AS ESQUERDAS E O MERCADO
por Paulo G. M. de Moura, cientista político
Blog Diego Casagrande, 11 de dezembro 2006
Existem dois paradigmas econômicos básicos. Por um lado, o paradigma liberal/capitalista, que tem como vértice central o princípio da liberdade de mercado e, conseqüentemente, a não intromissão do Estado nos assuntos econômicos de caráter privado; e, por outro, o paradigma marxista/socialista, que preconiza o planejamento estatal e o comando centralizado e planejado sobre as atividades econômicas e, no limite, a impossibilidade de qualquer atividade econômica de caráter privado.
Considero a experiência da social-democracia um modelo variante do paradigma liberal, visto que pressupõe a liberdade de mercado, embora regulada pelo Estado mediante o recurso ao controle ou à intervenção estatal sobre segmentos das atividades de mercado, ou ainda, mediante a atuação do Estado como empreendedor monopolista ou competidor com as atividades econômicas privadas. Sob esse ponto de vista, portanto, a própria emergência da Social-Democracia na cena política do século XX é aqui interpretada como um indicador da correlação de forças entre os dois paradigmas (liberal e marxista), que desde o final do século XIX disputavam a hegemonia política e ideológica sobre a sociedade contemporânea. Os marxistas começaram a perder essa briga bem mais cedo do parece.
O surgimento da Social-Democracia como corrente política no final do século XIX e primeira metade do século XX é expressão do abandono da perspectiva revolucionária preconizada por Marx e da rendição da burocracia operária e sindical, notadamente na Alemanha e depois em outros países europeus, ao capitalismo. Na prática, esse fenômeno representou um processo de cooptação e integração social e econômica das bases sociais do movimento socialista mundial, ao paradigma capitalista. Ainda que aceitando diferentes graus de ingerência do Estado na economia, a evolução do pensamento econômico da Social-Democracia no mundo contemporâneo revela muito mais um processo contínuo de concessão das esquerdas ao pensamento liberal em matéria econômica e política do que seu inverso.
Esse processo de caráter político-ideológico encontrou correspondência no âmbito social, através de um mecanismo lento e gradual de concessão de benefícios econômicos (melhorias salariais e nas condições de trabalho, participação nos lucros das empresas, acesso a postos de direção das empresas, seguro desemprego, previdência social, etc.), que aos poucos criou condições para a integração das bases sociais dos sindicatos e partidos operários à lógica do sistema capitalista e da economia de mercado. Como conseqüência disso, arrefeceu-se o ímpeto revolucionário do proletariado, classe social que, na teoria marxista, deveria ser agente ativo da transformação do capitalismo em direção ao socialismo.
Não obstante a ocorrência desse processo econômico, social e político, especialmente na Europa no decorrer da primeira metade do século XX, o socialismo de inspiração marxista também avançou globalmente. Esse avanço político do paradigma socialista, no entanto, somente ocorreu, inclusive contra o que pensava Marx, na Rússia, um país que passou do feudalismo ao socialismo praticamente sem “escala”. Sua expansão posterior, com exceção talvez da Hungria, resultou da ocupação da Europa do Leste pelo Exército Vermelho, durante e após a Segunda Guerra Mundial. Somente Vietnã, Coréia, Cuba, China 50 e a Nicarágua reproduziram processos revolucionários de cunho socialista após a Revolução Russa de 1917. Nenhuma dessas revoluções aconteceu segundo o manual previsto por Marx. Todos esses casos têm destino político e econômico conhecido.
