quinta-feira, junho 28, 2007

220) Cultura afro-brasileira: um novo apartheid?

Lei da cultura africana e afro-brasileira: combate à discriminação ou aumento da segregação?
Camila Leporace - Tendências e Debates
Opinião e Noticia, 13/06/2007

Em 2003, foi lançada a lei federal nº 10.639, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas de todos os estados brasileiros. Apesar de o fato ter sido considerado importante por movimentos de luta dos negros em todo o país, existe uma discussão em torno da validade dessa proposta: ela realmente ajudaria a diminuir o preconceito desde a sala de aula, ou sairia pela culatra e aumentaria ainda mais a segregação, ao destacar a história do povo negro de outros temas curriculares?

Renato Ferreira, advogado e coordenador do Programa de Políticas da Cor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), lista alguns dos seus possíveis efeitos positivos quanto à redução da discriminação. "A lei visa fazer um resgate histórico que é importante não só para o negro mas para a sociedade brasileira como um todo. Esse é o grande ponto. As pessoas pensam que a lei está retificando a história, e não é. A gente está querendo dar oportunidade para as pessoas negras conhecerem um pouco melhor o Brasil, conhecerem um pouco melhor a sua história, e as pessoas brancas sobretudo; porque você não vence o preconceito e a discriminação com um grupo só sabendo, você só vence quando todos os grupos ficarem sabendo".

Ao falar do ensino oferecido nas escolas brasileiras, Ferreira aponta uma falha que, segundo ele, poderia ser reduzida caso a lei fosse aplicada. "A nossa matriz de conhecimento, que é o que chega às escolas, é essencialmente eurocêntrica. A gente estuda História da Europa, História dos Estados Unidos, e é isso que a gente reproduz, é isso que a gente tende a achar importante. Os outros Estados e aquilo que eles produziram, os seus mitos, as suas crenças, para nós são descartáveis".

Ulisses Martins, que dá aulas de História em escolas particulares do Rio de Janeiro, acredita que a proposta da lei de ensino afro pode aumentar ainda mais a discriminação. "Por que o ensino da cultura afro-brasileira especificamente? E os outros povos que contribuíram para a formação da identidade nacional? Ou foram somente os negros os responsáveis por isso?", questiona. "É exatamente aí que mora o risco de aumento da segregação. Os outros grupos podem se sentir desprestigiados e exigirem o estudo de suas culturas também. E então o que faremos? Criaremos novas disciplinas? Parece que as decisões são tomadas sem que se pense nos alcances que elas podem ter".

Martins diz que lhe causa estranheza o fato de a lei não focar também os índios. "Por que deixar os índios de fora? Querem usar a exploração que o negro sofreu como justificativa para a criação dessa lei; o que faremos com os índios que foram dizimados e perderam suas terras, foram aculturados e, também obrigados a trabalharem como escravos?".

Ferreira concorda com Martins, e acredita que uma outra lei precisa ser criada para contemplar a questão indígena. "O grande problema não é incluir a história dos negros, é deixar de incluir a história dos indígenas", analisa, complementando que uma das razões para os indígenas terem ficado de fora da lei no. 10.639 pode ter sido uma representação não tão grande, no Congresso, à época de sua aprovação.

Apesar de acreditar que outras culturas merecem igual destaque ao que seria dado à cultura negra com a aplicação da lei, Martins destaca que os riscos podem ser minimizados caso a história e cultura afro sejam inseridas dentro do currículo da disciplina de História. "A criação de mais uma disciplina não me parece o caminho ideal. Que essa valorização da cultura não seja apenas da afro-brasileira e seja de outro jeito, porque essa imposição não condiz com a realidade do ensino nacional. Os alunos são muito desinteressados e mais uma disciplina não ajuda".

Martins se opõe ainda ao sistema de cotas para estudantes originários de escolas públicas, especialmente negros e indígenas. "O certo a se fazer é melhorar o ensino público. Assim, as oportunidades e o preparo para o ingresso nas universidades públicas serão os mesmos, tanto para os alunos das escolas particulares quanto para os alunos de escolas públicas. A criação das cotas é uma ação assistencialista que não tem o alcance necessário para resolver o problema".

Renato Ferreira, lembrando que até hoje pouco se fez para combater as heranças negativas da escravidão, explica seu ponto de vista em relação a essas críticas. "O Brasil não adotou políticas públicas para promover a cidadania dos ex-escravos e seus descendentes. Obteve, com isso, uma discriminação estruturada". Uma solução para o já enraizado problema seriam as políticas afirmativas. "São medidas de inclusão que, promovendo direitos de grupos historicamente excluídos, podem reduzir a discriminação, promovendo a justiça social. Isso é importante para todos os brasileiros. A política de cotas, a lei 10.639, entre outras medidas, são espécies de ação afirmativa, e encontram assento na Constituição da República".

A implementação da lei
Ferreira destaca que para que a lei de cultura africana e afro-brasileira seja aplicada são fundamentais recursos e políticas públicas. "E isso no nosso país é um pouco complicado", destaca, dando as diretrizes que em sua opinião devem ser tomadas. "A responsabilidade pela aplicação da lei, a meu juízo, deve ser do MEC e das secretarias estaduais e municipais de educação, que a elas cabe desenvolver e executar as políticas de educação no país, em primeiro plano".

