domingo, junho 10, 2007

214) Os 8 passos para o Brasil virar uma potência

Revista Época, Terça-feira, 5 de junho de 2007
Os 8 passos para o Brasil virar uma potência
Isabel Clemente, Alexandre Mansur e Renata Leal

DIANTEIRA
Frederico Durães, mentor da parceria público-privada em tecnologia do álcool, num laboratório da Embrapa. As pesquisas são a chave para aumentar a competitividdae brasileira

A Coréia do Sul é citada à exaustão como exemplo de milagre econômico operado pela alta tecnologia. Na década de 60, era tão pobre quanto as nações miseráveis da África. Em quatro décadas, esse país asiático construiu marcas como Samsung, LG e Hyundai. Os coreanos viraram especialistas em celulares, computadores e carros. Mas, quando o assunto é tecnologia agroindustrial, eles vêm buscar as lições do Brasil. Na semana passada, uma missão de autoridades e empresários coreanos concluiu uma série de reuniões na Embrapa, a estatal de pesquisa agropecuária. Os visitantes estavam interessados em parcerias em energia renovável, como álcool e biodiesel. Não são os únicos: na lista dos estrangeiros de olho na tecnologia brasileira para o campo estão suecos, americanos, franceses, holandeses, indianos e chineses.

O prestígio internacional dá orgulho ao empresariado e ao governo do Brasil. Desde as privatizações não se via tanto investimento privado novo num mesmo setor. Até Pedro Paulo Diniz, ex-piloto de Fórmula 1 e empresário do ramo de entretenimento, e sua irmã, Lucila Diniz, herdeiros do grupo Pão de Açúcar, chegaram ao combustível natural. Vão investir cerca de US$ 200 milhões em duas usinas de álcool em Goiás. Para ter uma idéia do fascínio que o álcool vem exercendo, basta contar as liberações de crédito do BNDES.

Até a metade de maio, o BNDES aprovou R$ 1,24 bilhão para projetos no setor. É mais que todo o financiamento de 2005. E há os investimentos internacionais. O mais vultoso anunciado até agora são os US$ 2 bilhões reunidos pelo empresário Ricardo Semler e pelo ex-presidente da Petrobras Henri Philippe Reichstul, na Brazil Renewable Energy (Brenco). A empresa, lançada oficialmente no início do ano, já começou a plantar. Seus planos são construir quatro usinas, no Centro-Oeste, e exportar todo o álcool combustível produzido. Entre os sócios, empresários como Steve Case, fundador da AOL, Vinod Khosla, o multimilionário empreendedor indiano radicado nos Estados Unidos, e James Wolfenson, ex-presidente do Banco Mundial.

Segundo analistas, o Brasil tem potencial para se tornar uma Arábia Saudita verde. Os sauditas faturam US$ 154 bilhões por ano com petróleo. Ninguém arrisca quanto o Brasil ganharia exportando álcool. Mas poderíamos ir até mais longe porque, além de matéria-prima, dominamos a tecnologia da principal energia alternativa das próximas décadas. Receberíamos um volume de investimento sem comparação em nossa história, gerando fortunas empresariais e empregos em massa. Seria uma chance de dar um salto de desenvolvimento.

Essa chance existe porque o alto preço do petróleo e a preocupação com o aquecimento do planeta incentivam a busca por fontes de energia renováveis. O álcool, que o Brasil chegou a abandonar na década de 90, se encaixou nessa história. Embora a trajetória futura do álcool pareça brilhante, e o Brasil esteja na primeira classe, nada garante que não vamos ficar em alguma curva do caminho. Alguns desafios precisam ser enfrentados para o país não repetir o triste enredo de outros ciclos econômicos, como o da borracha, do café e do açúcar.

A borracha guarda curiosas semelhanças com a cana-de-açúcar de hoje. Como a cana, nenhuma seringueira era tão produtiva quanto a brasileira. A Amazônia abastecia o mundo, com uma produção a partir do extrativismo. Durante anos, os ingleses tentaram adaptar a árvore em outros paí ses, onde seria cultivada em grandes plantações. Os cientistas brasileiros não acreditavam no sucesso dessa empreitada, conta o historiador Almir Diniz de Carvalho Junior, professor de História da Universidade Federal do Amazonas. O governo do Brasil chegou a enviar missões à Malásia e recebeu sugestões para também fazer as plantações aqui. Não fez. Em 1910, os ingleses colhiam ótimas safras de borracha de suas plantações na Ásia. Terminava mais um ciclo de exploração das riquezas naturais brasileiras.