Por essa razão, fica extremamente difícil (para quem o pretenda) defender a idéia de que a expansão do paradigma socialista sobre quase dois terços do território mundial do início do século XX até a década de 80, decorra do sucesso e da superioridade qualitativa (em termos de produtividade e competitividade) desse sistema econômico e desse regime político sobre o sistema capitalista de livre mercado econômico e político. Pelo contrário, o que o mundo testemunhou, foi a progressiva burocratização e atrofia do socialismo como sistema social, político e econômico; sua integração gradual e progressiva ao sistema de mercado no âmbito mundial; sua perda de competitividade na corrida pelo desenvolvimento científico e tecnológico e pela produção dos novos conhecimentos (em termos gerais e em relação aos conhecimentos aplicados ao gerenciamento da produção); a corrosão social e econômica das condições de vida da população dos países em que vigorava o paradigma da economia de comando estatal centralizado; e por fim, sua derrota política na virada da década de oitenta para a década de noventa do século XX, tendo como ícones maiores a desintegração da URSS e a queda do Muro de Berlim.
Interessante observar que, embora a burocratização e decadência do socialismo realmente existente tenham gerado dissidências políticas em relação ao modelo implantado na URSS desde cedo, sendo o trotskismo surgido já na década de vinte sua expressão pioneira e mais persistente, nenhuma das correntes políticas dissidentes do socialismo real divergiu do paradigma marxista no que diz respeito à sua orientação para a economia de comando estatal centralizado. As tentativas de buscar formulações alternativas a esse paradigma, tanto no campo do socialismo oficialista como no campo dissidente, sempre foram execradas e caracterizadas como desvios revisionistas e, ao serem dogmaticamente rotuladas, tiveram seus formuladores desqualificados (senão severamente punidos e até assassinados pelos governos comunistas) como defensores dessas posições no pensamento econômico de esquerda. Dessa forma, ainda que a dissidência seja uma marca constante entre as esquerdas no que diz respeito à condução dos rumos políticos do movimento em direção ao socialismo teoricamente almejado, em matéria econômica, o debate jamais cogitou qualquer tipo de questionamento aos dogmas da ortodoxia marxista.
Ambas as partes, oficialista e dissidente, acusavam-se mutuamente de trair a classe operária e os princípios básicos da teoria marxista no que diz respeito aos seus aspectos políticos. Para os dois lados, no entanto, questionar o paradigma do controle total do Estado sobre a economia e aceitar qualquer formulação de teorias econômicas que admitissem um modelo de socialismo compatível com a liberdade de mercado era algo visto, com razão, como heresia.
Somente depois do fim a URSS, quando a decadência econômica, social e política do socialismo realmente existente se revelou aguda e quando a perda de capacidade competitiva desse sistema em relação às economias capitalistas ocidentais se tornou demasiado evidente, surgiram tentativas insipientes no sentido de buscar alternativas de compatibilização entre socialismo e mercado.
Embora a experiência do socialismo realmente existente tenha produzido um movimento de contestação aos regimes implantados em algumas partes do mundo sob essa bandeira, e com eles tenham surgido formulações críticas a aspectos políticos desses regimes (denúncia da burocratização, do autoritarismo, etc.), as tentativas de intelectuais de esquerda no sentido de compatibilizar socialismo e mercado são bastante recentes e a produção teórica nesse campo é igualmente escassa. Um dos autores contemporâneos que se dedicou a revisar a bibliografia existente e a sistematizar conhecimentos nesse campo, foi Alec Nove. Nove assim define seu conceito de socialismo possível: “(. . .) por possível ou factível quero dizer um estado de coisas que possa existir na maior parte do mundo desenvolvido, no decorrer da vida de uma criança já concebida, sem termos de fazer ou aceitar suposições plausíveis ou artificiais acerca da sociedade, dos seres humanos e da economia. Isso significa sem dúvida, excluir a abundância (no sentido de que a oferta se equilibra com a demanda a preço zero, desaparece o custo oportunidade). Naturalmente supomos a existência do Estado; na verdade, ele terá importantes funções políticas e econômicas. O Estado não pode ser comandado, de maneira que funcione, por todos os cidadãos, o que significa que haverá divisão entre governantes e governados. Ainda, navios terão capitães, jornais terão editores, fábricas terão gerentes, escritórios de planificação terão chefes, de modo que haverá abuso de poder e que, portanto, será preciso criar instituições que minimizem este perigo.“
Do ponto de vista político, ao contrário do ocorrido no socialismo real, Nove reconhece a necessidade da existência do pluralismo partidário, a realização de eleições periódicas, e a existência de um parlamento. Do ponto de vista econômico são parcas as tentativas de formular um modelo de socialismo de mercado. Os poucos registros na história, de iniciativas dos autores clássicos do marxismo no sentido de buscar formular conhecimentos novos sobre o funcionamento da economia sob o regime socialista, quando existem, são de pouca relevância, senão equivocados. O próprio Marx não só jamais formulou qualquer descrição sistemática sobre a sociedade comunista em funcionamento, como considerava tolas, ineficientes e reacionárias quaisquer tentativas nesse sentido. Marx nunca apresentou uma visão coerente sobre como o capitalismo chegaria ao fim. Nunca avançou uma vírgula sequer, na direção de afirmar se ele iria despedaçar-se repentinamente e parar de funcionar de uma hora para outra; se mergulharia em um nível de crise crônica como Kautski acreditou por muitos anos, ou se a revolução socialista iria bloquear e reverter essa crise após ela atingir seu nível crônico mais crítico, como pensava Rosa Luxemburgo.
