A Falta que o Liberalismo Faz
Carlos Pio
Política Democrática – Revista de Política e Cultura
Ano VI, n° 19, novembro de 2007
A palavra liberalismo foi convertida em ofensa no contexto político brasileiro. Liberal é sinônimo de "desumano", "intransigente", "arcaico", "aristocrata", "entreguista", "ingênuo", "desatualizado", a lista é enorme. Mas ouso dizer três coisas sobre o (mau) uso desta palavra no Brasil: (i) está errado; (ii) nos prejudica; e (iii) nos faz falta. Vejamos.
O liberalismo é um conceito usado para a definir uma doutrina tanto política como econômica. Na política, liberal é todo aquele que acredita no imperativo da liberdade individual como espinha dorsal das relações estado-sociedade. Neste sentido, no cerne do liberalismo encontram-se a democracia representativa e o governo republicano (aquele que presta contas à sociedade, está submetido à disputa eleitoral e trata todos os cidadãos sem distinção perante a lei).
Neste sentido estrito, anti-liberais são anti-democratas e/ou anti-republicanos, ou seja, aqueles que acreditam em alguma forma de organização da política que despreza os direitos civis e políticos fundamentais – à vida, independentemente de suas concepções políticas; a votar e ser votado, em eleições justas e competitivas; a ser tratado sem distinção pelas leis do país; à pluralidade de fontes de informação. Após o surgimento ou a adoção do liberalismo político, aristocratas/monarquistas, socialistas/comunistas, fascistas, caudilhos, e os defensores de todos os modelos autoritários de organização política foram desafiados a ajustar suas crenças ao novo padrão de relação estado-sociedade surgido na Inglaterra do século 17. Não há dúvidas de que, desde esses tempos, a história da humanidade atesta a superioridade ética, moral, social, cultural e econômica do liberalismo político.
No terreno da economia, liberalismo também significa a prevalência dos direitos individuais sobre qualquer forma de usurpação pelo Estado ou por outros indivíduos. A essência do argumento liberal é libertária: todo indivíduo é proprietário de sua vida – seu corpo, sua energia, sua força, sua inteligência e criatividade. Pode fazer dela o que bem entender. Mas o direito de cada um termina onde começam os direitos dos demais. Tudo é possível, desde que tudo seja possível para todos. A igualdade perante a lei – que vem da doutrina política liberal – encontra, na economia, uma aplicação fundamental: a defesa intransigente da propriedade privada, quer sobre bens materiais (terra, dinheiro) quer sobre bens imateriais (vida, trabalho, criatividade). Ninguém pode se apropriar do trabalho de outro sem o seu consentimento. Daí as relações contratuais (salários) substituírem relações de lealdade (servidão) e a escravidão.
Aliada à defesa da liberdade individual na forma de propriedade (material e imaterial), o liberalismo econômico traz, em sua essência, o princípio da igualdade de oportunidades, promovido no plano individual e coletivo. Neste último, o estado teria o papel essencial de prover uma redistribuição das riquezas dos indivíduos mais afortunados para prover melhores condições aos menos pobres, na forma de bens coletivos capazes de alavancar suas chances de gerar mais riqueza no futuro – educação e saúde sendo os mais importantes. No entanto, a fim de desrespeitar o nínimo possível o princípio da liberdade/propriedade individual, as funções do estado para promover a igualdade de oportunidades deveria ser realmente limitada, afinal seu financiamento depende de impostos, uma usurpação da propriedade privada.
A história da humanidade também demonstra a superioridade deste sistema sobre todos os demais que foram pensados para suplantá-lo, razão pela qual marxistas/comunistas, nacionalistas, mercantilistas e os defensores de concepções alternativas de ordem econômica tiveram que se curvar ao capitalismo.
Assim, em sua essência, liberalismo político e econômico são complementares – a despeito da existência de tensões inerentes ao pleno exercício das liberdades econômicas e políticas, como ja salientado. Além disso, são responsáveis pela consistente melhoria das condições (materiais e imateriais) de vida em todo o globo.
Por que o uso inapropriado no Brasil do termo "liberalismo" – como sinônimo de "arcaico", "desumano" – haveria de nos prejudicar e fazer falta? Primeiro, porque obscurece o terreno da disputa política entre os que são favoráveis à adoção e/ou consolidação dos direitos individuais contra as usurpações feitas pelo estado e/ou grupos sociais. Afinal, se não assumirmos nossa essência liberal, quem vai defender as rendas dos cidadãos contra a volição gastadora dos políticos? A contenção da fúria arrecadatória dos governantes (impostos altos), da tendência ao endividamento crescente do estado (que implica em mais impostos no futuro e juros altos no presente), do recurso ao financiamento inflacionário dos gastos públicos (que impõe a perda de valor da poupança privada) e mesmo da corrupção requer a existência de uma sólida armadura liberal na sociedade e nos partidos. Da mesma forma, sem os liberais, quem vai se interpor à ação de grupos de invasores de terras públicas e privadas? Quem vai defender políticas econômicas, sociais e de desenvolvimento que focalizem prioritariamente a oferta de bens coletivos que aumentem, diretamente, as chances de progresso próprio dos mais pobres? ou seja, quem vai privilegiar políticas em prol da igualdade de oportunidade (educacção básica saúde pública de qualidade, programas de transferência de renda para os pobres em troca de qualificação) em detrimento de políticas que transferem rendas para os mais ricos (industriais, tecnológicas, comerciais)?
O debate público brasileiro é marcado pela prevalência de um moderado consenso liberal no plano político, em que são poucos os que expressam claramente suas tendências autoritárias (hoje quase esclusivamente concentradas nos partidos de esquerda) e pelo confronto entre diferentes tendências anti-liberais (de esquerda, de centro-esquerda e de direita) no terreno econômico. No primeiro caso, falta uma corrente política intransigentemente democrática e republicana que só o liberalismo oferece de forma consistente. No segundo, falta um projeto de desenvolvimento capitalista moderno que leve em conta as necessidades de viabilizar investimentos públicos para a ampliação e a melhoria da qualidade dos programas de igualdade de oportunida. Sem eles, seremos sempre atrasados, arcaicos, desumanos... mas nunca liberais!
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