segunda-feira, outubro 27, 2008

370) Estado fora=da-lei...

Artigo de Ribamar Oliveira
O Estado de S.Paulo, Segunda-Feira, 27 de Outubro de 2008
Caderno de Economia, p. B2

Expansão dos bancos públicos

A medida provisória 443, que autoriza o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF) a comprarem bancos e outras empresas, despertou questionamentos jurídicos de toda ordem. Mas nenhum partido político, mesmo da oposição, quer discutir a constitucionalidade da MP no Supremo Tribunal Federal (STF), pois isso poderia passar à opinião pública uma idéia de que eles estão criando obstáculos ao governo neste momento de grave crise financeira internacional.

O ponto em questão é o artigo primeiro da MP 443 que autoriza o BB e a CEF a criarem subsidiárias, em número indefinido, sendo a única condição que elas sejam para o cumprimento de atividades de seu objeto social. Ocorre que o inciso XX do artigo 37 da Constituição Federal estabelece que depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das empresas públicas ou sociedades de economia mista, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada. A Constituição determina, portanto, que a criação de cada subsidiária de estatal ou empresa de economia mista necessita de prévia autorização legislativa.

Para contornar esse dispositivo constitucional, os ministros da Fazenda, Guido Mantega, do Planejamento, Paulo Bernardo, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, disseram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na exposição de motivos que acompanhou a MP 443, que existe um precedente. ''Veja-se que tal procedimento (a criação de subsidiárias sem autorização legislativa) não traduz novidade, já havendo autorização semelhante concedida à Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRÁS na Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997'', destacaram.

É como se, em defesa da constitucionalidade da MP 443, eles dissessem apenas que os tucanos já utilizaram o mesmo expediente. A lei 9.478 - chamada de ''lei do petróleo'', aprovada pelo Congresso no primeiro mandado do presidente Fernando Henrique Cardoso - estabelece que a Petrobrás, no estrito cumprimento de atividades de seu objeto social, ''fica autorizada a constituir subsidiárias, as quais poderão associar-se, majoritária ou minoritariamente, a outras empresas''.

É óbvio que um precedente não garante caráter constitucional a qualquer medida. Mas é importante observar que o poder dado à Petrobrás para criar subsidiárias ao seu bel prazer, sem autorização legislativa prévia, nunca foi questionado no Supremo Tribunal Federal por qualquer partido político. Alguns viram inconstitucionalidade na MP 443 por receio, pois ela permite, no limite, a estatização de todo o sistema financeiro brasileiro.

Se a MP 443 é uma carta branca concedida ao BB e à CEF para comprarem instituições financeiras e criarem subsidiárias, é difícil imaginar como ela poderia ser diferente diante dos desafios colocados ao governo federal pela crise financeira internacional. Mais uma vez as razões para a MP estão explicitadas com clareza na exposição de motivos.

Os ministros disseram ao presidente que ''embora os reflexos da crise no Brasil sejam relativamente limitados em função da solidez macroeconômica do País e da solidez do sistema financeiro nacional, a contração da liquidez pode estimular um movimento de consolidação financeira no País''. Em outras palavras, a crise de liquidez poderá levar a uma concentração bancária com os grandes bancos comprando os pequenos e os médios.

A pergunta que se coloca é porque não deixar a cargo da iniciativa privada essa ''consolidação financeira no País''. A resposta também está na exposição de motivos. Os ministros disseram ao presidente que ''pelas regras atualmente vigentes, os principais bancos públicos do País, o BB e a CEF, têm restrições a sua atuação num eventual processo de consolidação do sistema financeiro nacional. Tal restrição tem duas conseqüências indesejáveis: uma menor concorrência entre os potenciais investidores, reduzindo o valor dos ativos negociados, e a eventual perda de oportunidade de expansão das instituições financeiras federais''.

A primeira justificativa parece razoável, uma vez que os grandes bancos poderão mesmo estrangular os pequenos e médios para comprá-los por preços menores. Portanto, o governo está certo ao permitir que as instituições públicas também participem da disputa. Mas a segunda justificativa levanta uma questão ideológica, pois indica que o governo Lula está interessado na expansão das instituições financeiras federais.