INOVAÇÃO
Fernando Reinach, da Votorantim, em um viveiro com variedades de cana. Uma delas, transgênica, pode aumentar em até 80% a produção de álcool

Que erros marcaram esse episódio histórico? Primeiro: o lucro da atividade não foi usado para aprimorar o cultivo, essencialmente extrativista. Segundo: as relações de trabalho primavam pela exploração de mão-de-obra barata, sem a preocupação de criar uma classe consumidora. Terceiro: os exportadores da borracha subestimaram a concorrência internacional. Quarto: o investimento em pesquisas foi irrelevante. Quinto: as exportações estavam concentradas nas mãos de empresas estrangeiras, para quem não fazia diferença onde a seringueira crescia. “A história não se repete, mas passa muito perto disso às vezes”, diz o historiador Carvalho Junior.

Desta vez, no entanto, poderá ser diferente. Para começar, pela primeira vez o Brasil está diante de um ciclo amparado por um grande mercado interno, que por muito tempo será mais importante que o externo. Cerca de 20% da frota nacional roda com álcool (3 milhões de veículos). Esse número tende a aumentar porque 80% dos veículos novos saem das fábricas adaptados para mais de um combustível, incluindo o álcool. Somando o que vai misturado à gasolina, 40% do combustível dos carros nacionais é álcool.

Outra vantagem dos novos tempos é a supremacia brasileira na tecnologia necessária, da agricultura aos motores de carros. Até avião está voando com combustível verde. Essa tecnologia toda é nacional. Para completar, nenhum lugar tem condições naturais tão favoráveis, de clima, luz, solo, e área disponível. “A natureza já fez metade do serviço para a gente. Cabe a nós fazer a outra metade”, diz o consultor Mário Veiga, especialista no mercado de energia.

As perspectivas do álcool serão discutidas no Ethanol Summit, um encontro internacional de empresários, investidores e pesquisadores realizado nesta semana em São Paulo. Na pauta estão os principais desafios que o Brasil precisa enfrentar para virar uma potência do álcool e se desenvolver com ele. São os seguintes:

O que o Brasil tem?
- Nossa cana é a melhor matéria-prima para a produção de álcool
- Há investimentos privados importantes que sustentam a expansão do negócio
- A tecnologia usada no setor é toda nacional, do cultivo à produção de álcool
- O aquecimento global é uma preocupação de todos e o álcool ajuda a reduzir esse efeito
- O mercado interno sustenta a maior parte da demanda por álcool
- Temos as melhores condições de clima e solo


TECNOLOGIA
Nei Pereira Jr. e Lídia Santa Anna, nos laboratórios do centro de pesquisas da Petrobras: liderança tecnológica nacional

1. PADRONIZAR O PRODUTO
O primeiro passo é criar um tipo de álcool que vire referência internacional. Hoje, há várias formulações para o álcool, ou etanol, como é chamado no exterior. Nos Estados Unidos, ele tem uma proporção maior de água que no Brasil. Na Europa, menos. A dificuldade não é técnica. Depende apenas de acordos. Na semana que vem, eles serão debatidos por executivos de 46 empresas de oito países associadas à International Ethanol Trade Association, um órgão privado criado no ano passado para incentivar o comércio do álcool. O grupo tentará eleger o primeiro padrão internacional de etanol, a partir de uma fórmula apresentada por engenheiros brasileiros.

Além disso, os preços oscilam muito em razão da safra, que vai de abril a dezembro em São Paulo, principal região produtora do país. As variações chegam a 30% em um único mês. “Todos perdem, do usineiro ao consumidor”, diz o consultor Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE). A solução, segundo Pires, passa por decisões governamentais. As negociações hoje têm amarras impostas pelo órgão regulador, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Uma distribuidora não pode vender para outra, o que restringe o fechamento de contratos de longo prazo, de acordo com Pires. Se, na época da entrega da mercadoria, o comprador não precisar mais de tanto combustível, terá dificuldades para revendê-lo no mercado.

