitorais – trabalhariam em favor das “elites”. O bom mistificador vem de uma longa carreira de enganação, inclusive no sentido de se iludir a si mesmo e seus companheiros de luta política, tendo construído uma carreira quase toda na base da embromação e da enganação. Ele começa por apropriar-se de tudo o que lhe parece conveniente, mesmo de propostas e realizações de seus adversários, aos quais e às quais antes criticava e se opunha, mas que se apressa em adotar na nova conjuntura, por puro oportunismo político.
5. Sou contra os imitadores e falsificadores de todo tipo
Imitar é um recurso de quem se inicia numa nova atividade, sendo muito comum nos processos de industrialização e de modernização tecnológica. Ou seja, está muito afeto ao mundo empresarial, à concorrência entre ofertantes de produtos no mercado. Pode ser que o jogo político também seja regido pelas leis da oferta e da procura, onde tem sucesso quem consegue entregar aos “clientes”, ou eleitores, aquilo que eles demandam como “bens ou serviços”: obras, segurança, empregos, maior renda, perspectivas de um futuro melhor, etc. De fato, o jogo eleitoral se dá geralmente numa arena aberta, com poucas barreiras à entrada, embora algumas sejam necessárias, como a lei da “ficha limpa”, por exemplo, que equivaleria a cassar o registro da empresa que frauda sobre a sanidade dos produtos ofertados ou pratica mentira deliberada sobre suas qualidades intrínsecas.
No jogo político, como na vida empresarial, é inevitável alguma imitação do que faz sucesso, embora eu seja contrário a esse tipo de apropriação indébita. Ruim mesmo é a falsificação de qualidades que pertencem manifestamente a outrem em benefício próprio, o que se aproximaria de roubo consciente. Pior ainda quando o candidato se utiliza do legítimo sucesso conquistado em outra esfera da vida pública – um radialista muito escutado, por exemplo, um artista muito admirado de novelas ou do cinema, um cantor campeão de vendas – para tentar vender a imagem de que também seria estupendo no parlamento ou em algum cargo executivo. É muito frequente a imprensa consultar um prêmio Nobel qualquer – geralmente das ciências ou da literatura – para saber sua opinião sobre um aspecto qualquer da vida política ou social: o resultado costuma ser um completo desastre, com raras exceções. Se até prêmios Nobel em economia costumam abusar de sua condição para oferecer “soluções” arrevesadas aos problemas econômicos de um país distante ou para dar a sua “receita” para “acabar com a crise”, por que personalidades públicas de outras esferas que não a política não poderiam tentar sua sorte nessa arriscadíssima profissão? O resultado costuma ser medíocre, o que justifica minha oposição a esses imitadores e falsificadores de uma nova espécie. Mas atenção: eles também existem, e em abundancia, no próprio meio que lhes é costumeiro, dai meu alerta para se ficar vigilante.
6. Sou contra a lei dos benefícios imediatos, sem pesar os custos no futuro
Um dos efeitos mais tenebrosos da atividade política está justamente no conceito central desta frase: as consequências que essa atividade provoca como resultado de ações pensadas no plano imediato, tendentes a produzir resultados eleitorais em dois ou três anos apenas. Candidatos sempre prometem mais do que podem cumprir, mas algo da plataforma eleitoral eles têm de atender, sob risco de descrédito nas próximas eleições: geralmente são obras vistosas, aumento de salário mínimo ou de pensões e aposentadorias, construção disso e mais aquilo, enfim, tudo o que for mais visível e propriamente físico, como são costumeiramente as obras de infra-estrutura.
O problema desse tipo de imediatismo eleitoral e político é duplo: por um lado ele compromete o equilíbrio das contas públicas, caso a soma das promessas seja superior às disponibilidades orçamentárias (e ela sempre é, por definição); por outro, ele atua sobre o visível e imediato, justamente, em detrimento do que é menos vistoso ou de longo prazo. Exemplificando o segundo aspecto: não existe dúvida de que políticos oportunistas adoram inaugurar obras – em alguns casos exagerados, se “inaugura” até pedra fundamental ou anúncio de um novo programa – deixando de lado obras menos visíveis como saneamento básico ou a melhoria da qualidade da educação, que é uma tarefa de longo prazo e notoriamente difícil de ser realizada (por envolver categorias corporativas como podem ser os sindicatos de professores, sempre atentos ao nível de seus salários nominais, mas bem menos em relação à qualificação de seus associados, ou à sua produtividade).