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Meus comentários:
A MP 443, assim como outras medidas anteriores (e certamente futuras também) nos confirma, mais uma vez, que o principal infrator da legalidade, no Brasil, é o próprio Estado; ele atua como um fora-da-lei, ao violar a Constituição e as leis existentes, como pretende fazer no caso da fusão da Oi com a BrTelecom, como fez quando da criação de uma TV estatal, como fez ao emitir clandestinamente numa outra MP uma autorização para cobrar tarifas específicas (ad rem) sobre produtos importados, ao cobrar Cofins de produtos importados, ao fichar turistas americanos de maneira discriminatória e sem qualquer base legal (pior, sem qualquer finalidade específica, a não ser atender a um vago princípio da reciprocidade), enfim, ao decretar um sem número de medidas provisórias que muito raramente são caraterizadas pela urgência ou necessidade.
Ou seja, o Estado é de fato o principal infrator da legalidade no país. Ele é o grande fora-da-lei.
Em qualquer país decente, o Tribunal Superior já teria cerceado esse festival de ilegalidades...
PRA

quinta-feira, outubro 23, 2008

369) Reforma Tributaria

Reforma Tributária
Breve Análise das Disposições da Proposta de Emenda Constitucional

Fernando Guido Okumura
22-10-2008

Já estão disponíveis na Internet o texto e a exposição de motivos da Proposta de Emenda constitucional (PEC), apresentada ao Congresso pelo Ministério da Fazenda em 28 de fevereiro de 2008.
A leitura da PEC nos possibilita ter uma idéia das principais alterações que o Ministério da Fazenda pretende implementar no Sistema Tributário Nacional.
Tanto o texto da Constituição Federal quando dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórios foram alterados pela PEC em questão, entretanto, focaremos este artigo nas alterações efetuadas na Constituição Federal deixando de lado também as disposições relativas à repartição e destinação das receitas tributarias.

Saliente-se que as alterações propostas no Sistema Tributário Nacional acarretaram alterações em outras áreas do Direito, notadamente, no Processo do Trabalho, o Processo Civil, e o Direito Administrativo, que também serão objeto deste artigo.

Aos que pretendem acompanhar a leitura deste artigo com o texto da PEC, abaixo seguem alguns endereços eletrônicos nos quais pode ser encontrada a íntegra da PEC:

http://www.fenafisco.org.br/arquivos/1698.pdf

http://www.cofecon.org.br/dmdocuments/PEC-Reforma-Tributaria-Anexo.pdf

http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2008/fevereiro/EM-16-2008-PEC-Reforma-Tributaria-Anexo.pdf

1 - Alterações na Justiça do Trabalho.

O texto da PEC inclui no artigo 114 da Constituição Federal, o item VIII, que trata sobre a atuação das Varas da Justiça do Trabalho na execução dos valores relativos às Contribuições Sociais previstas nos incisos I e II do artigo 195, da Constituição Federal, decorrentes de sentenças prolatadas na Justiça do Trabalho.

Cabe salientar que os incisos I e II, do artigo 195, da Constituição Federal, tratam da contribuição patronal e dos empregados à Previdência Social.

2 - Direito Processual

O projeto atribui nova competência ao Superior Tribunal de Justiça, especificamente o julgamento, em Recurso Especial, das causas decididas em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados ou do Distrito Federal, contra decisão que contrariar "a lei complementar ou regulamentação relativa a imposto a que se refere o art. 155-A (ICMS), negar-lhes vigência ou lhes der interpretação divergente da que lhes tenha atribuído outro tribunal".

Tal alteração foi incluída na Alínea "d" do artigo 105 e decorre das modificações pretendidas nas normas relativas ao ICMS.

3 - Competência Legislativa

Foi incluída a alínea "d", no artigo 146, da Constituição Federal, que atribui à Lei Complementar a competência para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especificamente sobre:

"definição de tratamento diferenciado e favorecimento para as microempresas e para empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso dos impostos previstos nos artigos 153, IV (IPI) e VII (novo IVA Federal), 155-A (ICMS), 156, III (ISS), e das contribuições previstas no artigo 195, I (INSS Empregador)".

Outra alteração relativa às questões legislativas é a inclusão do parágrafo 2º no artigo 62, da Constituição Federal cuja disposição determina que as Medidas Provisórias que instituírem ou majorarem impostos, exceto os previstos nos incisos I (I.Imp.), II (I.Ex.), IV (IPI), V (IOF), VIII (IVA) do artigo 153, e no inciso II (Impostos Extraordinários) do artigo 154, somente produzirão efeitos no exercício financeiro seguinte se forem convertidas em lei até o último dia do ano em que foram editadas.