2. ABRIR OS MERCADOS INTERNACIONAIS
O entusiasmo em torno do álcool como alternativa ao petróleo não significa que o mundo queira comprar nosso produto. Os americanos, os maiores produtores mundiais de álcool com os brasileiros, temem a concorrência. O processo deles, a partir do milho, é mais caro e menos eficiente do ponto de vista energético. Hoje, eles estão protegidos por subsídios à produção e uma sobretaxa no álcool importado, que está projetada para acabar no início de 2009. O lobby do setor agrícola americano pretende renovar a sobretaxa. O único álcool que entra nos EUA sem taxa extra é o que vem do Caribe. Empresários brasileiros têm vendido usinas e matéria-prima para o Caribe, aproveitando a brecha. Mas isso não basta.

Vijay Vaitheeswaran, especialista em Energia da revista The Economist e autor do livro Power to the People, relata que a imprensa americana está começando a questionar a eficiência do álcool a partir do milho. “Isso está ajudando a aumentar a consciência do cidadão médio sobre as vantagens do álcool brasileiro, mas, de concreto, nada acontecerá enquanto não caírem as barreiras”, diz Vijay. Especialistas afirmam que a pressão da opinião pública pode ajudar. “O Brasil tem de atacar em todas as frentes, inclusive no marketing”, diz Mario Veiga. “Alguém tem de chegar ao programa da Oprah Winfrey para vender a idéia da gasolina livre de carbono devido à mistura de álcool.”

Fora o marketing, abrir o mercado americano depende de dois fatores. Um é a habilidade da diplomacia para negociar reduções na barreira comercial. Outro está mais nas mãos dos políticos americanos. O presidente George W. Bush anunciou que pretende aumentar o consumo de biocombustíveis, a fim de reduzir a dependência em relação a fornecedores de petróleo instáveis, como a Venezuela. Isso significa que o consumo de álcool, previsto para 20 bilhões de litros neste ano, poderá chegar a 132 bilhões até 2017. É improvável que os produtores americanos dêem conta sozinhos. Precisarão importar. E o Brasil tem o melhor preço.


FUTURO
Luciano Soares num canavial em São Paulo. Filho de pequenos agricultores, ele estuda Química para trabalhar no laboratório das novas usinas

3. MANTER A DIANTEIRA NA AGRICULTURA
Nos anos 70, início do Proálcool, 1 hectare de cana rendia 3.000 litros de álcool. Hoje dá 7.000. É uma conquista do desenvolvimento no campo. Dos laboratórios nacionais saem variedades de plantas cada vez mais produtivas, resistentes à praga e à seca. Para continuar progredindo, o país precisa multiplicar suas iniciativas na área científica, que são boas, mas poucas. “Os americanos investem US$ 1,6 bilhão em tecnologia todo ano. Se não colocarmos dinheiro, amanhã a gente perde a vantagem tecnológica”, diz o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, do Centro de Agronegócios da FGV-SP.

O fisiologista Frederico Durães, diretor da Embrapa Agroenergia, é um dos mentores de uma iniciativa fundamental para nosso futuro tecnológico. Ele articula uma parceria com o setor privado para criar a primeira Empresa de Propósito Específico (EPE), voltada para pesquisas sobre o álcool. Será uma empresa independente da Embrapa, com a missão de repetir o modelo mais usado no Primeiro Mundo: unir o dinheiro privado ao conhecimento público. De um lado, um Q.G. com 2.200 doutores e laboratórios avaliados em mais de US$ 1 milhão, da Embrapa. Do outro, empresas ávidas por inovação, representadas pela Fiesp, a federação paulista de indústrias. Durães planeja colocar a Embrapa na rota de novas pesquisas que vão se somar aos programas de melhoramento genético em outros laboratórios. “Não se pode ter competição em agroenergia. Não existe razão para duplicar esforços”, diz.

Durães é um idealista. Quando circula pela Embrapa, em Brasília, despreza os dois elevadores do prédio. É uma forma de economizar energia. “Desculpe a falta de gentileza, é meu hábito.” Ele está há 25 anos na Embrapa. Diz que, quando recebeu um convite para o setor privado, pelo triplo do que ganhava, estava com o doutorado engatilhado. “Uma empresa privada não me liberaria. Eu não sairia nem para ganhar cinco vezes mais.”