No primeiro aspecto, também é notório o crescimento da dívida pública e da carga tributária, sem falar dos juros nominais, elementos vinculados entre si, quando não provocadores de uma quarta consequência que é a erosão do poder de compra da moeda, caso o governo decida incorrer no pecado emissionista. Exemplificando com o caso brasileiro, a carga tributária aumentou, de 2003 a 2008, 12,8% em termos reais, a partir de um déficit fiscal nominal (isto é, final, bem mais realista do que a ficção do superávit primário) de 4,18% do PIB. Paralelamente, a dívida interna da União cresceu, no mesmo período, 14,5% em termos reais, passando de 56,9% do PIB, em 2003, a 65,2% do PIB, em 2008, o que representa um aumento nominal de 142%. Não se pode dizer, por outro lado, que os juros brasileiros, sendo em média o dobro dos níveis mundiais, tenham sido reduzidos significativamente, devendo ocorrer justamente o contrário, a partir da elevação da dívida bruta total. Estas são as “heranças malditas” a serem deixadas ao próximo governo, qualquer que seja ele.
7. Sou contra a embromação, a mentira, a propaganda enganosa
Toda propaganda é, por definição, enganosa, destacando as qualidades de um produto qualquer, escondendo aspectos eventualmente menos interessantes. Governos não deveriam fazer propaganda, apenas prover informações; e mesmo assim não por meios próprios e, sim, utilizando-se dos canais habituais do mercado. Em épocas eleitorais, a propaganda fica ainda mais enganosa, chegando ao nível da desfaçatez. Governos desprovidos de valores democráticos consistentes abusam da sua capacidade financeira em encomendar e fazer suas própria propaganda, tanto quanto candidatos sustentados por fortes interesses econômicos. Exageros são esperados em campanhas eleitorais, até as mentiras habituais. Mas existem, obviamente, diferenças de grau.
A combinação de candidaturas oficiais com governos sem princípios oferece a oportunidade para a exacerbação da propaganda maciça, feita de recursos públicos, com a utilização descarada da máquina pública para a consecução do objetivo principal. Uma legislação eleitoral mais consistente e a circunstância de juízes eleitorais atentos poderiam representar algum constrangimento; mas, como sempre, a justiça eleitoral é tarda e falha: ela não age por motivação própria, apenas quando provocada. Na ausência, portanto, de fortes contrapesos institucionais ou de freios morais – o que, contudo, pode ser raro em personalidades megalomaníacas –, todas as características indicadas no título desta seção podem ser levadas ao seu ponto máximo de abuso continuado. A rigor, elas poderiam ser hipóteses meramente plausíveis da presente conjuntura política; inexistindo, porém, os contrapesos institucionais, elas se tornam não apenas possíveis, como inevitáveis.
8. Sou contra paternalismos e pretensas familiaridades
Sistemas políticos pouco evoluídos podem apresentar essa característica de suposta familiaridade entre os candidatos e seus eleitores, com mensagens de cunho pessoal sendo veiculadas pelos candidatos e líderes políticos. Nessa visão, os eleitores são tratados, não como cidadãos dotados de direitos e deveres correspondentes aos dispositivos constitucionais, mas como seres dependentes de favores públicos, num esquema primitivo de vínculos afetivos que mascara o sentido republicano do relacionamento político. Numa versão exagerada dessas falsas intimidades, o candidato diz pretender ser um “pai”, ou uma “mãe” para todos os “filhos” do país, e tratá-los com todo o “carinho” que um pai ou uma mãe dispensaria aos seus próprios filhos. Trata-se, obviamente, da mais pura hipocrisia política, ou então reflexo, mais uma vez, de personalidades megalomaníacas, que pretendem ser donos dos desejos e vontades dos cidadãos e eleitores do país. O que se espera de um candidato não são gestos hipócritas de quem pretende afagar a cabeça de eleitores ingênuos, com palavras mentirosas denotando essa falsa aproximação e intimidade, mas a exposição clara de quais são suas propostas de governo e como pretende implementá-las. Adotar a atitude paternalística significa infantilizar todo um povo.