Os professores, que em sua formação também não receberam aulas voltadas em especial para a cultura africana e suas reais influências no Brasil, vêm comentando que não sabem qual a melhor maneira de apresentar alguns tópicos relacionados a essa história e cultura em sala de aula. Esse pode ser mais um obstáculo à prática do que a lei estabelece.

"Já se percebe uma preocupação com a história africana nos cursos de graduação, e a procura por pós-graduação nessa área também aumentou, mas ainda é muito cedo para se dizer que os professores estão preparados para cumprir a lei", diz Martins, explicando como imagina que se dará a preparação dos professores. "Alguns irão procurar por conta própria, mas acho que as instituições podem oferecer o incentivo financeiro para que seus professores de História façam uma pós-graduação em História da África".

Ferreira afirma que a idéia de fazer cursos de capacitação é muito boa, garantindo que quem leciona tem interesse em se especializar. "Se lançam um edital dizendo que os professores do estado ou do município que queiram estudar sobre História da África têm que se inscrever, muita gente se inscreve, muita gente quer fazer. Mesmo sem nenhum tipo de abono por isso. As pessoas são simpáticas ao tema porque sabem que é necessário".

Segundo o advogado, alguns cursos já estão em andamento, ministrados por ONGs e pelo MEC. Ele acredita ser interessante que professores do Ensino Fundamental de todas as matérias se capacitem, e entre as disciplinas do Ensino Médio destaca Português, Literatura e História, mas acredita que quem dá aulas de outras disciplinas também pode ser instruído.

Na opinião de Martins, é preciso ir com calma e repensar ainda vários pontos referentes à lei. Ele levanta questionamentos. "Ainda acho muito importante que se discuta muito mais a validade dessa lei, seus prós e contras, e que se amplie bastante a discussão, para que ninguém seja pego de surpresa. Será que realmente é necessária? Não há outros meios de se divulgar a cultura e história afro-brasileiras? Pensemos pois para não precisarmos resolver problemas mais graves futuramente".

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Um comentário:

Maria do Espírito Santo disse...

Sou do tempo em que ainda havia a disciplina de História Geral distinta da História do Brasil. De um tempo (velhos tempos...) em que se começava a questionar o ensino "assertivo" de História, do ensino "decoreba" de História, amontoado de datas e fatos literalmente perdidos no espaço e desconectados um do outro. Tive a sorte de ter uma professora excelente de ambas as Histórias (Geral e do Brasil): a inesquecível d. Helena. Líamos Asterix para entender melhor o Império Romano, e O Egípcio para se aproximar do Egito e o ótimo Luciano e um ou outro trecho da Ilíada e da Odisséia para nos aproximarmos (ainda que distantes...) da cultura grega. E tivemos também a grande oportunidade de conhecer um pouquinho da cultura africana, da história de Portugal e seu império colonial e da importância dos ingleses nas Minas Gerais.
Pois muito bem. E o quê que esta longa história privada tem a ver com a Lei no. 10.639? Estou tentando dizer que a obrigatoriedade desta ou daquela disciplina não tem o condão de produzir alterações saudáveis no aprendizado do aluno, muito pelo contrário. O que efetivamente produz são problemas do mesmo naipe citados por Martins e outros similares. Por exemplo? Professores despreparados "correndo atrás" de aprendizados instantâneos sobre a história africana e, claro, tentando "ensinar" a toque de caixa, algo sobre o que não têm - nem poderiam ter - um conhecimento seguro, fruto de uma maturação impossível de ser conseguida, assim do dia para a noite.
Quanto à "dívida" culposa que o "Brasil" e os brasileiros possam ter em relação a um passado "injusto" em relação à população negra (aliás, quem são os negros brasileiros? Será que teremos que estabelecer uma bizarra relação entre a percentagem de genética negra em nosso sangue e quanto menos herança negra no aluno X maior a carga horária de História Africana que X terá de cumprir?)creio que reparações "históricas" de "crimes e abusos" passados são praticamente inviáveis. O bom senso, o senso comum, leme do Direito Penal, reza que nenhuma pena passará do culpado para qualquer outro indivíduo. Por analogia, eu diria que não há reparação possível que sane o dano causado aos nossos - em menor ou maior proporção - antepassados por meio das futuras gerações. E muito menos por meio do aprendizado de "História da África" que será, inclusive, muito provavelmente mal contada.
Quanto à afirmação de Martins de que "os alunos são muito desinteressados e mais uma disciplina não ajuda", eu a acho meio temerária... Por que jogar a responsabilidade do desinteresse só para cima dos alunos? Criar mais uma disciplina não ajuda porque infelizmente há pouquíssimos professores com competência suficiente para transitar entre várias disciplinas afins do conhecimento. Um professor de história deveria conhecer também - e bem - literatura e filosofia, principalmente para tornar os alunos desinteressados em alunos vibrantes com as humanidades... mas minha fala, como sempre, já extrapolou em muito os limites da pergunta feita... professores de filosofia têm esse péssimo defeito de tentar abranger o inabrangível...
Quanto à pergunta fundante, discriminação ou maior segregação... qual seria a melhor opção?Insistindo nas rimas em "ão" eu diria que investir na formação de bons professores seria a solução. Mas não há essa opção! Então a solução é criar uma terceira via, mesmo que hipotética. Eu sugeriria uma Lei que fomentasse a formação de bons professores de todas as cores e sabores.