Países âncora e países
emergentes: comentários a uma pesquisa
A propósito do texto
do Prof. Dr.Andreas Stamm:
“Países emergentes e
países âncora como agentes de parcerias globais:
considerações básicas
para um posicionamento da política alemã de desenvolvimento”
(Deutsches Institut
für Entwicklungspolitik)
por Paulo Roberto de
Almeida
Diplomata, Doutor em
Ciências Sociais.
Brasília, 27 de junho de 2005
1. Definições e
problemas na classificação dos países em categorias distintas
A distinção entre os países e sua classificação em grupos
ou categorias distintas, segundo blocos de similaridades aparentes, é um antigo
exercício da economia política ou até da filosofia política, desde a
antiguidade até os nossos dias. Nos tempos antigos, os povos e as nações
constituídas estabeleciam a distinção clássica entre “nós” e “eles”, ou seja, a
diferença entre o seu próprio país e todos os demais povos estrangeiros e as
nações diferentes, sendo a alteridade quase um sinônimo de “barbárie”, como
gregos e chineses não cansavam de repetir. Na etapa de formação da economia
política, nos tempos modernos, a distinção entre metrópoles coloniais e periferia colonizada já estava
bem assegurada, como evidente em dezenas de passagens de Adam Smith, David
Ricardo e outros “pais fundadores” da ciência econômica.
As noções teóricas de desenvolvimento econômico ou mesmo um
entendimento concreto em torno de medidas práticas ou políticas especiais para
promover o desenvolvimento e o progresso dos países não estavam ainda muito
avançados nessa época. O período vai do início do século XIX, quando se forma a
moderna ciência econômica – então chamada ainda de economia política ‑, até o
início do século XX, quando se consolida a moderna economia, e ela passa a se
chamar de economics, com Alfred
Marshall e outros, já com suas inclinações matematizantes e quantitativistas,
segundo o mainstream da economia do
equilíbrio imperfeito. Mas essa época também corresponde ao período áureo da
dominação imperial, dos novos impérios coloniais e da dominação européia sobre
o mundo, quando a distinção básica era entre potências dominantes e periferia dominada, como,
aliás, era o caso anteriormente.
A grande revolução ocorrida na ciência econômica, a partir
dos anos 1930, com Keynes e, sobretudo, a partir de meados do século XX, não
toca muito, num primeiro momento, na noção de desenvolvimento econômico, que
continua sendo um terreno muito pouco desenvolvido da teoria econômica. Foi
nessa época que foi publicado o livro seminal dessa revolução: a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda,
um livro certamente revolucionário para a época, e ainda paradigmático, três
gerações depois. Naqueles tempos, de crises financeiras, de aguda recessão, de
desemprego, de ruptura de pagamentos, de desvalorizações cambiais selvagens e
de bancarrotas industriais e bancárias, as idéias e propostas do ex-delegado
britânico à conferência da paz de Versalhes trouxeram, senão um alívio prático
às agruras do momento, pelo menos uma luz revisionista em relação ao obtuso
pensamento conservador que teimava em guiar os homens de governo em suas
responsabilidades econômicas. Se os novos princípios de política econômica
apresentados no livro não significaram um bálsamo imediato para as dificuldades
concretas com que eles se defrontavam, as noções nele desenvolvidas
consagraram, pelo menos, uma espécie de renascimento da “economia política”,
depois de algumas décadas de predomínio microeconômico da escola neoclássica.
As idéias de Keynes emergiram no auge da segunda grande
onda da globalização, aquela contemporânea da máxima extensão territorial do
Império britânico, mas elas só vieram a se firmar, de verdade, quando esse
processo já tinha entrado em recesso, tanto em virtude dos choques iniciados no
outubro negro de Nova York, em 1929, quanto no seguimento do outubro vermelho
de Moscou e Petrogrado, uma vez que as tentativas de construção do socialismo
interrompem, de fato, o movimento ascendente do capital por exatas três
gerações. Encontra-se aí, em todo caso, a origem de uma primeira grande divisão entre
grupos de países: a economia mundial, crescentemente integrada no decorrer
da segunda revolução industrial – grosso
modo, 1870-1914 ‑, tinha, até então, conhecido formas mais ou menos
similares de economias
de mercado e de propriedade privada dos meios de produção. Ela
passava a sofrer, partir dos anos 1920, a “concorrência” das economias socialistas, cujas
características pareciam mais propensas a resistir aos golpes das crises de
superprodução – que tinham dominado o pensamento marxiano – e aos embates das
crises financeiras, mais conforme ao paradigma keynesiano que se tornou
dominante pelos próximos quarenta anos.