9. Sou contra políticos de duas faces e que praticam ambiguidades
Atitudes muito comuns, também, em candidatos camaleões: como o eleitorado de uma sociedade complexa, multicultural e religiosamente diversa, é feito de diferentes estratos sociais, com comportamentos opostos e até conflitantes, candidatos “espertos” pretendem ficar bem com todas essas correntes de opinião, adotando a atitude que mais lhes convém para ser aceito por um grupo específico de opinião. Não é raro um candidato ateu, ou simplesmente descrente, fazer profissão de fé e até cortejar adeptos de uma dada religião que, por acaso, possui certa expressão política no parlamento; as bancadas “confessionais”, aliás, apresentam tendência à expansão no cenário político, como a própria “indústria religiosa” que lhes serve de motor e de alavanca eleitoral. A mesma hipocrisia se revela, com os tons da ambiguidade, em relação a assuntos controversos como podem ser o aborto ou o casamento gay.
Mesmo em assuntos estritamente políticos, candidatos camaleões pretendem conservar apoios regionais ou setoriais, mantendo um discurso para cada público, ou fingindo “raízes” ou “influências” sabe se lá de que vertente cultural popular ou regional, ou desta ou daquela categoria profissional. Muitas vezes, essas tentativas são apenas patéticas, mas também podem se aproximar do ridículo, quando não da desonestidade política, pura e simples. Em outras ocasiões, a dupla face tem uma dimensão diacrônica, que é representada por alianças correntes que eram consideradas impróprias ou imorais, em épocas anteriores; ou então pela defesa atual de posições que o candidato atacou ou abominou no passado, ou vice-versa, não importa: não existe a mínima preocupação em se explicar ou se escusar, basta seguir em frente.
10. Sou contra a utilização de símbolos populares para fins de exploração política, inclusive a religião, supostos artistas populares, figuras do passado, etc.
Pode ser apenas oportunismo político, esperteza conveniente, ou ainda cálculo utilitário, mas é muito frequente essa “promiscuidade” com figuras, símbolos, imagens dotados de certo apelo popular, não importando muito a trajetória anterior do candidato. Procissões, dias consagrados, templos e memoriais, falsas amizades, tudo serve para tentar contabilizar mais alguns votos a favor. Ar compungido, sorriso amarelo, falso interesse naquele “milagreiro” criado pelas crendices locais, todos os trejeitos são esperados do candidato convertido oportunamente ao primitivismo das tradições populares para fins imediatistas. Muitas vezes é preciso deixar o cérebro descansando enquanto se frequenta o novo (e desconhecido) ambiente, já que dificilmente o candidato possui a familiaridade com o tal “ícone popular” que sua propaganda mentirosa diz que ele tem.
II Parte: Fundamentos econômicos e filosóficos das eleições
Depois de alinhar minhas “rejeições” ou objeções de natureza política (na verdade, bem mais de ordem moral) quanto aos perfis ou condutas a serem preferencialmente observados pelos candidatos, creio que agora caberia dizer quais parâmetros eleitorais seriam desejáveis em exercícios eleitorais. Antes, porém, uma rápida reflexão sobre os determinantes objetivos de uma eleição.
1. O que elege um candidato?
A pergunta a fazer seria esta: por que alguns candidatos ganham, e outros perdem, uma eleição majoritária? A resposta parece óbvia, no domínio estrito da política democrática: candidatos (ou políticos já eleitos) ganham (ou perdem) as eleições na razão direta de conseguir convencer (ou não) sua clientela, ou seja, os eleitores, de que são capazes de “entregar” aquilo esperado por estes, que é, em geral e resumidamente, o maior bem-estar para o maior número (emprego, renda, acesso a escolas, hospitais, casas, etc.). Se a mensagem for suficientemente credível, e possuir alguma substância (no caso de políticos já dotados de mandato), então a vitória, ou a continuidade, pode estar assegurada. Dificilmente um governo perde eleições, se souber “comprar” um volume suficiente de eleitores para a sua causa; já um candidato de oposição pode ganhar o almejado cargo se ocorrerem duas hipóteses: o governo se mostrar muito incompetente em defender as suas políticas, e o candidato em questão conseguir convencer a mesma clientela de que ele poderia (ou pode) fazer melhor.