A contrapartida desse idealismo é a movimentação que a iniciativa privada está começando. A CanaVialis, empresa de melhoramento genético do grupo Votorantim, acaba de anunciar uma parceria para troca de tecnologia com a multinacional Monsanto. Agora, testa uma espécie transgênica que contém 80% mais de sacarose (o açúcar da cana) e permite produzir álcool a mais na mesma proporção. “Se ela fosse plantada de uma hora para outra em todo o país, praticamente dobraria a produção de álcool”, diz Fernando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios. A planta ficará em testes por dois anos e precisará de uma autorização especial para entrar no mercado. A CanaVialis já investiu mais de US$ 50 milhões em pesquisas, dobra o faturamento todo ano e se tornou um dos lugares mais atraentes para doutores especializados no ramo, com salários superiores aos pagos por universidades.

Investir em centros assim é uma forma de segurar os pesquisadores no Brasil. Como Nei Pereira Jr., da UFRJ. Aos 54 anos, ele é de uma geração que diz ter optado pelo Brasil por ideologia. Ele estuda álcool há 29 anos. Diz que, quando cursava doutorado em Engenharia Bioquímica na Universidade de Manchester, na Inglaterra, foi convidado para se juntar ao ETH, na Suíça, um dos maiores centros internacionais de pesquisa em sua área. De lá já saíram, até hoje, 21 prêmios Nobel. “Eu era professor licenciado da UFRJ e tinha a obrigação moral de voltar”, diz Nei, sem hesitar. “Só vamos conseguir resolver nossos gargalos tecnológicos quando pesquisa for prioridade absoluta e as parcerias entre empresas e centros acadêmicos funcionarem.”

4. APOSTAR NA TECNOLOGIA INDUSTRIAL
Isso é importante para que o país não perca a dianteira numa linha de pesquisas fundamental: o processo para tirar álcool das folhas e do bagaço das plantas – o álcool celulósico. O processo existe em laboratório, mas é caro e ineficiente. O álcool celulósico elevará a produtividade dos canaviais sem um pé de cana a mais ao utilizar a palha, hoje queimada. Se outro país dominar o ciclo primeiro, nossa cana poderá perder a vantagem comparativa de produtividade para obtenção de álcool.

Os pesquisadores brasileiros encontram-se em diferentes estágios nessa corrida. E nem sempre trabalham juntos. A Petrobras, através do Cenpes, seu centro de pesquisa, inaugura, em algumas semanas, uma usina piloto para produzir álcool celulósico. “Conseguimos obter 220 litros por tonelada de bagaço em laboratório. A planta vai facilitar a avaliação econômica do processo, que precisa ser barateado”, diz Lídia Santa Anna, consultora para biotecnologia do Cenpes. Ela desenvolve o projeto em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O que estamos pesquisando aqui não servirá só para a palha. Poderemos recorrer a outras matérias-primas, como resíduos agrícolas e industriais.” A CanaVialis informa ter sócios americanos donos de patentes importantes para a produção de álcool celulósico. “Temos as peças, mas é como montar um carro que ninguém fez ainda”, diz Fernando Reinach.

Made in Brazil
Duas questões em aberto podem definir o futuro de nosso álcool no mercado internacional

1 – Quanto os EUA vão comprar?
Os EUA produzem um volume de álcool equivalente ao nosso. Mas essa produção só atende a 2% do consumo de combustíveis dos americanos. Se eles aumentarem a mistura de álcool na gasolina para 20%, vão ter de importar. Quanto nós vamos conseguir vender para eles?
Produção de álcool Participação nos combustíveis
EUA (milho)
20 bilhões de toneladas
2%
Brasil (cana)
20 bilhões de toneladas
40%

2– Quantos concorrentes teremos?
A cana é a planta mais eficiente na produção de álcool. São 76 os países com clima apropriado para cultivá-la. E 31 estão na África. Plantar lá pode ser mais barato que no Brasil?

