O imposto (cuidadosamente) esquecido
ALMIR TEUBL SANCHES
Folha de São Paulo, 14/12/2007
Rejeitada a prorrogação da CPMF, torna-se premente a retomada do debate acerca da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
DE TUDO o que foi dito no longo debate sobre a prorrogação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), o que mais causa espanto é justamente aquilo que foi esquecido. Quando de sua criação, na reforma tributária de 1993, a CPMF (então ainda IPMF) foi uma manobra da União para que pudesse resolver seu problema de caixa sem precisar instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Ou seja, por meio de uma reforma, criou-se um tributo até então inexistente para deixar cuidadosamente esquecido aquele que era previsto pela Constituição (artigo 153, VII), mas que mexia com grandes interesses.
Após quase 20 anos da promulgação da nossa Carta Magna, o IGF permanece, sintomaticamente, o único imposto de previsão constitucional não instituído.
Timidamente, apresentou-se, no início da década de 1990, uma meia dúzia de projetos de lei para cuidar dessa questão. As propostas que tratavam do IGF, claro, tiveram o mesmo destino da grande maioria das que atentam contra os interesses dos poderosos: a gaveta do Congresso Nacional, essa gaveta em que se guarda boa parte da história do que poderia ter sido nosso país.
Para ter uma idéia dos gigantescos interesses em jogo, numa síntese dos projetos apresentados, o IGF incidiria anualmente sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas que ultrapassasse algo em torno de R$ 6 milhões, em valores atualizados. As alíquotas obedeceriam a uma tabela progressiva, variando entre 0,3% e 1%, sendo tanto maior quanto maior fosse a fortuna. Seria uma espécie de complementação do Imposto de Renda.
Assim, o IGF é o tributo que, por excelência, atende ao princípio basilar da capacidade contributiva, espinha dorsal da justiça tributária, ao dizer que cada pessoa deve contribuir na medida de sua aptidão econômica.
Curiosamente, entre os argumentos que derrubaram a CPMF, um dos mais eloqüentes foi justamente o de que ela desrespeitaria o princípio da capacidade contributiva. Que um princípio tão importante quanto esse seja usado quando interessa, mas esquecido quando convém, é algo que seria cômico se não fosse trágico.
Infelizmente, é preciso dizer que não passa de econômica a aptidão dos que têm grandes fortunas a contribuir, sendo ela barrada pela "inaptidão política" -o que fica patente pelo forte lobby no esquecimento do IGF, sob a roupagem de argumentos técnicos que não se sustentam. Entre estes, o que mais espanta é a alegação de que, uma vez instituído, o IGF seria vítima de fraudes.
Com efeito, a fraude às obrigações tributárias é uma realidade brasileira, mas não se pode conceber que o legislador deixe de exercer sua função, acovardando-se por temer não ser respeitado. Ora, as leis devem coibir as fraudes, e não o contrário. Do inverso, agiríamos como o covarde que, temendo perceber que está cego, jamais voltará a abrir seus olhos.
Inclusive, o IGF poderia, ele mesmo, transformar-se em um importante instrumento de fiscalização de inúmeros outros tributos, ao possibilitar o cruzamento de dados com outras declarações tributárias -função, aliás, que a CPMF exercia com louvor.
Um outro argumento, de que o IGF poderia reduzir a poupança interna e desestimular a interiorização de capitais externos, pode ser abandonado com facilidade: basta ver que a Suíça, sabidamente um dos países que mais recebem capitais externos do mundo, adotou imposto semelhante.
Um último argumento contrário ao IGF é a estimativa de que a arrecadação por ele gerada seria de pequena expressividade. Os que argumentam nesse sentido se baseiam na experiência internacional, mas se esquecem de que os países examinados têm em comum justamente aquilo em que se diferenciam do Brasil: são países desenvolvidos, com excelentes níveis de distribuição de renda.
Sem grandes desnivelamentos sociais, é natural que a arrecadação de um imposto sobre grandes fortunas não seja muito expressiva quando comparada à de outros tributos. Não é viável, no entanto, um país marcado pela injustiça social, em que a concentração de renda é uma das dez maiores do mundo, se dar ao luxo de esnobar o IGF ao fundamento de que a arrecadação seria baixa.
Com a rejeição da prorrogação da CPMF e os decorrentes problemas de caixa que a União fatalmente voltará a enfrentar, torna-se premente a retomada do debate sobre a instituição desse imposto.
Do contrário, se continuarmos encarando o IGF como um mero deslize do constituinte, melhor seria que o esquecêssemos de uma vez e, com ele, jogássemos fora o princípio da capacidade contributiva, que, no Brasil, infelizmente, se presta a pouco mais do que sustentar hipocrisias.
Como alguém consegue dormir com todo esse silêncio?
ALMIR TEUBL SANCHES, 28, mestrando em filosofia do direito pela USP, é procurador da Fazenda Nacional
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