segunda-feira, dezembro 11, 2006

167) Os novos demagogos...

Os novos demagogos
Niall Ferguson
O Estado de São Paulo, 10/12/2006

Eles surgiram com a democracia, na Grécia; se fortaleceram no entre-guerras, quando Hitler era o expoente. Agora, eles ressurgem em países como Irã e Venezuela, e com um trunfo: petróleo

'Estamos enfrentando o demônio - e vamos derrotá-lo de lavada !' O presidente venezuelano, Hugo Chávez, voltou na semana retrasada a demonizar seu arquiinimigo diante de uma multidão de seguidores em Caracas. Esqueçam seu oponente na eleição presidencial de domingo passado - não era este o 'demônio' que ele tinha em mente. Seguindo o exemplo de outro grande demagogo latino-americano, Fidel Castro, Chávez dirige seu furor retórico contra os Estados Unidos e o presidente George W. Bush.

No mundo todo, os demagogos estão de volta, gritando seus slogans inflamados. Na América Latina, o boliviano Evo Morales e o mexicano Andrés Manuel López Obrador uniram-se a Chávez para cobrir de infâmia os diabólicos gringos imperialistas. No Oriente Médio, o iraniano Mahmud Ahmadinejad e Hassan Nasrallah, do Hezbollah, denunciam os cruzados ianques demoníacos e seus confederados sionistas com igual fervor. Outros têm alvos diferentes, mas sua linguagem não é menos incendiária. Na Alemanha, Udo Pastoers, do xenófobo Partido Democrático Nacional, venceu uma e leição regional depois de chamar a Europa de 'espaço cultural para brancos'. Na África do Sul, o ex-vice-presidente Jacob Zuma canta 'Mshini Wami', um hino antiapartheid que inclui o verso 'Tragam-me minha metralhadora'.

Sua retórica pode parecer exagerada, mas ninguém deveria subestimar a ameaça que esses novos demagogos representam - especialmente para os Estados Unidos. Irrelevantes na América Latina, impotentes no Oriente Médio, ignorados na África e isolados na Europa, os EUA podem estar diante de sua maior crise de política externa desde o fim dos anos 70, quando a revolução iraniana e a invasão soviética do Afeganistão sacudiram a presidência de Jimmy Carter. E esta nova geração de agitadores das massas aproveita o momento. Quanto mais impopulares os Estados Unidos se tornam, mais fácil é para eles ganhar votos xingando o Tio Sam.

Já vimos isso antes - e não foi agradável. Quando um presidente eleito manifesta ceticismo sobre o Holocausto e ameaça varrer do mapa o Estado de Israel, não é exagero retórico fazer comparações com aquele que foi o mais desastroso dos demagogos, Adolf Hitler. Como Hitler, Ahmadinejad sabe que o anti-semitismo é um dos trunfos na manga do demagogo, um método testado e comprovado de inspirar o ódio e a suspeita em relação aos outros - e de permanecer no poder. Hitler também expressava com freqüência seu desprezo pelos Estados Unidos, que rejeitava como 'um país decaído', racial e culturalmente inferior à Alemanha - e, é claro, governado por judeus. Para uma reprise do tema, leiam a última carta de Ahmadinejad ao 'povo americano', divulgada na semana retrasada.

E as condições para o surgimento de demagogos verdadeiramente perigosos são hoje quase ideais.

Os meios clássicos para a cultura da demagogia são a guerra e a revolução. Não é coincidência o fato de Ahmadinejad ser um veterano da Revolução Islâmica de 1979 e da guerra com o Iraque. Num novo estado de espírito 'realista', os Estados Unidos agora gostariam que o Irã ajudasse a evitar que seu vizinho Iraque mergulhe na guerra civil. Doce ilusão. Ahmadinejad aposta na hegemonia iraniana no Oriente Médio. A última coisa de que ele precisa é ser visto ajudando o 'Grande Satã'.

