Adam Smith desembarca em Brasília
Rolf Kuntz*
O Estado de São Paulo, Quinta-feira, 30 agosto de 2007
Sujeitinho vivo era aquele escocês, o tal Adam Smith. Ele notou, há mais de 200 anos, que os ganhos de produtividade acumulados durante séculos eram explicáveis, na maior parte, pela divisão do trabalho. Ele achou essa idéia tão importante que resolveu apresentá-la no primeiro capítulo de um grande livro a respeito da riqueza das nações. Essa idéia não era exatamente uma novidade. Um amigo mais velho de Smith, chamado David Hume, havia descrito num ensaio econômico o crescimento de uma economia a partir da diferenciação entre atividades agrícolas e não agrícolas. Seu parceiro aprofundou a análise. Essa noção foi incorporada pelo senso comum há muito tempo, mas tem sido rejeitada por integrantes do governo brasileiro. Parece, agora, estar ficando popular pelo menos no Palácio do Planalto. A Presidência divulgou, ontem, dados sobre a melhora das condições de vida dos brasileiros. A desigualdade e a miséria têm diminuído. Tomando-se como referência o salário mínimo, as parcelas de brasileiros pobres e extremamente pobres passaram, entre 1990 e 2005, de 52% para 38% e de 28% para 16%, respectivamente. Ainda há fome e desnutrição, segundo o documento, mas esse desafio resulta, sobretudo, 'do baixo poder aquisitivo de milhões de brasileiros'. Os primeiros dados eram mais ou menos conhecidos e já haviam sido examinados tanto pelo IBGE quanto pelo Ipea. A grande novidade, em termos políticos, é a aceitação, no Palácio do Planalto, da idéia de que a fome, no Brasil, é um problema de falta de dinheiro. Trocando em miúdos: há comida suficiente para quem pode comprá-la, seja qual for sua ocupação. Quem tem uma atividade razoavelmente rentável, seja como assalariado ou como trabalhador por conta própria, é capaz de encher seu prato e os de seus dependentes. Quando assumiu o governo pela primeira vez, há pouco mais de cinco anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda parecia acreditar em duas lendas da esquerda: a produção de alimentos era insuficiente para a exportação e para o abastecimento do mercado interno e muitos brasileiros comiam menos que o necessário porque não tinham terra para plantar. Ele parecia não haver notado, em sua breve experiência como operário, que trabalhadores da indústria conseguiam comer sem plantar, desde que recebessem um salário tolerável, e que milhões de brasileiros podiam ter carros e geladeiras mesmo sem ser donos de fábricas de automóveis e de eletrodomésticos. Se tivesse considerado o assunto com um pouco mais atenção aos fatos e menos aos incompetentes que o cercavam, poderia ter percebido outro dado notável: quanto mais a agropecuária se mostrava capaz de exportar, mais baratos se tornavam, a longo prazo, os produtos vendidos no mercado interno. O mesmo ocorria com os bens industriais. Foi assim que o frango, um alimento de luxo quando era produzido artesanalmente, se tornou uma fonte barata de proteína. Mas isso ocorreu também com alimentos não exportados. As crises de abastecimento de feijão deixaram de ocorrer quando se combinaram dois fatores muito importantes, a mudança tecnológica e o fim dos controles de preços. Na turma do presidente Lula havia economistas que durante décadas se haviam dedicado ao estudo da famigerada 'questão agrária'. Cuidaram tanto desse tema que deixaram de notar o que ocorria na agropecuária brasileira - ou, mais amplamente, no agronegócio. No caso desses acadêmicos, a especialização foi contraproducente, porque resultou mais de antolhos ideológicos do que de um genuíno esforço de investigação. Os principais ganhos de eficiência foram obtidos pelos produtores que se modernizaram e passaram a trabalhar levando em conta o mercado - como fornecedores de indústrias ou como competidores diretos no comércio de produtos básicos. Essa foi a experiência tanto da agropecuária empresarial quanto das unidades familiares mais permeáveis à modernização. A distinção relevante, nesse caso, não é entre a propriedade patronal e a familiar. Comida barata, boa e vendida em condições de competitividade foi o que fez diminuir o peso da alimentação no orçamento familiar dos brasileiros. O resto é um besteirol que o governo deveria esquecer. Seu problema é criar oportunidades de empregos produtivos, tomando o cuidado de não atrapalhar a modernização do setor rural. O governo do presidente Lula ainda tem muita gente fascinada pela agricultura de pés descalços, enxada enferrujada e galinha ciscando no terreiro.
*Rolf Kuntz é jornalista
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