Como conseqüência, a definição de socialismo, tal como se tornou predominante entre as esquerdas sempre trouxe como pressuposto implícito o fato de que os problemas econômicos não existiriam sob a vigência do socialismo. A pressuposição da abundância de recursos a serem distribuídos na sociedade - inerente às teorias socialistas - sugere a possibilidade da inexistência dos custos de oportunidade, implícitas à realidade do mercado, visto que, a teoria socialista entende que sob essas circunstâncias não haveria escolhas mutuamente exclusivas a serem feitas pelos integrantes dessa sociedade.
O homem da sociedade socialista, idealizado pela teoria, seria racional, intelectualmente brilhante, desprovido das ambições e motivações características da sociedade de mercado, ou dos desvios de conduta ética e moral que tentam a alma humana. Um santo. O “novo homem” de que falava Guevara e fala Frei Beto. Tendo suas necessidades básicas satisfeitas, dispensaria a necessidade de qualquer tipo de incentivo, o que faria com que desaparecem os problemas relativos ao conflito de interesses, à disciplina e à motivação. Na medida em que os membros da sociedade socialista teriam condições de saber com antecedência o que precisa ser produzido para satisfazer as necessidades de todos os indivíduos a qualquer tempo e sob quaisquer circunstâncias, assim como a maneira correta de produzir, distribuir e utilizar todos os produtos, eliminar-se-ia a necessidade de verificação posterior da eficácia e equanimidade do processo de distribuição. Dessa forma, o vínculo indireto entre o valor de uso e o valor de troca, que no sistema capitalista realiza-se de forma desigual no mercado, poderia ser substituído por decisões humanas diretas e conscientes sobre a produção e o uso planejados pelo Estado.
Do ponto de vista econômico, desapareceria a divisão social do trabalho e a desigualdade social característica da sociedade capitalista e, do ponto de vista político, desapareceria a clássica divisão entre governantes e governados, visto que todos seriam governantes. Sem interesses competitivos e conflitantes, extinguir-se-iam quaisquer direitos; a necessidade das leis, regras, e de mecanismos e de instituições que regulam a vida humana em sociedade, como o próprio Estado. Seria o fim da política. Governar resumir-se-ia a auto-administração das coisas. Na formulação de Bukharin: “A economia política é uma ciência da economia nacional não-organizada. Somente numa sociedade onde a produção tem um caráter anárquico é que as leis da vida social parecem ‘naturais’, ‘espontâneas’, independentes da vontade dos indivíduos e grupos, leis que agem com a cega necessidade da lei da gravidade. Na verdade, ao tratar de uma economia nacional organizada, todos os ‘problemas’ básicos da economia política desaparecem. Aqui as relações entre os homens não são mais expressas como ‘relações entre coisas’, pois aqui a economia não é regulada pelas forças cegas do mercado e da concorrência, mas pelo plano conscientemente executado. O fim da sociedade capitalista, da mercadoria, significa o fim da economia política.”