Dito assim, o jogo político parece de uma simplicidade arrasadora, quando na verdade as variáveis que entram em jogo são múltiplas e imprevisíveis. Fatores extra-eleitorais podem desequilibrar a partida, assim como determinados traços de caráter dos candidatos e acidentes de campanha também alteram o resultado final, pegando de surpresa os institutos de pesquisa e os próprios candidatos. Evidências quanto a isso abundam, desde o triunfo surpreendente de Truman, em 1948, até a mais recente vitória consagradora do atual presidente colombiano, em 2010, passando pela derrota da direita nas eleições gerais espanholas de poucos anos atrás. Crises externas podem ser um fator desestabilizador; mas o mais comum são os elementos internos do jogo político, particularmente aqueles vinculados à empatia que o candidato desperta nos eleitores, ou seja, uma identificação mais direta entre “vendedor” e “clientela”.
2. A campanha eleitoral como estratégia de marketing; ma non troppo
A disputa política poderia, de fato, ser vista como um mercado como outro qualquer, de compra e venda de bens e serviços públicos. Os ativos são as políticas já em curso – que também podem representar passivos a serem cobertos – e as que os candidatos se propõem realizar no período à frente; os agentes são os mesmos que intervêm em qualquer mercado: os candidatos-vendedores (muitas vezes de ilusões), de um lado, os compradores-eleitores, de outro. O “contrato” é concluído na urna; mas será descontado aos poucos, no curso do mandato. Como nos mercados de bens e serviços correntes, os “produtos” dos candidatos são geralmente apresentados com apoio em grandes doses de publicidade, de preferência a mais abrangente possível e divulgada da forma mais compreensível para o público pagante, ou seja, os consumidores-eleitores.
Comunicação é, portanto, um ativo extremamente importante, assim como a percepção de que o consumidor não será enganado. Daí a importância crescente dos chamados estrategistas eleitorais, que se encarregam de dourar a pílula, ou seja, de apresentar um candidato como sendo muito melhor do que ele realmente é (algumas vezes de um modo até revolucionário, capaz de alterar completamente a imagem de um determinado candidato, realizando a proeza fantástica de vender gato por lebre, o que ocorre até com certa frequência). Entretanto, qualquer que seja a imaginação criativa de um desses especialistas em travestir candidatos, dificilmente sua capacidade de persuasão será capaz de superar a máquina de distribuir bondades governamentais, quando esta é colocada inteiramente a serviço do candidato do poder.
Aqui, justamente, está o elemento diferenciador que faz com que o mercado político não seja o exato equivalente do mercado de bens e serviços correntes, que é, em princípio, caracterizado pela atomização dos ofertantes e pela livre disposição de seus recursos da parte dos demandantes. Por isso, o verbo, em seu modo correto, como figura ao início desta seção, deve ser colocado na condicional, e não grafado como se refletisse um estado de fato.
O mercado político não é igual ao mercado de bens e serviços correntes por um motivo simples: embora o Estado possa interferir tanto num quanto noutro – por meio de regras quanto ao seu funcionamento, ou por meio de impostos sobre as transações, por exemplo –, nos mercados puramente econômicos, os compradores dispõem (pelo menos nos sistemas capitalistas e razoavelmente democráticos) de liberdade completa para determinar quantidades, tipos e formatos das prestações dos bens e serviços aos quais pretendem alocar seus ativos financeiros. O consumidor é, em princípio, soberano nas suas escolhas e atua com base nas informações disponibilizadas pelos produtores, que teoricamente concorrem entre si pelas preferências do primeiro. Economistas liberais tendem a considerar a economia dos livres mercados como sendo uma espécie de “ditadura do consumidor”, o que se aproxima apenas parcialmente da realidade (já que cartéis, monopólios, coalizões e colusões de produtores deformam as condições de concorrência, em detrimento dos consumidores, obviamente). Na prática, todos os mercados são imperfeitos.