As distinções entre grupos de países, ainda que artificiais
e politicamente determinadas, são o fruto da nova ordem econômica e política
surgida no pós-Segunda Guerra, com o estabelecimento da ONU e suas agências
especializadas. Os países passaram então a ser classificados, grosso modo, em três categorias fundamentais: os desenvolvidos, os socialistas e os em desenvolvimento, que nos
anos 1950 ainda eram chamados de “subdesenvolvidos” ou, para efeitos do GATT, de “partes contratantes pouco desenvolvidas” (já o acordo
constitutivo da OMC usa o conceito politicamente correto de “países em
desenvolvimento”). A China comunista (e subdesenvolvida), que emergiu para o
mundo no final de 1949 e para a ONU (e seu Conselho de Segurança) apenas em
1971 (e para as instituições de Bretton Woods já nos anos 1980), sempre
constituiu um “grupo” à parte, contando sempre consigo mesma.
No decorrer das duas ou três décadas seguintes
ao estabelecimento dessa distinção básica entre grupos de países, período que
conheceu a triplicação dos países membros da ONU a partir da descolonização da
África e de partes imensas da Ásia, bem como, já nos anos 1990, a partir da
crise final do socialismo, a separação entre países avançados – ou seja, os de
economia de mercado e industrializados – e países em desenvolvimento não
conheceu mudanças significativas, a despeito do aprofundamento no
subdesenvolvimento de muitos deles, o que suscitou o aparecimento de mais uma
categoria dentre estes últimos, os LDCs, ou PMDRs, países de menor
desenvolvimento relativo (um grupo próximo das cinco dezenas de
países).
Encerrado o “breve parêntese” histórico – de apenas setenta
anos – de construção do socialismo, com a queda do muro de Berlim e a implosão
do comunismo de tipo soviético, o capital retoma sua marcha triunfal e a
distinção entre economias socialistas e capitalistas deixa, para todos os
efeitos, de ter conseqüências práticas, pelo menos no plano mundial, pois todos
os países, ricos e pobres, dirigistas e liberais, passam a estar englobados
numa mesma economia planetária. Cessaram, pelo menos aparentemente, as zonas
desconhecidas da economia de mercado, as terras incógnitas do capitalismo
global e todas elas passaram a estar integradas à divisão internacional do trabalho. O que
ficou, do ponto de vista das relações internacionais, foi apenas o problema
básico, a distinção
crucial entre nações desenvolvidas e nações em desenvolvimento, ainda que
essas diferenças, de cunho mais político, façam pouco sentido do ponto de vista
da economia prática, que tende a examinar problemas econômicos concretos, não
distinções estabelecidas politicamente.
O não-desenvolvimento, de fato, da maior
parte da comunidade internacional, em plena terceira onda da globalização
capitalista, tem a ver, obviamente com os baixos
níveis de produtividade econômica dessas economias nacionais, situação que
por sua vez deriva da baixa capacitação
educacional e técnica de seus contingentes populacionais. No plano teórico
ou conceitual, cabe reconhecer que a economia do desenvolvimento é um animal
relativamente novo na, hoje grande e diversificada, família da disciplina em
questão. Com efeito, Adam Smith apresentou idéias sobre o itinerário da
prosperidade econômica, enquanto Marx formulou hipóteses sobre o caminho
necessário, indicado pela Grã-Bretanha aos demais – expresso na fórmula de te fabula narratur ‑, para a
realização do modo de produção capitalista. Nenhum dos dois, entretanto, estava
de fato interessados em saber como romper as amarras do subdesenvolvimento,
tanto porque eles estavam tratando de economias basicamente desenvolvidas.
Pode-se dizer que a Alemanha estava atrasada em relação à Grã-Bretanha, mas não
que ela fosse absolutamente “subdesenvolvida” em função dos padrões conhecidos
nessa época. Os demais economistas, por sua vez, se ocuparam, se tanto, da
teoria dos ciclos econômicos, não da superação de etapas no processo de
acumulação de capital: Marshall, por exemplo, estava preocupado com o
crescimento no plano microeconômico, isto é, com o sucesso nos negócios
empresariais.