Portanto, para os tributos sujeitos ao princípio da anterioridade, na hipótese de instituição ou aumento de carga tributária por meio de Medidas Provisórias, o prazo para a contagem da anterioridade não será considerado a partir da data da edição da Medida Provisória, mas sim da data de sua conversão em lei.

4 - Limitação do Poder de Tributar

No que se refere aos limites do poder de tributar, uma das alterações é a inclusão do § 6º, no artigo 150, que impõe a obrigatoriedade de, nos casos de concessão de benefícios fiscais, ser editada Lei específica (seja federal, estadual ou municipal) para tratar exclusivamente sobre o assunto.

Ainda tratando sobre a limitação do poder de tributar, a PEC põe um ponto final na discussão sobre a possibilidade de tratados internacionais, ratificados pelo Congresso Nacional, concederem benefícios fiscais relativos a tributos municipais e estaduais.

A PEC inclui o parágrafo único no artigo 151, com se seguinte redação:

"Parágrafo Único: A vedação do inciso III não se aplica aos tratados internacionais aprovados na forma do artigo 49, I"

Cabe lembrar que o inciso III do artigo 151, da Constituição Federal, impede que a União institua isenções de tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Com essa alteração, passa a ser expressa na Constituição Federal a possibilidade de Tratados Internacionais, ratificados pelo Congresso Nacional, instituírem isenção relativa aos tributos de competência diversa à da União Federal.

De acordo com o projeto, será revogado também o parágrafo 3º, do artigo 155, que previa a impossibilidade de tributação das atividades relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicação, derivados de petróleo, combustíveis e minerais por outros tributos que não fossem o ICMS, Imposto sobre Importações e Imposto sobre Exportações.

O projeto também prevê a revogação do parágrafo 4º, do artigo 177, que dispõe sobre alguns requisitos que devem ser observados quando da edição de Lei que instituir a contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), relativa às atividades de importação e comercialização de combustíveis.

Nesse ponto, cabe fazer uma ressalva: apesar de alguns entenderem que a reforma tributária extinguirá a CIDE, não consta na PEC qualquer disposição no sentido de revogar o artigo 149 da Constituição Federal.

5- Imposto de Renda

A PEC altera as disposições relativas ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, incluindo o item III, no parágrafo 2º, do Artigo 153, possibilitando a instituição de alíquotas adicionas ao Imposto de Renda, utilizando como critério para imposição de tais adicionais, o setor da atividade econômica de atuação.

Salienta-se que a previsão é de que o IR "poderá ter adicionais de alíquota por setor de atividade econômica", ou seja, a única possibilidade que tal dispositivo legal cria é de aumento da carga de IRPJ para alguns setores, não tratando sobre qualquer possibilidade de redução de alíquota de tal tributo.

Caso a proposta seja aprovada com esta disposição, alguns setores poderão sofrer aumento da carga tributária em decorrência de uma possível instituição do adicional à alíquota do IR.

6 - Novo Tributo, o Imposto sobre Valor Agregados (IVA) Federal

A previsão do IVA Federal constará no inciso VIII do artigo 153, da Constituição Federal.

Tal tributo terá como objetivo tributar as "operações com bens e prestações de serviços, ainda que as operações e prestações iniciem no exterior".

Para fornecer os parâmetros e as diretrizes desse novo tributo, será incluído o parágrafo 6º no artigo 153, que determinará:

a) O IVA será não cumulativo

b) As operações e prestações sujeitas a alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade, não implicarão crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes, salvo na existência de lei com disposição em contrário.

c) Incidirá nas importações, a qualquer titulo

d) Não incidirá nas exportações, garantido a manutenção e aproveitamento do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores

e) Integrará sua própria base de cálculo.

Além das alterações no artigo 153, a proposta de emenda altera o artigo 150 (limitações ao poder de tributar), estabelecendo em seu parágrafo 1º, que o novo tributo (IVA) não estará sujeito ao princípio da anterioridade, mas tão somente à anterioridade nonagesimal.

Como se pode perceber, o novo tributo, visa tributar o consumo, fato que pode criar obstáculos ao desenvolvimento econômico na medida em que desestimula o consumo em decorrência do aumento do custo dos produtos.

Deixadas as questões econômicas de lado, o que se percebe é que o novo tributo será de fácil fiscalização, já que a não cumulatividade faz com que a cadeia de produção se auto fiscalize.