Opiniões semelhantes, são encontradas também, por exemplo, em formulações de Preobrajenski durante as discussões com economistas como Skovortsov-Stepanov na década de vinte. De maneira geral, os economistas soviéticos dessa época reconheciam que a lei do valor sobrevivia na URSS no período inicial da revolução (vigência da Nova Política Econômica – NEP), devido à sobrevivência da propriedade privada e da relação mercantil com o campesinato. Esse tipo de relação, no entanto, por definição, tenderia a ser eliminada com a evolução do socialismo, quando a economia política seria substituída pela administração científica ou pela ciência da produção socialmente organizada, segundo a terminologia então empregada. O próprio Lênin, já em 1920, comentando escritos de Bukharin (em notas marginais a Economics of the transition period), já apontava para a insuficiência e/ou imprecisão dessas formulações.
Alguns economistas, posteriormente, inclusive apoiados em uma passagem de “O Capital” em que Marx afirma que após a abolição do capitalismo sob a produção socialmente organizada, a determinação do valor continua dominante, no sentido de que a regulação do tempo de trabalho e a distribuição social entre os diferentes setores da produção, e a contabilidade que abrange tudo isso se tornam mais importantes do que nunca; embora reconhecendo que todas as sociedades precisam distribuir trabalho social em determinadas proporções para satisfazer suas necessidades, negam que Marx não tenha tido em mente uma lei econômica de validade universal. Para efeito prático, a polêmica sobre a posição de Marx é irrelevante, dados os resultados práticos e a influência dessa lacuna nas formulações teóricas do marxismo sobre a economia, ao longo da história recente.
Um ponto de vista inovador em relação às formulações clássicas das esquerdas sobre a economia, sugere Nove, seria aquele que tentasse colocar-se a partir da posição de quem tenta descobrir que tipos de problemas econômicos podem ser encontrados em qualquer modelo de socialismo, tal como esse pode estabelecer-se com base na dinâmica da vida real, e não com base nas teorias econômicas de Marx e suas lacunas. A partir das respostas encontradas, poder-se-ia elaborar novos conhecimentos na busca de soluções capazes de suprir as insuficiências, imprecisões ou incorreções dos pontos de vista das esquerdas com relação à economia. O próprio Alec Nove ensaia a busca de respostas nessa direção, a partir de um ponto de vista de quem pretendia reformar o socialismo realmente existente até o final da década de 80, nos países da hoje ex-URSS. Nove censura os críticos do socialismo real, que atribuem os percalços da economia planificada de comando estatal a um problema de ordem política, ao mostrar como esses críticos desconhecem a existência da escassez na URSS, componente que introduz na economia planificada, inevitavelmente, a competição pelo acesso e controle dos recursos limitados.
A competição, por sua vez, sob essas circunstâncias, causa distorções no sistema, geradas em função da burocratização do controle das informações sobre a gestão e distribuição desses recursos escassos, por parte de gestores do sistema, diretamente interessados no resultado da distribuição. O próprio Marx nutria visões utópicas sobre a teoria do valor, que nada teriam a contribuir na busca de formulações teóricas capazes de apontar soluções para os impasses criados pela teoria marxista para o socialismo real, especialmente quando seus economistas tiveram que lidar com a realidade da dinâmica de mercado que, ao contrário do esperado por eles, não se enquadrou nos planos econômicos centralizados e comandados pelo Estado. Ilusão, é como melhor se podem definir as utopias e equívocos em que Marx teria metido seus seguidores, ao não definir, ou ao definir erradamente, alguns pressupostos básicos e implicações de sua teoria, sobre a tentativa de colocar em prática o socialismo como sistema econômico de transição para o comunismo.
