O fundamentalismo está na própria Sharī'ah
Precisamos tratar o movimento fundamentalista, não como um movimento religiosamente cismático em relação à ortodoxia (isto é, à Sharī'ah), mas qual é realmente, isto é, como movimento que se coloca no coração da Sharī'ah, da forma como esta foi fixada e dogmatizada até o quinto século da Hégira, e que vive, desde então, estagnada na repetição vazia e sem alma de seu próprio passado. [...]
A diferença entre o Islã ortodoxo, oficial, legal, aparentemente "religioso" e piedoso, e o Islã agressivo, violento, materialista e completamente politizado dos fundamentalistas, de fato não vai além do comportamento político de um e do outro. As duas formas se baseiam nas mesmas referencias teológicas, partilham a mesma percepção (e indiferença) cultural, propõem ou defendem o mesmo projeto de sociedade. A diferença é que um está no poder, e tenta manter o status quo, o outro o reivindica, e brada por mudanças. [...]
O fundamentalismo não irá desaparecer da cena do mundo, enquanto o Islã ortodoxo (sunita ou xiita, não importa) não passar por uma revisão crítica, que ponha em evidência seus mecanismos caducos, ultrapassados, parados no tempo, e amarrados às estruturas de poder atuais. Em seu último livro, A doença do Islã, A. Meddeb analiza o fundamentalismo como "um Islã magro e pobre, que opera contra o próprio Islã enquanto civilização e cultura". Esta mesma análise poderia ser dilatada até afirmar que o mesmo papel negativo coube historicamente à ortodoxia esclerosante dos 'ulamā' e dos fuqahā' que moldou a Sharī'ah desde o quinto século da Hégira, aquela mesma que assumiu uma atitude de inquisição e prendeu ou exilou mentes iluminadas como Ibn Rūshd (Averroés) ou Ibn Tufayl. Para dar nome aos bois, podemos citar o ideólogo hanbalita Ibn Taymia, o grande inquisidor Ibn al-Jawzi (século 12) ou, mais perto de nós, Hassan al-Banna, fundador dos Irmãos Muçulmanos, e al-Mawdudi, que difundiu o fundamentalismo no continente indiano. [...] Este fundamentalismo latente na Sharī'ah e por conseqüência em boa parte da Ummah conseguiu até agora abortar qualquer tentativa de elaboração de uma "mediação" entre a fé e as exigências da modernidade (como aquela operada no Cristianismo), unicamente pela força da pressão objetiva que exerce na área social e cultural, sem nem entrar no mérito religioso. [...]
A ortodoxia e a própria Sharī'ah, da forma como ela é teorizada e aplicada atualmente, são o terreno de cultivo do fundamentalismo; isto se traduz numa aliança objetiva, política e cultural, entre uma e o outro, aliança tácita, não declarada, ou até negada.
Para concluir, o fundamentalismo é a expressão atual, política e ideologicamente ofensiva, contestadora, retrograda e anti-moderna, da ortodoxia que controla a Sharī'ah.
Latifa Lakhdar
Professora de Ciências Humanas e sociais na universidade de Tunis.
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