Assim como a
teoria neoclássica ignorou esse problema, Keynes tampouco se preocupou em
formular uma verdadeira teoria do desenvolvimento, dirigindo suas preocupações
à busca de uma elaboração teórica em torno do equilíbrio das economias já
desenvolvidas. Suas páginas sobre a Índia, então sob um “direct rule” relativamente benigno do ponto de vista político,
tanto quanto indiferente no plano econômico, se referem mais ao currency board em vigor naquela enorme
colônia do que às condições de um eventual rattrapage
industrial. Apenas a partir do final dos anos 1940 e, sobretudo, no decorrer
dos anoso 50 e 60, a economia do desenvolvimento toma impulso e com ela se
começa a classificar os países em função de PIB, de renda per capita e de
capacitação setorial especifica, isto é, a importância relativa dos setores
econômicos, segundo a tripartição introduzida por Colin Clark.
Alexander
Gerschenkron, por sua vez, dá uma grande importância às diferenças entre os
países, mas ele estava prioritariamente preocupado com o itinerário dos países que
integravam o pelotão de frente da economia mundial, não com as ex-colônias e os
países ditos dependentes da periferia capitalista. Quando essa reflexão começa,
a partir de meados ou finais dos anos 1950, seja por meio de economistas
relativamente mainstream, como Gunnar
Myrdall, seja com heterodoxos como Andrew Gunder Frank, ainda assim as
reflexões são conduzidas com base em modelos analíticos que tinham no padrão
capitalista desenvolvido a referência básica para o itinerário futuro dos
países em desenvolvimento. Raúl Prebisch, por um lado, e Celso Furtado, por
outro, criam novas categorias analíticas para o exame das diferenças
fundamentais entre economias centrais e periféricas, este último insistindo na
distinção básica entre desenvolvimento e subdesenvolvimento – que não seria
apenas uma etapa prévia ou anterior ao desenvolvimento, e sim um estado próprio
de heteronímia e dependência ‑, mas cabe reconhecer que os trabalhos de ambos
nunca foram muito bem aceitos ou integrados ao chamado mainstream economics.
Nesse
período, o grande debate internacional, nos foros onusianos, se dava precisamente
em função das diferenças de categoria entre países avançados e os menos
avançados, em função do que se deveria derrogar às normas uniformes do GATT e
permitir o chamado tratamento especial e diferenciado em favor dos países menos
desenvolvidos – não reciprocidade, concessões unilaterais não extensivas às
demais partes contratantes ‑, como demandado por foros especiais como a UNCTAD
e depois incorporado como Parte IV do GATT-1947.
De fato, as
dificuldades de desenvolvimento econômico e social da muitos países integrantes
da comunidade internacional contemporânea podem também ser devidas, em certa
medida, à falta de oportunidades de concorrência legítima no terreno do
comércio internacional. Com efeito, os países desenvolvidos só se mostram
verdadeiramente “ricardianos” quando as vantagens relativas os beneficiam,
evitando ou limitando o confronto com as vantagens comparativas dos países mais
pobres – em recursos naturais, em mão de obra barata, em produção primária –
quando isso os levaria a ter de reconverter unidades agrícolas não-competitivas
ou velhas indústrias da primeira ou da segunda revolução industrial. As frustrações
da rodada Uruguai do GATT e as atuais dificuldades da rodada de Doha da OMC
muito se explicam por esses fatores. Um economista-historiador “revisionista”
como Ha-Joon Chang vem fazendo certo sucesso com base em argumentos à la List sobre a distorção fundamental
que consistiria em recomendar “receitas” de desenvolvimento com base nas atuais
configurações liberais da economia globalizada, quando a maior parte dos, senão
todos os países atualmente desenvolvidos teriam ascendido à condição de países
avançados praticando todos os tipos de protecionismos, subvencionismos e
dirigismos que lhes foram permitidos pelo ambiente menos regulado de um século
atrás, ou mais. Alguma qualificação poderia ser feita quanto à pouca
importância dada por ele ao substrato cultural e educacional desses países, e
sua insistência talvez exagerada em políticas setoriais – comercial ou
industrial – nesses itinerários peculiares de ascensão à autonomia tecnológica.
O fato é
que, nos dias de hoje, as distinções políticas onusianas têm cada vez menos
abrigo nas análises econômicas, tendo em vista a integração de alguns países ao
bloco dos desenvolvidos – como pode ser exemplarmente demonstrado pelo caso da
Coréia do Sul, país membro da OCDE desde 1998 – e o descolamento de muitos
outros, em maioria africanos, das grandes correntes da economia internacional
globalizada das duas últimas décadas. Em lugar das antigas categorias
onusianas, que perdem sua validade real, mas que persistem em existir,
sobretudo no âmbito do chamado G-77, grupo dos países em desenvolvimento,
surge, com mais força desde meados dos anos 1990, os chamados emergentes. Esses países já foram chamados, em outras épocas, de
NICs, ou newly industrializing countries,
o que de fato indicaria seu novo status
de economias que se libertaram da dominância agro- ou primário-exportadora –
que sempre caracterizou os países em desenvolvimento – e que passam a competir
com os velhos países industriais nos mercados mais dinâmicos de manufaturas e,
em alguns casos, serviços e tecnologia.