Lênin, ao contrário, foi bastante preciso ao formular como via a acomodação das diferenças de interesses pela sociedade socialista transitória, ao afirmar que: O conjunto da sociedade terá de ser transformado num único escritório e numa única fábrica (...)”; “Todos os cidadãos serão empregados e trabalhadores de um único sindicato estatal nacional. As implicações práticas, tanto econômicas quanto políticas, das teorias de Lênin sobre o socialismo serão consideradas aqui, suficientemente conhecidas, razão pela qual dispensar-se-á maiores comentários, devido ao fato de essas teorias terem sido frontalmente contestadas pela realidade e pela falência do modelo implantado na URSS sob sua inspiração e liderança. Tivesse sido outro o destino do socialismo soviético, isto é, tivessem sido os comunistas os vencedores, a sociedade contemporânea teria grandes probabilidades de se ver funcionando hoje, segundo o modelo sugerido por Marx e depois por Lênin, como uma fábrica do século XIX, cuja estrutura organizativa deveria ser o contraponto à anarquia capitalista da época.
Questões vitais como centralização e descentralização, plano e mercado, os interesses das partes e os interesses do todo, a identificação do bem público, a alienação dos indivíduos, a necessidade e os perigos da hierarquia e da burocracia e, incidentalmente, a maior parte dos problemas que a economia soviética precisou enfrentar e não conseguiu fazê-lo de forma satisfatória, todas decorrem direta ou indiretamente da grande escala e das inúmeras interdependências da moderna economia industrial, hoje, pós-industrial. A realidade comprovou que a economia não pode ser planejada e conduzida com uma agência de correio. Não é apenas uma questão de técnica mas de aritmética contábil, como Lênin (antes de 1918) parecia acreditar.
As ilusões e equívocos de Marx e dos marxistas não se resumem a isso. Suas formulações supõem também que, em uma sociedade industrial complexa, seria possível, entre outras coisas, alocar e decidir por antecipação, através do planejamento do uso dos recursos e da alocação do trabalho, as inúmeras e diversificadas tarefas implícitas a uma cadeia de produção e consumo extremamente sofisticada como é a das sociedades contemporâneas. A tradição marxista do planejamento econômico centralizado erra também ao referenciar-se predominantemente, senão exclusivamente, nos aspectos quantitativos, quando a lógica do mercado indica que produtos de melhor qualidade tendem a ter maior preço.
O planejamento econômico centralizado pelo Estado em um país das dimensões e complexidade da ex-URSS, muito antes de a economia mundial assumir suas novas feições, demonstrou cabalmente que um núcleo planejador não tem como controlar uma composição de produtos totalmente desagregada, nem de qualidade, pelo simples fato de que é praticamente impossível considerar especificações detalhadas quando se trata de contemplar milhões de produtos para milhões de consumidores potenciais e, também, porque qualidade não é um conceito fácil de definir (freqüentemente associa-se às conveniências e gostos de quem consome), visto tratar-se de um valor em uso, valorizado por quem usa.
Segundo a ortodoxia marxista, tudo se passaria como se todos os insumos necessários ao sistema produtivo de uma sociedade estariam permanente, imutável e gratuitamente disponíveis. Sob essa ótica, o planejamento centralizado nunca falharia. A demanda social por produtos seria sempre suprida conforme as necessidades, dispensando o uso da moeda, das relações de troca, de compra ou venda. No limite da utopia comunista, o próprio Estado e sua corporação burocrática de planejadores e distribuidores centralizados se tornaria desnecessário, tendendo a auto-extinção.
Mesmo críticos do socialismo real como Bahro reconhecem esse problema ao perceberem o imperativo hierárquico inerente às complexas economias modernas. No entanto, a alternativa que propõe – vida em pequenas comunas – é, no mínimo, romântica e não soluciona o problema real, visto que exigiria um processo praticamente impensável de reorganização da sociedade contemporânea, nos moldes preconizados por Rousseau, ou pela utópica democracia grega. Não obstante, Bahro não consegue, mesmo nessa escala, conceber um sistema econômico que elimine as relações de troca (na medida em que essas comunas não têm como ser auto-suficientes), o que recoloca a questão do planejamento centralizado com vistas a satisfazer as necessidades da sociedade. Volta-se, assim, ao mesmo problema por outra via.