A grave volatilidade econômica também pode criar um apetite popular pela retórica incendiária. É significativo que o crescimento econômico dos últimos 20 anos tenha sido muito mais variável na América Latina e no Oriente Médio do que nos Estados Unidos. Quando afligidas por variações turbulentas da renda, dos preços e da segurança no trabalho, as pessoas são mais propensas a perder a confiança no status quo político e dar ouvidos às palavras de líderes messiânicos como Chávez e Morales.

Também é relevante o nível da renda média. Hoje, as rendas per capita dos países mais pobres da América Latina e d a maior parte do Oriente Médio são similares às da Europa Central entre as guerras (isto é importante, pois estudos indicam que as chances de sobrevivência de uma democracia são muito mais altas quando a renda per capita está acima de US$ 6 mil). Os índices de analfabetismo provavelmente são mais altos do que eram na Europa Central. Os de urbanização certamente são mais altos. É um ambiente ideal para a demagogia: massas aprisionadas entre a pobreza sufocante de sociedades agrárias e a afluência dos países ricos de hoje, vivendo em cidades superlotadas com escolas péssimas. Em tais condições, o centro raramente se mantém por muito tempo. Logo surge um orador dissidente cobrindo-se de regalias presidenciais.

Isto ajuda a explicar por que tantos demagogos subiram ao poder na Europa Central e Oriental nos anos 20 e 30. Hitler foi apenas um de um bando de ditadores que combinaram retórica inflamada com camisas coloridas, botas lustrosas e um completo desprezo pel as liberdades civis, especialmente aquelas das minorias étnicas. E este é o ponto crítico.

PRIMEIRA VÍTIMA

A lição histórica é que a liberdade pessoal torna-se com muita freqüência a primeira vítima do demagogo, especialmente quando o sentimento popular é lançado contra algum inimigo interno ou externo.

A palavra grega antiga demagogós significa apenas um porta-voz do povo ou, mais pejorativamente, um líder da ralé. O uso moderno implica talentos retóricos e a capacidade de incitar uma audiência, usualmente com a promessa de medidas radicais. É aos impulsos mais básicos do público que um demagogo normalmente apela - daí a tendência de identificar e denunciar inimigos do povo.

A demagogia é tão antiga quanto a democracia, mas nem todas as democracias produzem demagogos. O mais conhecido dos demagogos da Grécia antiga foi Alcibíades, que vendeu aos atenienses a (má) idéia de conquistar a Sicília. A re pública romana produziu Marco Túlio Cícero, cujas Filípicas devastadoras procuraram deter as ambições de Marco Antônio, amigo de Júlio César e amante de Cleópatra (Cícero qualificava Antônio como um 'louco' que queria um 'banho de sangue' em Roma).

O termo ganhou um novo significado no século 17. Se a Guerra Civil inglesa teve seu demagogo, foi o parlamentar puritano John Pym, o crítico mais veemente de Charles I na Câmara dos Comuns - embora quem emergiu como ditador tenha sido o franco e pragmático Oliver Cromwell.

Nem todas as revoluções produzem demagogos. A Revolução Americana deve mais a redatores de leis e soldados amadores que a mestres da retórica.

Na França, contudo, o discurso imoderado foi a essência da revolução.

Demagogos como Georges Danton - apelidado de 'Júpiter, o trovejante' e um dos líderes do Terror - deram má fama à retórica incendiária durante quase um século.

Dos anos 1880 em di ante, a ampliação dos direitos para a inclusão dos eleitores mais pobres e menos educados somou-se a um grande declínio econômico para produzir um novo tipo de demagogo: não tanto um fomentador da guerra ou um revolucionário quanto um conquistador de votos. O momento fundamental foi a campanha de William Ewart Gladstone em Midlothian, em 1878, quando o líder liberal britânico fez uma série de discursos inspiradores dirigidos não só aos eleitores locais, mas à nação.