O consumo americano, de 20 bilhões de litros de álcool, poderá chegar a 132 bilhões até 2017. É improvável que os produtores locais forneçam isso tudo sozinhos

BARREIRA
Processamento de milho nos EUA. O país subsidia a produção de etanol local a partir dos grãos. Com isso, barra a venda do álcool brasileiro

5. MELHORAR A INFRA-ESTRUTURA
O álcool brasileiro chega a quase todos os postos de combustível do país. Mas a rede para exportar em larga escala precisa de melhorias. A produção de álcool deverá dobrar até 2012. A questão é como escoar essa produção. A maneira mais eficaz e barata de transportar o combustível são os alcooldutos, dutos que levam álcool. Só existe um no país, ligando instalações da Petrobras em Paulínia, no interior de São Paulo, ao terminal marítimo da empresa na Ilha D’Água, no Rio de Janeiro. Por ele pode passar 1,2 bilhão de litros por ano, mas apenas 25% dessa capacidade está sendo usada. A Petrobras é a promessa mais concreta para resolver a infra-estrutura. A estatal tem US$ 600 milhões para investir na construção de alcooldutos s que interliguem as principais regiões produtoras e compradoras. O projeto prevê a participação de sócios estratégicos, mas ainda não começou. É essencial que saia do papel.

6. GARANTIR A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
Se todo mundo começar a plantar cana, não vai faltar comida? Na teoria, não. A cana ocupa 6,2 milhões de hectares no Brasil. Outros 200 milhões de hectares são pastagens. Um ganho de 10% de produtividade no pasto liberaria 20 milhões de hectares para a expansão dos canaviais. Para atender à demanda mundial por álcool, caso o planeta resolva adicionar 5% de álcool à gasolina, precisaremos de pouco mais que 10 milhões de hectares plantados. O problema é que a vida real não funciona assim. Hoje, não há estímulo para a pecuária aumentar sua produtividade. E a produção de bois do país também tende a crescer. Também há pressão para plantar mais de outros alimentos. É pouco provável que alguém deixe de plantar. O que se teme é que plantadores de cana, pecuaristas e outros agricultores busquem a abertura de novas terras, pressionando as áreas de preservação ambiental.

7. EVITAR O CUSTO AMBIENTAL
Boa parte do prestígio do álcool tem razões ambientais. O combustível natural é uma alternativa à gasolina, cuja combustão gera gases que contribuem para o aquecimento global. “Mas essa vantagem é anulada se, para plantar cana, for necessário desmatar”, diz Christopher Flavin, do instituto Worldwatch, dos EUA. “Ninguém sério estabelece relação direta entre o desmatamento na Amazônia e a expansão da cana. O que existe é o risco para a Mata Atlântica e o Cerrado das regiões canavieiras.” E o perigo de uma compensação indireta: a plantação de cana sobre as pastagens do Sudeste e Centro-Oeste pode aumentar a pressão dos pecuaristas na Amazônia, onde eles já são os principais responsáveis pelo desmatamento ilegal e a grilagem.


A socióloga Laura Tetti, consultora da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Única), diz que é questionada sobre isso três vezes por semana. Sua melhor resposta é o que vem ocorrendo em São Paulo, Estado que concentra 70% da produção de álcool do país. Em um gráfico, Laura mostra como a área de cana quase dobrou no Estado nos últimos 15 anos. Outro gráfico, com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, sugere que, no mesmo período, a área de remanescentes florestais do Estado cresceu. “Os dados mostram como São Paulo não perdeu florestas para a expansão da cana”, diz Laura. Como? Existem projetos bem-sucedidos de corredores ecológicos em torno de canaviais na região de Piracicaba, em São Paulo. Espécies da Mata Atlântica foram usadas para reflorestar á reas próximas às plantações.

Mas o destino da floresta ainda é incerto em outros Estados, como em Mato Grosso do Sul. Lá, existem projetos para expandir a área de canaviais de 200.000 para 1,2 milhão de hectares. “Só há um compromisso verbal de que o crescimento ocorrerá em áreas de pastagens, mas ninguém garante as reservas de Cerrado e Mata Atlântica da região”, diz Miguel Milano, da ONG Avina. “Claro que dá para plantar com cuidado. Mas não é o que temos visto.” O Ministério Público do Estado ainda está negociando salvaguardas ambientais com os representantes de 41 projetos de novas usinas para a região. Segundo o promotor Alexandre Raslan, eles ainda não concordam em assinar um termo se comprometendo a seguir a legislação ambiental para as s áreas arrendadas. “Isso garantiria a preservação de 20% da vegetação nativa em cada propriedade, como estabelece a lei”, diz.