Ainda em relação à não cumulatividade, diferentemente do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a PEC expressamente impediu o aproveitamento de créditos oriundos aos produtos isentos, não tributados e imunes. Tal disposição, notoriamente, elimina eventuais benefícios fiscais concedidos a determinados produtos, transformando as isenções, imunidades e não tributação em mero diferimento, que transferirá o ônus à cadeia seguinte.

A vedação do aproveitamento dos créditos relativos às operações sujeitas à alíquota zero, isenção, não-incidência ou imunidade, conforme consta na PEC, será prevista no inciso II, do parágrafo 6º, do artigo 153, da Constituição Federal.

Uma medida interessante disposta na proposta é a possibilidade de aproveitamento do crédito do IVA nos casos de exportações. A proposta torna imune ao IVA a exportação de produtos ou serviços, possibilitando ao exportador o aproveitamento do crédito do IVA acumulado durante a cadeia de produção do produto ou serviço exportado.

Tal medida contribui para o desenvolvimento das atividades exportadoras, desonerando-as na medida em que torna imune a exportação e, ao mesmo tempo, possibilita o aproveitamento do crédito que certamente será acumulado pelas exportadoras.

7 - Extinção e algumas das Contribuições Sociais, Substituídas pelo IVA Federal.

A PEC altera o artigo 195 da Constituição Federal, de forma a extinguir a previsão constitucional de algumas das contribuições sociais.

Com a alteração somente será possível à União cobrar as contribuições sociais incidentes sobre:

- folha de pagamento (mantendo a contribuição patronal)

- sobre o salário do trabalhador (mantendo a contribuição incidente sobre a parcela do salário)

- sobre receitas de concursos de prognósticos (também já existente na versão anterior do artigo)

O artigo 13 da PEC, no que tange às contribuições sociais, revoga as alíneas "a", "b" e "c" do inciso I e o inciso IV do artigo 195, abaixo detalhados:

- Alínea "a"; contem a previsão relativa à contribuição patronal, que, apesar da revogação, foi mantido pela alteração do texto do inciso I do artigo 195.

- Alínea "b"; continha a previsão da incidência de contribuições sociais sobre a receita ou sobre o faturamento (PIS E COFINS) que será excluída do

universo jurídico, acarretando a extinção do PIS e da COFINS.

- Alínea "c"; continha a previsão da incidência de contribuições sociais sobre o lucro (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido), que será excluída do universo jurídico, acarretando a extinção da CSLL.

Como se vê, a princípio, não serão cobradas contribuições sociais sobre o lucro, faturamento, resultados ou sobre a receita, entretanto a PEC inclui o parágrafo 12º, no artigo 195, que prevê a possibilidade de incidência de contribuições sociais sobre tais fatores, mediante a instituição de Lei específica, para a agroindústria, o produtor rural (Pessoa física ou jurídica), consorcio de produtores rurais, cooperativas de produção rural e associações desportivas.

Pretende-se revogar ainda o disposto no parágrafo 4º, do artigo 239, que prevê a possibilidade de instituição de uma contribuição adicional ao seguro-desemprego para as empresas que possuírem um índice de rotatividade superior à média do setor.

Cabe salientar que os contribuintes não serão desonerados pelas disposições relativas à revogação de algumas contribuições sociais pela PEC, já que, em substituição às contribuições sociais extintas, serão submetidos ao IVA Federal.

Não podemos deixar de mencionar a inclusão do parágrafo 13º, no artigo 195, que prevê a possibilidade de, por meio de lei, ser substituída parte da arrecadação da contribuição patronal (prevista no inciso I do caput do artigo 195) por um aumento da alíquota do IVA Federal, hipótese em que os valores serão destinados ao financiamento da previdência social.

8 - Alterações no ICMS

A PEC revoga todas as disposições relativas ao ICMS da Constituição (Inciso II e os parágrafos 2º, 4º e 5º do Art. 155) e inclui o artigo 155-A com as seguintes disposições sobre o ICMS:

a) competência conjunta atribuída aos Estados e ao Distrito Federal;

b) instituição mediante Lei Complementar;

c) pretende tributar "operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que iniciado no exterior";

d) será não-cumulativo;

e) a não-cumulatividade será regulamentada por meio de Lei Complementar;

f) nas operações sujeitas à alíquota zero, isenção, não incidência e imunidade não será possível transferir o crédito à cadeia seguinte, salvo previsão legal no sentido contrário;

g) incidirá também sobre importações de bens, mercadorias ou serviços, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a finalidade da importação, sendo o tributo de direito do Estado ao qual se destina a operação. Tal situação deverá ser regulamentada por Lei Complementar;

h) os valores relativos aos serviços e mercadorias conexos farão parte da base de cálculo, sempre que não forem objeto de tributação dos Municípios;

i) não incidirá sobre exportações e, nesse caso, será mantido o crédito relativo às operações anteriores;

j) não incidirá sobre o ouro quando este for ativo financeiro;

k) não incidira sobre radio e TV aberta;

