Eis o quadro que Manoel Bomfim (1868-1932) pinta dos primórdios desse nosso país "com tradição de liberdade":
"A AMÉRICA LATINA: Males de Origem", 1905, Manoel Bonfim
"Como se fez a colonização? As terras são distribuídas discricionariamente, ou delas se apossam os colonos ávidos, aos quais a metrópole doa os índios, e, depois, vende negros, para que produzam muito açúcar e muito ouro, fonte dos tributos cobiçados. Ao mesmo tempo, para garantir a cobrança desses tributos e tornar efetivos os seus privilégios, os governos da metrópole mandam para cá representantes, espalham por toda a colônia uma rede de agentes, opressores e vorazes, impostos como os diretores da vida pública; e, desde logo, é defeso às novas sociedades o organizarem-se espontaneamente, segundo os seus interesses e inclinações. Mas, como a metrópole não tem outros intentos senão cobrar os tributos e impedir que as colônias possam furtar-se a não nos pagar - como este é o seu único programa, o governo da coroa deixa ao colono toda a plenitude de ação para o mal; ele é livre de fazer o que quiser, contanto que pague e não pense em modificar o regime social e político. Assim, cada colono, sem freios aos instintos egoísticos, organizou o seu domínio em feudo. São caricaturas de senhores medievais - um feudalismo vilão, sobre uma vassalagem de negros escravos. Nos interstícios dos feudos, uma população que, de ignorante e embrutecida, voltou à condição do selvagem primitivo.
O Estado tem por função, apenas, cobrar e coagir e punir aqueles que se neguem a pagar ao governo centralizador, absolutista, monopolizador. A justiça aparece para condenar os que se rebelam contra o Estado ou contra os parasitas criados e patrocinados por ele (Historiando a revolta de Campos dos Goitacazes, escreve um cronista: 'Impunham os vereadores, criaturas dos donatários, multas pecuniárias e penas de prisão aos moradores por divertimentos e atos inocentes da vida'), Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: 'Se a guerra é antes um sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um princípios'. Esse instinto é o parasitismo, e na colônia é que ele se tornou, por uma vez, o inspirador único de todas as justiças.
Fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem garantias, nem escolas, nem obras de interesse público... nada que represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos.
O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição, com que desde o primeiro momento se apresenta ele às novas sociedades, tem uma influência decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades: o Estado é o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança... Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico - tirânico e espoliador. (....) As autoridades não têm nenhuma afinidade com as populações naturais, são-lhes inimigas, se bem que as conheçam mal; não se cuida nem de privar com os povos, nem de estudar suas tendências e necessidades. 'Os funcionários vinham sempre da metrópole. Evitava-se com muito cuidado admitir em empregos até os próprios descendentes de europeus, nascidos na América... e foi assim que se gerou entre os povos das colônias e das metrópoles essa rivalidade, que em breve se converteu em profunda aversão'. Os representantes do Estado são em rigor os caixeiros da coroa, na gerência das fazendas de ultramar. Aqui e ali, as novas populações, ressuscitando das tradições democratas das cúrias e municípios ibéricos, ensaiavam um regime comunal - câmaras municipais e ajuntamentos; mas esta vida política autônoma é, geralmente, perturbada, entravada, abafada, pelo poder absorvente, centralizador, sem contraste, dos agentes da metrópole. Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa - empobrecê-las, e um pensamento exclusivo - obstar que elas progredissem e pudessem, um dia, organizar-se livremente, como nações emancipadas. Não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes; não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto - era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia. Estava, de antemão, condenado a ser destruído sem reserva, pois se achava em oposição aos interesses reais das novas populações, e não podia servir nem mesmo como ponto de partida para uma organização política definitiva. Fora melhor, sem dúvida, que vingasse o primeiro sistema da coroa de Portugal - entregar, desde o início, as colônias a si mesmas - pagando-se-lhe, embora, os adorados tributos. Esses povos que se viessem formando achariam, sem dúvida, uma forma de organização social mais de acordo com as suas necessidades; o instinto de conservação os levaria a constituírem-se de modo conveniente. Estimulados pelos interesses próprios, seguindo as tendências naturais e as novas condições de meio, as nacionalidades nascentes teriam entrado, desde o primeiro momento, no caminho da organização social e política definitiva.
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"(...) No dia da independência, as novas nacionalidades se acharam sem indústria, sem comércio nacional, sem capitais, sem riqueza, sem gente educada no trabalho livre, sem conhecimento do mundo.
Sob o ponto de vista econômico, estas sociedades compreendiam três categorias de gentes, nitidamente distintas: um mundo de escravos, degradados, que só conheciam da vida o açoite e o tronco; um mundo de ignorantes, vivendo do trabalho dos escravos; e, finalmente, uma população de miseráveis, que germinou entre uma e outra, vivendo sem necessidades, como o selvagem primitivo, ignorante como ele, imprevidente, descuidosa, apática, nula - era a massa popular. O calor brando de um céu benigno, a feracidade dos rios e das selvas garantiam-lhe a existência. - E queriam que ela se fosse meter nos eitos, pedir para trabalhar e engordar os senhores, pelo preço de uma medida de farinha e uma libra de carne!... Condenam-no, porque ele - o trabalhador nacional - não ia disputar a escravidão ao escravo!... Em verdade, essa massa popular não trabalhava, e ainda hoje trabalha mal. Não trabalhava, então, porque não sabia trabalhar para si, e porque - é natural e humano - não queria, nem tinha necessidades de ir fazer-se escrava. Quando todo o trabalho nacional era feito por negros e índios cativos, quando era possível haver escravo para tudo, não havia lugar para o trabalhador livre, a menos que ele não quisesse trabalhar nas mesmas condições e pelo mesmo preço que o escravo - um salário tão insignificante quanto o custo da alimentação do negro, e a mesma obediência ao senhor. Quando não, este ia ao mercado e trazia o negro. O trabalhador livre ficava de lado. Foi assim que, de geração em geração, ele foi arredado do trabalho assalariado.