8. OBTER GANHOS SOCIAIS
A indústria da cana, com pretensões a vôos internacionais, ainda se vê às voltas com problemas constrangedores, como a existência de trabalhadores em condições degradantes. O número de propriedades envolvidas é pequeno, mas a quantidade de trabalhadores libertados em alguns casos pelos fiscais do Ministério do Trabalho não. O caso mais estrondoso até agora foi a libertação de mil trabalhadores na fazenda Gameleira, em Mato Grosso, em 2005.

Mais do que melhorar as condições de trabalho, será preciso mudar o sistema de produção para atender às exigências do mercado externo. Além do trabalho degradante, a colheita da cana pressupõe a queima da plantação. Ela é feita para acabar com a palha da cana, cortante, que pode provocar lesões na pele e nos olhos. O fogo também reduz o risco de acidentes com animais, como cobras, no canavial.

A saída é mecanizar a colheita. Neste ano, 40% dos canaviais paulistas serão cortados à máquina. “Até 2017, esperamos não ter mais áreas queimadas e cortadas à mão no Estado”, diz Antônio de Padua Rodrigues, diretor-técnico da Única. As máquinas não servem para terrenos inclinados ou plantações pequenas, mas devem substituir a maior parte da mão-de-obra empregada no setor. É um aumento da produtividade. Mas, também, num primeiro momento, um aumento do desemprego no campo. Os cortadores representam metade do 1 milhão de trabalhadores que a cana emprega. Cada colheitadeira substituirá pelo menos cem deles.

Se a mecanização deverá tirar muitos trabalhadores do campo, o estudo poderá colocar parte deles para dentro das usinas ou criar outras oportunidades de emprego. A pedido da associação de produtores, o Centro Paula Souza, a maior rede de escolas técnicas do Estado de São Paulo, criou um curso técnico em açúcar e álcool há seis anos. A idéia inicial era capacitar quem já havia concluído o ensino médio e trabalhava nas usinas. De lá para cá, escolas técnicas espalhadas pelo Estado oferecem o curso, que dura dois anos. Em Osvaldo Cruz, a cerca de 600 quilômetros da capital, a Escola Técnica Amin Jundi está formando 40 alunos neste ano.

Luciano Soares, de 18 anos, está terminando o curso técnico em açúcar e álcool. Trabalha há dois meses no laboratório da usina Clealco, em Clementina, cidade a 60 quilômetros de Osvaldo Cruz. Desde a infância, vivida em parte num sítio onde o pai criava bicho-da-seda, ele queria ser veterinário. Agora, Luciano acredita que a especialização em álcool é sua chance de crescer. “O que está movendo o Brasil é o combustível renovável. O curso é a chave do momento.”

Luciano mora em uma casa com outros cinco rapazes. Todos estão estudando para trabalhar nos laboratórios das usinas da região. A Clealco, que surgiu nos anos 80 com os incentivos do ProÁlcool, hoje cresce 20% ao ano. Já recruta profissionais mais qualificados para a safra do ano que vem. A empresa tem planos de expansão e deverá abrir nos próximos anos mais duas unidades em cidades próximas. Em todo o Oeste Paulista, devem ser abertas 40 usinas até 2010. Dos 160 mil postos de trabalho previstos, pelo menos 27 mil serão para técnicos. É o trabalho mais especializado tornando o lugar do trabalho braçal.

As transformações são um bom exemplo daquilo que o economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) chamou de “destruição criadora”. Segundo ele, “a abertura de novos mercados e o desenvolvimento de formas de organização da mão-de-obra e de produção revolucionam incessantemente a estrutura econômica nacional, destruindo a velha ordem e criando uma nova”. Essa dinâmica seria não apenas a essência do capitalismo, como também a do desenvolvimento econômico.

Os EUA gastam US$ 1,6 bilhão em tecnologia todo ano. O Brasil precisa investir

Em São Paulo, que concentra 70% da produção nacional, as florestas estão crescendo. Mas os usineiros de Mato Grosso do Sul ainda não assinaram compromissos ambientais

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