Os países
emergentes deveriam possuir, por
definição, uma economia dinâmica, ou seja, de crescimento rápido e sustentado.
Essa dinâmica pode conduzi-los ao objetivo maior do desenvolvimento, que poderia ser definido como um processo sustentado de
crescimento
econômico – ou seja, aumento nominal do PIB e real da renda per
capita ‑, com transformação
produtiva – isto é, a progressiva incorporação de técnicas
sofisticadas ao processo produtivo, com crescente autonomia na geração de
respostas tecnológicas próprias aos desafios do sistema de produção em
condições de concorrência com competidores externos – e, finalmente, de distribuição de riquezas, o que
normalmente se dá pela incorporação das chamadas camadas subalternas aos
benefícios da economia moderna, com graus crescentes de satisfação das necessidades
básicas e outras situações de bem-estar. Tudo isso pode ser refletido em uma
série de indicadores básicos da economia e das condições de vida das
populações, que vem sendo progressivamente afinada e metodologicamente
incorporada ao índice de desenvolvimento humano (IDH), do PNUD.
Os países
âncora, por sua vez, teriam a qualidade de, ademais de serem emergentes ou já
“emergidos”, servirem como sustentáculo
regional ou global aos ciclos econômicos da economia mundial,
o que implica em certa responsabilidade gestora, como motores do crescimento
sustentado no plano global ou regional. A categoria de “âncora” parece ter a
ver com dimensão própria dessa economia – sua “massa atômica”, digamos assim ‑
e com a capacitação autônoma na formulação e execução de políticas econômicas.
2. Países
emergentes e países âncoras como agentes de parcerias globais: observações
Os países
âncora são definidos, no paper do
Prof. Dr. Andrés Stamm, “Emergent and Anchor Countries as Players in a Global
Partnership”, como “países que desempenham um papel econômico e político de
destaque em suas respectivas regiões. Esse papel pode ser positivo, no sentido
de que tais países podem ser motores regionais de crescimento e de reforma
política, mas também pode ser negativo, no sentido de que tais países podem ser
fontes de estagnação e instabilidade regional.”
Duas observações iniciais poder ser feitas nesta fase de
definições. Há, em primeiro lugar, uma identidade entre papel econômico e papel
político dos chamados países âncora, quando essas duas dimensões nem sempre
caminham juntas na histórica econômica e política mundiais, podendo haver casos
de notória dissociação entre uma e outra. A Alemanha, por exemplo, desempenhou
um papel relevante na modernização e na integração econômica da chamada mittelEuropa, entre meados do século XIX
e o início do século XX, tanto no plano comercial, como nos planos industrial,
tecnológico e financeiro. Em contrapartida, seu papel no ordenamento político
foi o de um trouble-maker, para dizer
o mínimo, ou de destruidor de velhas hegemonias – como a francesa ou a inglesa,
ou ainda a russa, de certo modo – e promotora de novas, como a sua própria. Ela
teve um inegável papel progressista no plano econômico, e um papel
provavelmente regressista no campo político, fazendo a Europa mergulhar de
forma atroz numa segunda Guerra de Trinta Anos – de 1914 a 1945, ou talvez
antes e mais, a partir de 1870, de fato – que contribuiu em grande medida para
subtrair essa mesma Europa da liderança política nos negócios mundiais e que
conduziu a própria Alemanha à subalternidade nos negócios europeus durante
quase duas gerações.
Adiantar, por outro lado, que tais países podem ser fontes de estagnação e
instabilidade regional representaria dar aos países âncora uma responsabilidade
que não pode ser a deles no contexto da economia global. Que eles tenham um
peso próprio e como tais seja suscetíveis de influenciar os ciclos econômicos
em países menores, e vizinhos, isso é inegável. Mas, eles também dependem de um
entorno mais vasto que por vezes ultrapassa sua capacidade normativa ou
regulatória. Pensemos uma vez mais na Alemanha do início dos anos 1990. Em que
medida esse país é responsável pela derrocada vergonhosa do sistema monetário
europeu, ao decidir financiar a incorporação da ex-DDR à sua própria economia
com taxas de câmbio irrealistas e elevando significativamente a taxa de juros
para atrair capitais estrangeiros, em função do seu déficit orçamentário assim
criado? Ou não estaria esse sistema monetário condenado de toda forma ao
fracasso ao congregar países dotados de políticas econômicas divergentes,
situados em posições conflitantes do ciclo econômico e influenciados diversamente
pela chamada globalização financeira?