Nos mercados políticos, ao contrário dos de natureza econômica (ou com bem maior ênfase do que nestes), o Estado é, não apenas um interlocutor incontornável e um regulador necessário, como atua, também, como agente de seus próprios interesses, obviamente não enquanto Estado, mas enquanto governo. O Estado é, em grande medida, uma figura abstrata, virtual ou, em certo sentido, quase ficcional; ele existe, obviamente pelas suas instituições e pelo conjunto de leis e normas que regulam a ação de seus agentes permanentes, mas se expressa de modo muito mais afirmado enquanto ator de primeiro plano em suas roupagens de governo e de coalizão de forças a serviço dos partidos e dos grupos de interesse representados e ocupando suas instituições dotadas de vontade política.
Nessa condição, o Estado deixa de ser abstrato para passar a representar interesses políticos, econômicos e projetos tangíveis e intangíveis vinculados aos líderes políticos que ocupam temporariamente suas alavancas de comando. Isto é básico e elementar, conhecido de qualquer estudante de graduação que tenha lido seus manuais de ciência política ou se debruçado sobre a obra de Max Weber. Aliás, até mesmo Marx, nas páginas muito rudimentares do Manifesto Comunista, ou naquelas melhor elaboradas do 18 Brumário, já tinha detectado essa captura do Estado por forças políticas ou por personagens excepcionais – nem todos representando as “elites” tradicionais – que se movimentam no grande palco das lutas pelo poder.
3. Uma interpretação marxista dos embates eleitorais de 2010
Justamente, se Marx fosse chamado a reescrever suas obras políticas mais conhecidas – como os já citados Manifesto e 18 Brumário, acrescidos do Luta de Classes na França – adaptando-as ao cenário do Brasil atual, eis o que ele talvez redigisse, como síntese da campanha eleitoral em curso e da própria conjuntura.
Se considerarmos o estado atual da luta de classes no Brasil, depois de anos e anos de afirmação de uma liderança cesarista e carismática, o que se pode dizer é que todas as classes se renderam ao Bonaparte do momento. Não ocorreu, para todos os efeitos, qualquer golpe na trajetória política recente do país, algo inesperado como um raio caído de um céu azul. Não; tudo foi o resultado racional-legal da lenta ascensão de classes pouco trabalhadoras ao pináculo do poder, o produto final da lenta acumulação de forças pelo partido da reforma conservadora. O final lógico desse teatro de lutas contra os burgueses liberais nos últimos anos já era o esperado: o manto imperial caiu, finalmente, nos ombros do pequeno Bonaparte, sem sequer algum gesto dramático, menos ainda com qualquer sinal de tragédia. Foi, assim, um triunfo de comédia.
Todas as classes, com exceção de uma fração extremamente reduzida de ideólogos da pequena burguesia libertária, se renderam ao líder aclamado; a minoria que o ataca não tem qualquer força social atrás de si para contestar o seu domínio completo sobre a sociedade. A máquina burocrático-sindical já estava ganha desde o início, pois foi dela mesmo que o novo Cesar emergiu para uma ascensão lenta, mas irresistível. Os movimentos desorganizados do lumpesinato e do proletariado não sindicalizado foram os que convergiram em segundo lugar, pois eles encontraram no Tesouro da República a justa compensação pela escolha judiciosa que fizeram. Não foi preciso repetir a história, sequer como farsa, no caso da grande burguesia industrial e dos representantes da alta finança: eles já tinham sido convencidos, desde antes da ascensão do imperador, de que seus interesses de classe seriam regiamente compensados, como de fato o foram, pela fidelidade demonstrada ao novo esquema de poder. Todos eles foram colocados na mesma categoria de apoiadores, meras figuras decorativas na urna de votos do novo Cesar, como se fossem simples unidades indistintas de um grande saco de batatas.
