Nota inicial: Confesso que já ouvi falar, mas nunca li nada de significativo, do entrevistado em questão, razão pela qual, aliás, estou aqui transcrevendo esta matéria recebida pela internet.
PRA (23.03.2008)
Uma entrevista
Antonio Risério
Terra Magazine, Sexta Feira , 21 de março de 2008
(Reproduzo hoje, aqui, entrevista que dei ao jornalista João Barile, publicada no jornal "O Tempo", de Belo Horizonte, ainda em função do lançamento de meu novo livro, A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. Por dois motivos. Não deixá-la restrita ao espaço-mundo mineiro. E voltar a discutir um assunto que continua encarado muito estreitamente entre nós).
João Barile - Na entrevista com o sociólogo Boaventura Santos, ele relatou a grande resistência que dentro da academia brasileira existe para as cotas. Na entrevista para a Folha de S.Paulo o senhor afirma: "Não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas os que pertencem a um determinado segmento racial". Mas aí me lembrei de uma fala do professor da USP Renato Janine Ribeiro. E que diz que se o sistema de cotas não é perfeito, isto não significa um problema: afinal, se já erramos durante tanto tempo para um lado, não seria nenhum problema se errássemos para o outro. O que pensa sobre isto?
Antonio Risério - Não vejo "grande resistência" na academia brasileira contra as cotas. Até pelo contrário. Nem acho que o melhor caminho seja combater um erro com outro erro. A questão é outra. De uma parte, o critério de combate às desigualdades deve ser social, e não "étnico". Um governo democrático e popular deve ter políticas sociais abrangentes, como aconteceu na gestão de Marta Suplicy em São Paulo, com os Centros de Educação Unificada, os CEUs, filhos da Escola Parque de Anísio Teixeira e dos CIEPs de Darcy Ribeiro. De outra parte, não nos esqueçamos de que muitas vezes existem, numa mesma família, um filho mestiço mais escuro e um outro mais claro, ambos de ascendência africana. Um tem direito à cota e outro não?
Além disso, nem sempre é fácil apartar, no Brasil, o negromestiço do brancomestiço. O pessoal dos movimentos negros argumenta que, se os intelectuais não sabem distinguir, a polícia sabe. Não é um bom argumento. Uma polícia racista, criminosa e corrupta não pode ser critério para nortear projetos sociais para o país.
Mas o mais grave é que a luta pelas cotas pode comprometer futuros avanços sociais, ao tentar dicotomizar artificialmente o Brasil segundo o modelo racial norte-americano, que divide o mundo em brancos e pretos e nada tem de exemplar. O que fazer com nossos morenos, com os caboclos amazônicos, com os nisseis?
O Brasil, ao contrário dos EUA, sempre reconheceu suas misturas. A formação histórica, social e cultural de um povo não pode ser substituída pela de outro povo. Temos de nos pensar por nossa conta e risco. E não com base no modelo norte-americano, que foi criado por senhores de escravos, gerou a Klu Klux Klan e é essencialmente racista.
JB - No seu livro fica claro que, para o senhor, a mestiçagem é um processo biológico e cultural e não pode servir como um mecanismo de redução das distâncias sociais. Mas aí fico pensando naquela letra do Caetano e do Gil, "Haiti" ("E são pretos/ e são quase pretos de tão pobres..."). Se a pobreza entre nós não tem cor, também não dá para dizer que os negros não sejam maioria...
AR - O que eu digo é que mestiçagem não é sinônimo de igualdade, nem de harmonia social. Não exclui o preconceito, o conflito. E o Brasil é a melhor prova disso. É claro que boa parte dos negromestiços brasileiros vive em situação infra-humana, sem acesso aos serviços públicos mais elementares, ganhando pouco, morando e comendo mal, com baixa ou nenhuma escolaridade. Mas não só eles. Nem todos os pretos são pobres e nem todos os pobres são pretos.
Eu não digo, em momento algum, que a pobreza no Brasil não tem cor. É o contrário. Ela tem muitas cores. Basta entrar numa favela paulista para constatar isso. Na Amazônia, os negromestiços não constituem a maioria dos pobres. Esta maioria é cabocla, de ascendência indígena. Há muitos brancos pobres no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina. Por outro lado, cidades como São Paulo e Salvador já tiveram prefeitos pretos, a exemplo de Celso Pitta e Edvaldo Brito. E hoje existe uma classe média negra no Brasil, estimada em mais de dez milhões de pessoas, segundo a Associação Nacional de Empresários Afro-Brasileiros.
É para esses mulatos mais escuros que existem coisas como a revista "Raça" e todo um elenco de produtos cosméticos e vestuais. É certo que não é suficiente. Mas a promoção da inclusão social no Brasil não deve se pautar por linhas étnicas rígidas. Nossa pobreza não é somente negra. "Haiti" é uma composição que fala de Salvador, cidade marcadamente negromestiça. Mas não faria sentido algum se a sua referência fosse Belém ou Manaus.
JB - No episódio do escândalo dos cartões corporativos, a história da ex-ministra Matilde talvez tenha sido o caso que mais ganhou dimensão na mídia (tanto assim que só ela, até agora, foi afastada). Me pergunto se por racismo ou não. O que o senhor pensa do episódio? O estrago para o movimento negro foi grande?
AR - É evidente que não foi por racismo. Matilde foi demitida por ter gasto indevidamente o dinheiro público. Qualquer pessoa que faça isso tem de ser punida, pouco importa a cor. Lula é racista? Não, a culpa foi dela. Veja que o ministro da Cultura, agindo de outra forma, não foi atingido. E ele também é um mulato escuro. O estrago foi grande, sim, para os movimentos negros, no mesmo sentido em que práticas de corrupção também foram um estrago formidável para o PT. Essas coisas detonaram a aura de ética do partido, assim como agora detona-se a mesma aura dos movimentos negros. Fica tudo igual, no campo partidário e no dos movimentos sociais. Existem pessoas íntegras e indivíduos corruptos em todos os lugares, partidos, movimentos, independentemente da cor da pele. Cor e ideologia não são sinônimos de responsabilidade republicana, nem de caráter.
JB - Na introdução do livro, o senhor diz (em tom de boutade naturalmente) que o Brasil é o país "mais e menos racista do mundo". Este racismo light (que sempre escorre pelas mãos) não parece ser o nosso maior problema?
AR - Não podemos nos fixar numa só face da questão. Digo que o Brasil é o país mais e menos racista do mundo, simultaneamente. E digo isso para desarmar os clichês de sempre. Porque soubemos construir, ao longo de nossa história, espaços generosos e genuínos de convívio interétnico e, ao mesmo tempo, não eliminamos o preconceito em nossa vida social. Mas digo que prefiro mil vezes um país onde as pessoas sejam quase obrigadas a ter vergonha de serem racistas do que um país que conheceu o racismo de Estado - e onde as pessoas não se envergonham de discriminar os outros. Mesmo que nossos racistas sejam hipócritas, é melhor.
Se não me falha a memória, foi Maquiavel quem disse que a hipocrisia é um tributo que o vício paga à virtude. O racismo é visto, no Brasil, como algo social e culturalmente nefasto, condenável, repugnante. Isso não basta para abolir o preconceito. Mas é, sem dúvida, uma conquista. E temos de avançar a partir daí.
JB - No livro o senhor condena o movimento negro universitário brasileiro que adota o modelo de raças importado dos Estados Unidos. Por obra do acaso, na semana passada esbarrei com o seu livro "Avant-Garde na Bahia" em um sebo. E comecei a lê-lo simultaneamente com o seu novo livro. Nos dois livros fica bastante claro que o senhor tem uma visão muito crítica da intelectualidade brasileira (sempre colonizada e deslumbrada com modelos estrangeiros). Pergunto: fazendo uma comparação entre aquele período do livro que conta a história do reitor Edgard Santos e agora, o Brasil é hoje um país mais "colonizado"?
AR - Não sei, é difícil responder, mas talvez sim. No mundo universitário, certamente. Mas temos de fazer uma distinção. Uma coisa é a assimilação de conceitos e teses universais, outra coisa é a mera cópia de idéias e modelos. O primeiro processo é necessário, enriquecedor. O segundo é que nos conduz aos mais diversos graus e tipos de alienação. Ao capachismo cultural e ideológico. E a verdade é que, com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes alcançamos um patamar de reflexão brasileira que hoje parece perdido, especialmente com os subjetivismos reacionários, alheios ao movimento real da vida e do mundo, que encontramos em certos meios "pós-modernos".
JB - Depois da leitura do seu livro, fiquei com a impressão de que o pensamento politicamente correto incomoda o senhor. É verdade?
AR - Não, não incomoda. Me divirto com suas cretinices e construções estapafúrdias. Com suas contradições hilárias, como no caso de negromestiços condenando o uso de palavras como bozó e macumba, sem saber que são vocábulos de origem africana, palavras bantas. Tenho amigos homossexuais que se definem tranquilamente como veados, mas aí vêm os comissários do politicamente correto combater isso. Alguns pretos dizem que a palavra preto, quando empregada para designar uma pessoa preta, é pejorativa. No entanto, esses mesmos pretos se tratam como "blacks". Quer dizer, em português não pode, mas em inglês pode? É um besteirol sem limites. E como é mesmo que agora vocês aí em Minas Gerais vão chamar o Aleijadinho, que, aliás, era um descendente de escravos que tinha escravos?
O que não devemos admitir é que esses imbecis do "politicamente correto" ("political correctness" é a expressão original, que eles copiaram) queiram mutilar a língua portuguesa mestiça do Brasil, em nome de um modismo tão passageiro quanto supérfluo.
JB - Tem recebido muitos ataques depois que publicou o livro? Como o movimento negro recebeu a sua obra?
AR - Não, nenhum ataque. Público, ao menos. Até agora, só elogios, mesmo que com algumas restrições críticas. A começar pelo Eduardo Gianetti, que escreveu a apresentação do livro. Mas também com artigos de Demétrio Magnoli, Idelber Avelar, Antonio Paim. E não faço a menor idéia de como os movimentos negros estão recebendo o livro. Mas tenho a mais absoluta certeza de que ele será ou já está sendo detestado pelos ideólogos acadêmicos do racialismo neonegro. Afinal, me choco de frente com eles, denunciando suas falácias, maniqueísmos, fantasias e mistificações.
JB - Gilberto Freyre é um autor que o senhor cita em vários momentos na sua obra. Gostaria que o senhor contasse o que pensa da recepção da obra de Freyre dentro do movimento negro. O que está vivo e o que está morto na obra dele?
AR - Freyre é um autor fundamental para a compreensão do Brasil. E é claro que não é preciso concordar "in totum" com suas idéias. Acho que o pessoal do movimento negro, em boa parte, cultiva uma recusa sem conhecimento do que Freyre fez. Não lê seus livros. Foi ensinado a vê-lo como um inimigo e ponto final. É uma pena. Como dizia Leonardo da Vinci, nada se pode amar ou odiar, se primeiro não temos conhecimento do que se trata. E é bom não esquecer de que foi Freyre quem, com Casa-Grande & Senzala, detonou o chamado "racismo científico" que dominou por décadas o pensamento brasileiro, de Euclides da Cunha a Paulo Prado e outros. E isso no momento mesmo em que o nazismo ia tomando conta da Europa.
O que Freyre nos ensina é que, para entender o Brasil, não podemos ficar só no alpendre. É preciso conhecer o canavial. Conhecer a casa-grande e a senzala, os atos técnicos e as criações simbólicas das elites e das populações excluídas das favelas e dos bairros periféricos. E isso abertamente, fazendo o possível e o impossível para superar preconceitos. Se sua visão da mestiçagem era senhorial, não devemos, ao combatê-la, fazer de conta que a mestiçagem não existe. Nem baixar um decreto ideológico histórica e sociologicamente absurdo, eliminando o mestiço e afirmando que no Brasil só existem negros e brancos. Porque isto é uma falsificação grosseira da realidade em que vivemos.
JB - Por fim: em um país com a pior distribuição de renda do planeta, onde a elite não parece disposta a ceder sequer um milímetro, sua proposta de abolição da herança não lhe parece uma proposta muito utópica?
AR - A idéia não é minha. Faz parte do ideário que se produziu ao longo da história do pensamento socialista. Você pode chamá-la de utópica, sim, mas no sentido em que podemos falar de "utopias realistas", com Pierre Bourdieu e Russell Jacoby. Acredito, como Roberto Mangabeira de What Should the Left Propose? (livro, aliás, que acabei de traduzir), que a esquerda tem de ir além do neoliberalismo e da social-democracia. Tem de construir, em seus lineamentos gerais, um novo projeto de civilização. Com teses definidas contra o modelo norte-americano de globalização, com políticas próprias para o mercado, com propostas de novas formas de trabalho, contrato e propriedade.
A abolição gradativa do instituto da herança é uma proposição que deve ser vista nesse contexto maior. E isso tudo não vai acontecer de uma hora para outra. O que não podemos é abrir mão do projeto de transformação social, política e cultural do país. Desenhando, para isso, um horizonte de mudanças de longo prazo.
Antonio Risério é poeta e antropólogo.
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