Vejamos agora esta outra afirmação, quanto à
responsabilidade dos países âncora de, “numa função menos tangível, exercer o
papel de modelo”. Uma simples observação de ordem metodológica caberia a
respeito dessa função atribuída aos países âncora. Modelos, por definição, são fenômenos ex-post, e consistem geralmente numa racionalização generalizante
de experiências históricas bem sucedidas, a um ou outro título. A
caracterização é usualmente aplicada a processos mais ou menos rápidos de
crescimento econômico – ocorrendo ou não desenvolvimento social –, com certo
impacto para o entorno regional ou mesmo para a economia mundial. Tal se deu,
por exemplo, com o Japão e com a Alemanha, na fase de reconstrução do imediato
pós-guerra, entre os anos 1950 e início dos 60, fase apodada de “milagre”, ou
mesmo durante a maior parte das etapas de crescimento “normal” a partir daí.
São países dotados de inegável produtividade sistêmica, grandes competidores
nos fluxos internacionais de comércio de bens de alto valor agregado e que
realizaram, na maior parte do período, grandes saltos exportadores, com
afirmada estabilidade econômica e social.
O mesmo ocorreu, durante curto período, com o Brasil do
final dos anos 1960 e início dos 70, com taxas de crescimento em torno de 10%,
imediatamente classificado como sendo também um “milagre”. Milagres desse tipo
são mais ou menos passageiros, mas essas experiências se convertem, em todo
caso, em “modelos” de desenvolvimento, que os demais países tentam compreender,
imitar e reproduzir. Geralmente não dá certo, pois as condições que permitem
esse tipo de empreendimento bem sucedido são sempre únicas e originais, não sendo
reprodutíveis no plano histórico. De certa forma, o milagre japonês ocorreu,
pois foi o país que mais cresceu no século XX, até, talvez, a experiência
recente da China, absolutamente única no registro histórico, mas que não
conforma exatamente um modelo, para ninguém.
A China, aliás, não é e não pode ser modelo. Mesmo nas
experiências anteriores, de revolução cultural, por exemplo, ou de
industrialização stalinista, ela nunca foi modelo para nada, e nem poderia ser.
Seja dito, de passagem, que China e Índia foram, durante muito tempo, “modelos”
contrario sensu, isto é, de fracasso
econômico, de atraso, de miséria mais absoluta, de fome epidêmica e de
impossibilidade quase estrutural de desenvolvimento econômico e social.
Não sou eu quem o afirma, mas um distinguido economista,
aliás ganhador do prêmio Nobel, Gunnar Myrdal, não se sabe se por isso mesmo.
Ele começou uma imensa pesquisa sobre as raízes ou razões da miséria asiática
no final dos anos 1950, e nessa época a Ásia, sobretudo a Índia, era o próprio
sinônimo de pobreza absoluta, de miséria indizível. Seu livro The Asian Drama, publicado em 1968, um
imenso livro – três volumes, 2.284 páginas – era muito pessimista e trazia como
subtítulo, justamente, “An Inquiry into the Poverty of Nations”, o que pode ter
valido a Myrdal o prêmio Nobel em 1974.
Myrdal concluiu que quase todos os países da Ásia estavam
irremediavelmente condenados ao fracasso e ao desespero e que a pobreza, neles,
seria virtualmente impossível de ser erradicada. Em contraste, os países da
América Latina é que estariam quase certos de não apenas se desenvolver, como
de alcançar os mais desenvolvidos, tanto por suas instituições – próximas das
do Ocidente desenvolvido – como por seus economistas brilhantes. A história
pode ter poupado Myrdal, que morreu em 1987, mas não o Comitê do Nobel em
economia, da triste ironia de constatar a irresistível ascensão da Ásia a
patamares sempre crescentes de desenvolvimento e o persistente fracasso da América
Latina em erradicar a pobreza e a desigualdade.