O fato é que até mesmo o antigo partido da reforma conservadora foi parar nesse saco de batatas, e virou o partido da Ordem, submisso como todos os outros ao poder do chefe supremo. As bases de seu poder são relativamente transparentes, pois basta seguir o itinerário do dinheiro que escorre dos cofres públicos – isto é, dos bolsos da burguesia e da pequena burguesia, dos grandes proprietários fundiários, dos caixas das empresas da burguesia industrial, e até mesmo dos parcos tostões do proletariado e seus aliados menores. Temos, em primeiro lugar, a plutocracia financeira, aquela que sempre se opôs ao partido da reforma, quando este era desestabilizador, mas que logo se acomodou, ao constatar que o grande líder propunha, na verdade, uma coalizão diferente para manter o mesmo esquema de poder real; ela foi contemplada, como sempre, com os juros da dívida pública, sem precisar fazer qualquer esforço no mercado de capitais ou na busca de clientes para seus empréstimos extorsivos. A grande burguesia das fábricas e dos negócios comerciais também soube encontrar o seu nicho no novo esquema de poder: um mercantilismo renascido com um Estado ainda mais forte, capaz de dispensar empréstimos facilitados, isenções fiscais, tarifas protetoras e toda sorte de prebendas e subsídios que tinham uma existência mais modesta na antiga República neoliberal.
Vem em seguida a nova aristocracia sindical, que já não era operária havia anos, provavelmente a décadas; sua fração burocrática converteu-se em parte integrante da nomenklatura estatal, a nova classe privilegiada, que alguém já chamou de “burguesia do capital alheio”. A maior parte, porém, continuou nas corporações sindicais, agora locupletando-se de fundos públicos, que lhe são repassados sem qualquer controle. Junto com os militantes do antigo partido da reforma, eles constituem os elos mais relevantes do novo peronismo em construção, uma nova força política que é puro movimento, sem qualquer doutrina ou construção teórica mais elaborada. Os aliados da academia, que poderiam fornecer uma base intelectual para o partido da reforma, os universitários gramscianos, estes parecem singularmente estéreis na produção de novas ideias, pois ficam repetindo velhos slogans do socialismo do século 19, sem qualquer originalidade ou refinamento. São tão atrasados, e alienados, esses acadêmicos repetitivos, que terminaram por ver num coronel golpista, de notórias tendências fascistas, um líder progressista do novo socialismo; o êmulo de Mussolini pretende que o seu socialismo seja do século 21, quando este nada mais constitui senão uma confusão mental e uma construção estatal digna do que havia de pior no sovietismo esclerosado.
Outros componentes do mesmo saco de batatas são os funcionários públicos, alguns verdadeiros mandarins, a maioria simples beneficiários da prodigalidade estatal, que, na média, recebem o dobro do que ganhariam na iniciativa privada, para níveis de produtividade que são, na média, menos da metade daquelas do setor privado. Figuram ainda no saco, finalmente, os recipientes do maior programa social do mundo, que vem a ser, também, um grande curral eleitoral: o lumpesinato, de forma geral, e os vários lumpens urbanos, em particular, com alguns pequeno-burgueses espertalhões aqui e ali. Não se deve esquecer, tampouco, tubérculos igualmente vistosos, como os beneficiários de bolsas para diversas categoriais sociais ou as cotas para os representantes do Apartheid em formação, os promotores do novo racismo oficial.
Ficam de fora do saco de batatas apenas e tão somente 3 ou 4% do eleitorado, representado politicamente por figuras teimosas, que recusam inexplicavelmente o mito do demiurgo e que pretendem continuar o combate de retaguarda, sem qualquer esperança de reverter o curso do processo político no futuro previsível. Esses novos mencheviques intelectuais também fazem sua própria história, mesmo se eles ainda não têm consciência disso: eles não podem, contudo, esperar fazer sua revolução a partir de um passado já enterrado; apenas em direção ao futuro, embora o caminho seja longo e os resultados muito incertos.
O que parece certo é que a mistura de pequeno Napoleão com um Perón improvisado também terá um dia sua estátua derrubada do alto da coluna Vendôme, não tanto como resultado de uma nova luta de foices e martelos, mas como o produto de uma lenta evolução educacional. Esta é a revolução mais difícil de ser provocada, mas constitui, legitimamente, o único processo revolucionário de que o Brasil necessita.
Zhengzhou, 24.08.2010; Shanghai, 26.08.2010
terça-feira, setembro 07, 2010
Declaração de voto: um manifesto quase marxista
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