O regime parasitário impunha a escravidão. E porque o regime colonial era o do puro parasitismo, foi imposta às novas sociedades uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios, um regime retardatário, opressivo, corrupto e extenuante. Ao mesmo tempo, condenavam-se as colônias a ser o campo de exploração de um mundo de intermediários, que vinham e iam numa corrente contínua, drenando para a metrópole toda a riqueza aqui produzida. Eis a razão por que, exânime, embrutecida, a América do Sul se achou, na hora da independência, como um mundo onde tudo estava por fazer: eram uns vinte milhões de homens, desunidos, assanhados, pobres, espalhados por estas vastidões, tendo notícia de que existe civilização, padecendo todos os desejos de possuí-la, mas carecendo refazer toda a vida social, política e intelectual, a começar pela educação do trabalho e pela instrução do abc.
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(...) Nos campos, as gentes não se fundem, continuam distintas as três classes - o senhor, o escravo, e a mestiçagem livre; mas, pelo menos ali, elas se afeiçoam à terra, se nacionalizam. Nas cidades, não. À proporção que se passam os anos, e que vai surgindo essa nova população - nativa, desejosa de viver e pronta a disputar à grande massa de adventícios um lugar na vida, à proporção que ela vai engrossando e reclamando o que lhe é de direito, mais estrangeiros, mais hostis e tirânicos se vão tornando os representantes das metrópoles, unidos num sentimento único, funcionários e intermediários. Breve é a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus direitos, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as posições - e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem, miseráveis, desabrigadas de odo o conforto, ignorantes e pobres, em em todo caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram, aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas. Querem viver, querem as posições, não se conformam à única situação que lhes é oferecida - ir disputar, no eito ou na cozinha, o salário do escravo. 'Vão trabalhar', dizia o reinol do íntimo das suas banhas, no canto do balcão onde ele passou a vida sentado, a ver entrar e sair a freguesia, inativo e improdutivo como um franciscano, - 'Vão trabalhar como eu', repete ele aos naturais, que reclamam entrada na vida, como se houvesse uma brecha por onde estranhos pudessem penetrar o reduto em que eles fecharam a vida econômica e política das colônias, como se fosse possível trabalhar entre escravos, a não ser com os queixos para devorar o que estes hajam produzido!...
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Lutas contínuas, trabalho escravo, estado tirânico e espoliador - qual seria o efeito de tudo isto sobre o caráter das novas nacionalidades? Perversão do senso moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos.
Neste sistema de colonização tinham achado as metrópoles o ideal de vida política e econômica; manter as colônias sob o mesmo regime era a garantia da subsistência. Todos - Estado e Igreja, nobres e mercadores, senhores e tropas - todos se mantinham solidários, absolutamente unificados; quando um desmoronasse, os outros viriam abaixo com certeza. Ora, pelo resto do mundo, a ciência e a filosofia vinham despertando as consciências; os privilégios e as injustiças sentiam-se ameaçadas; então, redobraram-se os expedientes para embrutecer e degradas definitivamente as gentes das colônias, de forma a tornar para sempre impossível a redenção intelectual e moral destes povos. Os processos de cultura da ignorância e de seleção às avessas, empregados pelos jesuítas e pela Inquisição, na metrópole, foram transportados para as colônias. A Espanha chegou a proibir, mais de uma vez, a venda de livros aos súditos da América; nos momentos de crise, só o fato de saber ler e escrever era motivo de suspeição. Não se trata de um programa, reacionário embora, despótico, mas inteligentemente elaborado e conscientemente aplicado; não, eram medidas parciais, detalhes de opressão, vexames sucessivos, à medida que se fazia preciso defender este ou aquele privilégio, manter esta ou aquela iniqüidade, garantir este ou aquele parasita. Disparatadas na aparência, essas resoluções tinham, porém, uma certa unidade de efeitos - a oposição ao progresso. Era uma reação instintiva - o instinto cego e feroz da própria conservação, que unificava, numa política de imobilismo irredutível, estes atos incoerentes de forma, estúpidos, quase inconscientes."
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Sobre Manoel Bonfim, no artigo http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_priori.htm, destaco o seguinte:
"Embora bebesse nas fontes do marxismo, Bomfim não era um revolucionário strictu sensu, que dedicava a vida à luta contra a burguesia. Ele era um democrata. E buscou no marxismo não um guia de ação revolucionária, mas um “método de interpretação da realidade social, ao qual acrescentou um profundo e constante amor pelo Brasil e por sua gente” (AGUIAR, 2000, p. 41)."
domingo, agosto 14, 2011
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