Modelos são, assim, irremediavelmente falhos e
transitórios, e os países âncora, nesse particular, deveriam ser considerados
como modelos cum grano salis. Vejamos
mais uma vez a Alemanha, atualmente: ela é modelo de que, exatamente? De
relações trabalhistas, de sistema previdenciário, de luta contra o desemprego,
de responsabilidade fiscal, de dinamismo econômico, enfim? Talvez ela seja um
modelo de país-âncora, justamente, na medida em que ela consegue ancorar a
maior parte dos países da Europa central e oriental à economia da UE.
Do ponto de vista dos países adotados como exemplo de
países âncora, a lista parece adequada, levando-se em conta o tamanho “bruto”
desses países: China, Índia, Indonésia, Paquistão, Tailândia, Egito, Irã,
Arábia Saudita, Nigéria, África do Sul, Argentina, Brasil, México, Rússia e
Turquia. Alguns observadores, porém, poderiam questionar o status da Arábia
Saudita, do Irã ou do Paquistão como países âncora: afinal de contas, países
desse tipo deveriam entreter uma vasta rede de relações econômicas regionais,
com base numa economia diversificada – e não baseada em poucas commodities estratégicas – e
empreendedora, o que não parece ser o caso dos três mencionados, com a possível
exceção do Paquistão, mas ainda assim com qualificações. A Rússia, de certa
forma, constitui um “estranho no ninho”, tanto nesse grupo, como no próprio
G-8, do qual ela faz parte mais devido aos imponderáveis da geopolítica do que
em função das determinações da geoeconomia.
Mas, se os países âncora são definidos como “motores
regionais de crescimento e de reforma política”, inclusive com base no Business
Competitiveness Index, porque o grupo não inclui países médios ou mesmo
relativamente pequenos como Coréia do Sul ou Chile, ou ainda dois “territórios
aduaneiros” que também são potências financeiras, como Hong-Kong e Cingapura,
ou talvez até mesmo Taiwan? Em matéria de reforma política eles parecem ser
exemplares, e também constituem plataformas exportadoras muito importantes,
além de serem grandes centros de negócios e deterem muitas reservas em divisas
que podem, se alternarem do dólar para o euro, por exemplo, provocar algumas
graves dores de cabeça nas autoridades econômicas dos Estados Unidos.
Já o conceito de países emergentes engloba aqueles que
atingiram um nível de desenvolvimento humano acima da média, assim como atingiram
um grau de competitividade geral necessário para manter ou aumentar ainda mais
este nível e grau no futuro. De fato, o que a literatura econômica e a
sabedoria popular dos homens de negócios retém, quando se fala de emerging economies, é o fato de eles
estarem crescendo rapidamente, em taxas mais altas, em todo caso, dos que os
países mais avançados. O crescimento pode indicar, mas nem sempre confirma, uma
propensão ao aumento da competitividade, o que pode ser desmentido pelas
experiências soviética e chinesa de industrialização socialistas. No conceito
contemporâneo, são os países dotados de certa dimensão de mercado que crescem a
taxas que são, na média, o dobro daquelas registradas nos países mais
avançados: em geral acima de 4% ao ano, contra cerca de 2% nos países da
primeira industrialização.
O conceito do Dr. Andreas Stamm é peculiar, pois ele
privilegia o desenvolvimento humano e a existência de estruturas democráticas e
de sistemas políticos abertos. Com base em sua pesquisa, ele selecionou os
seguintes países como “países emergentes”: Chile, Costa Rica, Brasil, Uruguai,
México e Ilhas Maurício, assim como, com certo grau de reserva, Malásia e
Trinidad & Tobago. Poucos economistas ligados aos chamados mercados
emergentes colocariam a Costa Rica, o Uruguai, as Ilhas Maurício e Trinidad
& Tobago como países emergentes, pela simples razão que eles não costumam
freqüentar a lista dos mercados de investimento financeiro ou mesmo de investimento
direto (IED).
As razões para a exclusão da China, da Índia e da África do
Sul desse grupo – com base em suas estruturas duais e no grau elevado de exclusão social ou
étnica – e a condicionalidade a eles imposta para a obtenção desse estatuto
de fato unilateral – atingir um maior grau de coesão social interna – podem ser
questionadas em diversos méritos. Como eles são, de fato e de direito, na
pesquisa do Dr.Stamm, países âncora na acepção completa da palavra, parece
estranho que eles não consigam se qualificar como emergentes, ao mesmo título
que, por exemplo, o Brasil, país notoriamente na defensiva em matéria de coesão
social (ainda que não étnica) e dotado de estruturas “duais” praticamente
seculares.
Uma última observação meramente incidental neste capítulo
de países integrantes do grupo dos âncora é que, em sua seção 1.1 (definição de
países âncora), referência é feita ao G-20 criado em 1999, que remete ao foro
de estabilidade financeira global, seguindo-se logo em seguida menção à
conferência ministerial da OMC em Cancun (setembro de 2003), no contexto da
qual foi criado um outro G-20,
constituído exclusivamente por países desejosos de ver o desmantelamento do
sistema protecionista agrícola nos países desenvolvidos, o que inclui
igualmente o difícil problema dos subsídios (internos e à exportação). Ora, os
dois grupos não têm nada a ver um com o outro, pois seu membership, mandato, forma de organização e metodologia de trabalho
são totalmente diversos.
Uma outra observação, também de caráter incidental,
relativamente ao fato, evidenciado na seção 2.1.1 (e no Box 1), de que três dos
países âncoras – Brasil, Índia e África do Sul – constituíram um grupo de
diálogo, G-3 ou
IBAS. Tal fato aparece ao Prof. Stamm como um indicativo de que esses
países estão coordenando suas atividades globalmente. Um visão mais realista
dessa coordenação indicaria seu caráter basicamente político, e ad hoc, ou seja,
os investimentos políticos, diplomáticos e financeiros feitos pelos governos de
cada um desses países nessas tarefas de “coordenação” e de “cooperação” são
provavelmente superiores aos que emergiriam de uma relação “normal” de mercado,
isto é, deixada ao sabor dos fluxos reais de bens, serviços e investimentos
entre agentes econômicos privados desses países.
Em outros termos, há um grande esforço oficial para
preencher supostos espaços de cooperação econômica
entre esses países e, embora os agentes privados possam encontrar novas oportunidades
de negócios nesse âmbito, ele provavelmente não comporta o mesmo potencial de
intensificação de relações que pode haver nas zonas mais tradicionais de cooperação
e de intercâmbio, como podem ser os vínculos dos países membros do Mercosul
entre si, destes com os demais da América do Sul ou mesmo de todos eles com os
países da UE, por um lado, ou entre a África do Sul e seus parceiros da SACU,
por outro lado, ou ainda da Índia em seu contexto da Ásia do sul. É evidente,
por exemplo, que, em havendo certo investimento governamental, sempre se
poderão colher alguns frutos dessa cooperação, mas resta saber se a dinâmica do
relacionamento econômico entre esses três parceiros se sustenta com base apenas
nos intercâmbios não oficiais.
3. Visão
crítica das opções básicas da política alemã de desenvolvimento
Mas, a rationale
que estamos sendo convidados a seguir é a lista de possíveis recipiendários da
atenção política, cooperação técnica e coordenação em foros multilaterais por
parte da Alemanha, um país que pretende materializar na prática vários
objetivos do milênio (ODMs), utilizando-se, para isso, de algo como
“plataformas” de projeção bilateral para fins de realização de metas de
desenvolvimento global.
O objetivo é louvável, mas pode-se questionar sua eficácia
última e sua relação custo-benefício, uma vez que se trata de um processo de bilateralização de objetivos e
metas que deveriam ser implementados e atingidos por um leque mais vasto de
países, nas duas pontas do processo, o que talvez recomendasse uma abordagem
multilateral, ou pelo menos plurilateral, com base na UE e na OCDE.
A primeira pergunta que surge, a um observador de um
suposto país âncora e emergente, como pode ser o Brasil – ele mesmo um provedor
de cooperação técnica bilateral e recipiendário mínimo de programas de ajuda
direta, sendo mais um parceiro em projetos de cooperação técnica e científica
–, seria esta aqui: por que a Alemanha não coordena e compatibiliza seus
esforços com os demais países membros da UE? Porque ela não atua mediante o
Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE, por exemplo? E porque os demais
países membros da UE e os parceiros do CAD-OCDE não se coordenam
plurilateralmente para uma posterior atuação conjunta no âmbito do Ecosoc, do
Pnud, da Unctad ou de outras agências especializadas da ONU?
Se o objetivo, justamente, é o de contribuir para o
aperfeiçoamento da governança global, com o atingimento de forma concomitante,
dos ODMs, a metodologia de trabalho da Alemanha recomendaria que seu “Programa
de Ação 2015” trabalhasse em íntima cooperação com os demais países membros da
UE e com os demais parceiros do CAD-OCDE, além de coordenar esse trabalho de
cooperação técnica e financeira com as demais iniciativas tomadas no âmbito das
instituições de Bretton Woods, em primeiro lugar o Banco Mundial.
Em todo caso, parece extremamente auspicioso o fato de que
no âmbito da cooperação bilateral, a Alemanha esteja privilegiando, com o
conjunto de âncoras – e isso talvez devesse ser estendido a alguns dos
emergentes –, o chamado “Network International Technology Cooperation”
(Netzwerk Technologiekooperation”), envolvendo pequenas empresas e entidades
associativas do mundo empresarial alemão. Esse potencial de cooperação
científica e tecnológica (WTZ) é especialmente relevante para países como o
Brasil e o México, por acaso os dois países que são ao mesmo tempo, nessa
concepção do Dr. Stamm, países âncoras e países emergentes. Por outro lado,
dois dos países âncora mais relevantes, China e Índia, também são ativos
parceiros da política alemã de cooperação ao desenvolvimento e de fato são os
dois maiores recipiendários da ajuda oficial bilateral em termos de montantes
financeiros (300 milhões de dólares em 2000-2001, no caso da China, e 140
milhões para a Índia; o Brasil aparece num não muito distante sétimo lugar, com
62 milhões de dólares, depois da Indonésia, da Turquia, do Egito e da Rússia,
mas é o primeiro na América Latina, bem à frente do Chile e da Argentina, os
dois outros países melhor posicionados na região).
Um outro aspecto que merece ser destacado, do ponto de
vista de países como o Brasil, é a importância da cooperação em matéria de
proteção ambiental e de desenvolvimento sustentável, ao passo que países âncora
podem também se beneficiar de novas modalidades de cooperação financeira que
não aquelas fornecidas pelos instrumentos tradicionais de doações.
Finalmente, deve ser ressaltado que, ainda que as formas de
cooperação privilegiadas nas políticas bilaterais do governo alemão, como as de
cooperação científica e tecnológica e em projetos ambientais, sejam relevantes,
tanto para os grandes países âncora, como para alguns emergentes de menor
porte, nada
substitui a construção de uma ordem econômica e comercial aberta e includente. Desse
ponto de vista, toda a cooperação prestada pelos países europeus em geral, bem
como aquela proveniente dos Estados Unidos se vê neutralizada e de fato
revertida pelo potencial disruptivo de políticas altamente nefastas como a
política agrícola comum da União Européia, com sua panóplia protecionista e
subvencionista inaceitáveis.
A nocividade do protecionismo e do subvencionismo agrícola
europeu e americano não é apenas especialmente prejudicial para um país como o
Brasil, que de toda forma possui um grau de competitividade sistêmica que
permite por vezes superar essas barreiras absurdas que são contrárias aos
interesses, em primeiro lugar, dos próprios consumidores europeus. A PAC é
particularmente nefasta e altamente prejudicial aos países de menor
desenvolvimento relativo, em primeiro lugar os africanos. Esses países, que
sequer são considerados na análise do Dr. Stamm, por sua absoluta irrelevância
econômica e política no cenário internacional, são as principais vítimas desse
sistema absurdo, viciado e vicioso, que contradiz tudo o que os europeus dizem
pretender promover através da cooperação internacional e mesmo da ajuda e da
assistência humanitária.
Se a agenda política alemã desejar realmente inovar em
matéria de cooperação ao desenvolvimento, ela não precisa, necessariamente,
selecionar países âncoras ou países emergentes, uma vez que esse tipo de
concentração de esforços pode – ao contrário do que tende a ser privilegiado
nos foros principais de cooperação ao desenvolvimento, em primeiro lugar o
próprio CAD-OCDE e, numa segunda instância o PNUD, que são os países menores e
mais pobres – contribuir para aumentar a desigualdade de chances no plano
multilateral.
É evidente que, mesmo concentrando um grande número de
pobres, grandes países como China, Índia, Indonésia, Brasil, Turquia e Egito, e
a fortiori países como a Rússia e o
Chile, se fizerem as reformas internas necessárias e se lograrem inserir-se de
forma ainda mais afirmada na grande interdependência global dos circuitos
comerciais, financeiros e tecnológicos, podem eliminar grande parte da miséria
residual que ainda teima em persistir nos dia de hoje. Países menores, contudo,
em especial os africanos, não têm nenhuma chance nessa corrida por mercados e
oportunidades comerciais. Eles só podem competir na única área que suas
vantagens comparativas, naturais e humanas, oferecem um grau mínimo de competitividade
ricardiana nos mercados internacionais, que é a oferta de bens primários. Desse
ponto de vista, o que de melhor pode oferecer-lhes um país como a Alemanha é
seu esforço vigoroso em prol de uma reforma radical da absurda política
agrícola européia.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de junho de 2005
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