Marx também revelou seu lado romântico e utópico ao formular seus pontos de vista sobre a necessidade do socialismo transcender a divisão do trabalho, nas suas três dimensões: a) especialização entre diferentes unidades produtivas; b) especialização entre pessoas (profissões); e, por fim, c) a especialização vertical implícita à hierarquia existente entre as diferentes funções (comandantes e comandados) dentro das estruturas produtivas. Nem o próprio Marx, nem nenhuma das experiências do socialismo real, nem nenhum de seus críticos marxistas contemporâneos, conseguiu formular, descontadas proposições românticas e absolutamente irrealistas, qualquer alternativa transcendente à divisão social do trabalho tal como ocorreu na sociedade capitalista da época de “O Capital”, muito menos tal como essa se reorganiza e sofistica sob impacto da revolução tecnológica em curso.
O problema da remuneração pelo trabalho realizado é outro terreno movediço em que incursionou a teoria econômica marxista. Marx admite, em “Crítica ao programa de Gotha” que, nos primeiros estágios de uma sociedade socialista, as recompensas ainda deveriam vincular-se ao tempo trabalhado, ainda que esse critério incorporasse valores remanescentes do direito burguês. Não há, no entanto, qualquer referência no sentido de precisar quais deveriam ser os critérios desse tipo de recompensa, consideradas as diferenças entre as várias atividades e tarefas implícitas a uma cadeia produtiva; a intensidade e a qualidade do trabalho demandado de cada trabalhador, em um contexto em que a produção e a produtividade de cada membro de uma cadeia produtiva encadeiam-se de forma a afetar a quantidade e a qualidade do produto final. Da mesma forma, não há qualquer referência ao problema da alocação do trabalho em estruturas produtivas complexas. Trotski e Bukharin chegam a defender a militarização da produção, até que os trabalhadores se tornassem tão conscientes do que era necessário fazer e tão dedicados ao trabalho, que a noção de obrigatoriedade se extinguisse quando se tornasse desnecessária.
Economistas socialistas contemporâneos, ante a iminência da falência do socialismo real, chegaram ao absurdo de imaginarem a possibilidade de criação de uma espécie de simulação de um “modelo virtual e artificial de mercado” que, tal como um programa de computador, permitisse aos burocratas do planejamento central resolver o problema da impossibilidade do cálculo econômico que todos fazemos quando processamos nossas escolhas racionais ao buscarmos a satisfação de necessidades no mercado. Ludwig Von Mises destrói essas ilusão, passo a passo no livro “Socialism – An Economic and sociological analysis”. Não obstante, a simples tentativa de incursionar por aí, é mais um indicador da rendição dos economistas socialistas à superioridade da lógica do mercado livre sobre a lógica da economia planejada.
Igualmente, a teoria marxista, invariavelmente menospreza (senão despreza), a questão das atitudes e vontades individuais em relação ao trabalho socialmente requerido (exemplo: lixeiro) e individualmente desejado (exemplo: artista de televisão). Desconhece as implicações da hierarquia entre os que executam as tarefas diretamente ligadas à produção e aqueles que coordenam a alocação dos recursos humanos a partir do planejamento centralizado. Além disso, avalia incorretamente as predisposições humanas no que diz respeito ao comportamento diferenciado com relação aos incentivos morais e materiais, supondo fácil a possibilidade de substituir o sistema de preços e salários por um sistema baseado em símbolos que não circulam, isto é, de uma espécie de pseudo-moeda que, embora recebida como recompensa pelo trabalhador em função do trabalho realizado, não possa ser trocada por produtos e serviços, visto que esses são monopólio do Estado, provedor perfeito de todas as demandas e necessidades da sociedade.
Parece incrível, mas é real. Na América Latina têm gente que não estuda, não lê e não sabe de nada disso. E, pior, eles estão chegando ao poder legitimados pelo voto das maiorias ignorantes.
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Um comentário:
Professor, sou estudante de Ciência Politica, o senhor poderia postar mais textos para minha humilde apreciação?
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