No entanto, à medida que os anos prósperos da era industrial deram lugar à deflação e à depressão, os demagogos voltaram-se contra o liberalismo. Tanto na esquerda quanto na direita, dos socialistas aos anti-semitas, os políticos radicais descobriram que a melhor maneira de mobilizar novos eleitores era culpar inimigos do povo pela volatilidade econômica. Na Áustria, o anti-semita Karl Lueger culpou os judeus supostamente todo-poderosos de Viena pelos problemas da pequena burguesia vien ense depois do colapso do mercado de ações de 1873. Na Rússia, socialistas radicais como Leon Trotski fulminaram com igual veemência o czarismo e o capitalismo. Em todos os casos, o demagogo apontou um dedo acusador, culpando este ou aquele grupo pelos sofrimentos das massas. O sucesso significava poder para o demagogo e perseguição para seus alvos.

Não surpreende, portanto, que a época entre as duas guerras mundiais tenha sido o auge da política demagógica. A partir de 1914, o mundo foi varrido primeiro pela guerra, depois por revoluções e finalmente pela pior depressão da história econômica. Hitler foi, é claro, o arquidemagogo, um monstro cheio de ódio e um falso Messias que prometeu ao povo alemão a redenção depois de anos de humilhação. Mas Benito Mussolini também se pavoneou e inflamou na Itália; Oswald Mosley, o socialista renegado que fundou a União Britânica dos Fascistas, tentou os mesmos truques na Inglaterra. A Europa Centra l ressoou com as diatribes de uma horda de incitadores da plebe. Na Polônia, o líder democrático nacional Roman Dmowski profetizou um 'pogrom internacional dos judeus'. Na Romênia, o fundador da Legião de São Miguel Arcanjo, Corneliu Codreanu, prometeu 'destruir os judeus antes que eles nos destruam'. Hitler estava longe de ser o único demagogo dos anos 30 a transformar os judeus em bodes expiatórios. Quando levou a Europa à guerra, ele encontrou colaboradores à disposição em todo o continente.

A boa notícia sobre os demagogos é que eles freqüentemente acham mais difícil cumprir promessas eleitorais que fazer discursos eleitorais. Em setembro, o vice de Morales, Álvaro García Linera, conclamou o povo indígena da Bolívia a defender o governo do presidente 'com seu peito, com sua mão, com seu Mauser' em resposta à oposição na cidade de Santa Cruz, no leste do país. Tal linguagem esconde a realidade de que o governo de Morales foi forçado a mod ificar seu plano de nacionalização do setor energético (embora tenha conseguido, na semana retrasada, a aprovação de uma lei radical de reforma agrária). A instabilidade e o atraso econômicos podem levar os demagogos ao poder. Mas eles também os restringem assim que chegam lá.

Ainda assim, o fato de Chávez e Ahmadinejad controlarem 6% e 11% das reservas de petróleo mundiais comprovadas deve nos fazer pensar. Talvez a maior fraqueza estratégica dos demagogos do período entre as guerras fosse sua falta de combustível. Esta foi, de fato, uma de suas motivações para a conquista daquilo que Hitler chamava de 'espaço vital' nos países vizinhos.

Os demagogos de hoje, em contraste, governam países ricos em petróleo.

Isso pode reduzir sua necessidade de adquirir território. No entanto, com os preços do petróleo acima de US$ 60 o barril, isso também lhes garante grandes pagamentos de países importadores de petróleo, como os Estados Unido s, dando-lhes os meios para apoiar suas palavras com ações. E não é preciso ter grande conhecimento histórico para saber que discurso inflamado e petróleo são uma combinação potencialmente explosiva.
TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA

*Niall Ferguson é professor de história da Universidade de Harvard e autor de 'The War of the World: Twentieth-Century Conflict and the Descent of the West' (A guerra do mundo: o conflito no século 20 e o declínio do Ocidente). Escreveu este artigo para 'The Washington Post

Nenhum comentário: