quinta-feira, outubro 23, 2008

367) Diplomacia sem valor

O texto abaixo é antigo, mas seu "valor intrínseco" guarda todo o seu valor formal e substantivo...

Diplomacia sem valor
Demétrio Magnoli
Revista Pangea, 6/5/2002

O afastamento de José Maurício Bustani do cargo de diretor da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) é um detalhe no cenário internacional convulsionado pela “guerra contra o terror” dos EUA. Quem se importa com um diplomata brasileiro ou os destinos da Opaq quando o espectro da guerra parece estar em todos os lugares? Mas o detalhe é daqueles plenos de significados pois, na sua singularidade, desvenda o sentido da grande paisagem.
A Opaq é uma agência multilateral destinada a implementar a Convenção de Armas Químicas, um tratado negociado há mais de uma década, que entrou em vigor em 1997. A agência tem, atualmente, a participação de 145 Estados. Entre as suas metas explícitas figura a incorporação ao tratado de todos os Estados que ainda não o reconhecem. Sob a direção de Bustani, a Opaq buscava a incorporação do Iraque. Foi, sobretudo, essa iniciativa que provocou a ira de Washington, a operação de pressões e intimidações contra o diretor e, finalmente, a vitoriosa moção de censura que o afastou.
Bustani matou a charada: “Eu buscava um diálogo com aqueles países que supostamente fazem parte do ‘eixo do mal’. Mas será que os EUA querem mesmo acabar com o eixo?” A eventual incorporação do Iraque obrigaria Saddam Hussein a se submeter ao regime de controle e destruição de armas químicas. Mas Washington não quer um Iraque sem armas químicas. Os arsenais iraquianos de armas de destruição em massa, reais ou virtuais, são elementos indispensáveis para a próxima etapa da “guerra contra o terror”. Sem eles, como isolar diplomaticamente o Iraque e executar a planejada campanha militar de derrubada de Saddam?
Na sua operação contra Bustani, Washington pretendia assegurar o monopólio do Conselho de Segurança (CS) da ONU na condução da questão dos arsenais iraquianos. Os EUA exercem suficiente controle sobre o CS para evitar um acordo de inspeções capaz de eliminar os pretextos que “justificam” a campanha militar contra Saddam. O CS serve, nesse momento, como instrumento do unilateralismo imperial da administração Bush. A Opaq representava o multilateralismo diplomático, assentado sobre a teia de tratados que prendem as peças do sistema internacional de Estados. Por isso, era preciso eliminar a Opaq.
Bustani matou mais essa charada: “Eu só posso interpretar a ofensiva lançada contra mim como uma ofensiva contra a própria Opaq”. Os EUA passaram um rolo compressor na Opaq. Pressionaram, até o limite, seus aliados europeus, ameaçando abandonar a agência. Prometeram vantagens para países africanos e asiáticos. Pagaram, na última hora, as contribuições de países como o Gabão, para que pudessem votar. Conseguiram 48 votos. Mesmo assim, 43 Estados revelaram, por meio da abstenção, a sua indignação silenciosa. Bustani teve sete votos e deixou o centro de conferência ovacionado por quase todas as delegações. De agora em diante, existe um precedente: qualquer agência multilateral pode ser reduzida à irrelevância pela vontade exclusiva de Washington.
Bustani não era diretor da Opaq por acaso: estava lá por ser um diplomata brasileiro. O Brasil não tem armas nucleares ou influência econômica global, mas tem um outro tipo de poder, materializado na tradição de defesa do multilateralismo. Contudo, o Itamaraty abandonou Bustani, estendendo um tapete vermelho para a tropa de choque dos EUA.
A infâmia começou semanas antes do desfecho. Quando as pressões americanas passaram a ser divulgadas pela imprensa, o Itamaraty trocou um silêncio ensurdecedor por notas oficiais que descreviam Bustani como “diplomata licenciado”, ocupando um posto internacional “a serviço da Opaq”. Faltou só cassar o passaporte do diplomata, tornando-o um apátrida. O grotesco formalismo jurídico mal disfarçava a vontade de esconder que estava em jogo o princípio do multilateralismo e, com ele, o patrimônio diplomático brasileiro.
As declarações e notas emanadas do Itamaraty limitaram-se a afirmar que o Brasil “confia” em Bustani e “não acredita” que ele tenha gerido mal os fundos da Opaq. Assim, o Brasil legitimava a operação dos EUA, baseada na divulgação de calúnias grosseiras, que contrariam evidências e auditorias. Os embaixadores brasileiros no exterior, sob orientação de cima, recolheram-se ao silêncio. Não solicitaram aos governos junto aos quais atuam o apoio a Bustani. Não deram declarações à imprensa denunciando a operação em curso. Afinal, o que o Itamaraty tem a ver com um “diplomata licenciado”?
No dia do desfecho, o Itamaraty não dirigiu a Washington sequer um protesto, oficial ou informal. Ao contrário: Celso Lafer, o ministro do Exterior, passou o dia louvando a qualidade das relações entre o Brasil e os EUA e assegurando que o episódio da Opaq não teria o menor impacto sobre o relacionamento bilateral.
“Vivemos num mundo maquiavélico”, não num “mundo de valores”, e é nesse ambiente que temos que defender os “interesses nacionais”. Foi essa a justificativa de Lafer, embrulhada na linguagem das Relações Internacionais, para a pantomima do Itamaraty. A contraposição do “maquiavelismo” aos “valores” é uma tentativa, superficial e bufa, de desviar o foco.
Os interesses nacionais exigem a defesa de valores que ampliam o poder a a autonomia do Brasil no “mundo maquiavélico” onde se exerce a hegemonia da hiperpotência unilateralista. O multilateralismo – político e econômico – é um valor crucial nesse cenário. O abandono do “apátrida” Bustani assinala um mergulho sombrio da diplomacia brasileira, que renega as suas melhores tradições e age contra os interesses nacionais. É o rumo de uma diplomacia sem valor.

Demétrio Magnoli é doutor em Geografia Humana pela USP e diretor-editorial do jornal Mundo – Geografia e Política Internacional.

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