Sobre as disposições acima, cabe destacar a letra "g", já que inclui na Constituição a previsão que submete todas as importações ao ICMS, mesmo quando o importador não for contribuinte do ICMS e não efetuar a importação com habitualidade.

Com relação às alíquotas do novo ICMS, a proposta de emenda cria o parágrafo 2º do artigo 155-A que dispõe:

a) que as alíquotas serão definidas por resolução do Senado

b) que as alíquotas poderão ser diferentes em função de quantidade e do tipo de consumo

c) que por meio de Lei Complementar serão definido quais mercadorias e serviços poderão ter as alíquotas aumentadas ou reduzidas por lei estadual, bem como os limites e condições para tais alterações.

Com relação às operações interestaduais, o parágrafo 3º, do artigo 155A dispõe:

a) o imposto será de direito do Estado de destino da mercadoria ou serviço;

b) não será de direito do Estado de destino a parcela correspondente a alíquota de 2%, calculado sobre a base de cálculo, o que pertencerá ao Estado de origem;

c) caso a alíquota incidente seja inferior a 2%, o valor total do ICMS será de direito do Estado de destino;

d) nos casos do ICMS incidente sobre petróleo, lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos, derivados e energia elétrica, o valor total do tributo, inclusive os 2% que seria desviados ao Estado de origem, pertencerão ao Estado de destino.

Para garantir os repasses dos valores relativos aos 2% de direito do Estado de origem, a PEC prevê algumas alterações na previsão constitucional quanto a possibilidade de intervenção da União nos Estados.

De acordo com a proposta, caso algum dos Estados não repasse a parcela do produto da arrecadação do ICMS para a outra Unidade da Federação, à qual tal parcela seja devida, a União poderá utilizar-se do instituto da intervenção para sanar tal questão.

Neste caso, a intervenção será decretada mediante requisição do Poder Executivo de quaisquer Estados ou do Distrito Federal.

Tais alterações serão consolidadas pela inclusa da alínea "c'" no inciso "V" do artigo 34 e do item "V" no artigo 36, ambos da Constituição Federal.

No que tange às definições e especificações relativas a isenções ou quaisquer outros incentivos ou benefícios fiscais, o parágrafo 4º do artigo 155-A determina que:

a) serão estabelecidos por um órgão colegiado, presidido por um representante da União, sem direito a voto, e integrado por representantes de cada um dos Estados e Distrito Federal (previsto no parágrafo 7º do artigo 155-A)

b) serão estabelecidos por lei complementar no que tange aos tratamentos diferenciados atribuídos à empresas de pequeno porte e às micro-empresas.

A regulamentação será única, salvo algumas disposições que, conforme previsão na própria Constituição, poderão ser determinadas pelos Estados e Distrito Federal.

Com relação ao ICMS, caberá a Lei Complementar:

a) determinar a hipótese de incidência

b) disciplinar o regime de compensação do ICMS

c) garantir o aproveitamento do crédito

d) dispor sobre substituição tributária

e) dispor sobre regimes especiais ou simplificação de tributação

f) disciplinar o processo administrativo fiscal

g) dispor sobre a competência e funcionamento do órgão colegiado que será presidido por um representante da União, sem direito a voto, e integrado por representantes de cada um dos Estados e Distrito Federal (previsto no parágrafo 7º do artigo 155-A)

O órgão colegiado, que tratará sobre o ICMS, será composto por representantes de cada um dos Estados e do Distrito Federal e terá as seguintes competências:

a) será o responsável pela concessão de anistia, remissão ou moratória;

b) será responsável pela regulamentação do ICMS, que será única para todo o território nacional;

c) estabelecerá critérios para a concessão de parcelamentos de débitos fiscais;

d) estabelecerá critérios e procedimentos de controle e fiscalização extraterritorial;

e) poderá ter outras atribuições definidas em lei complementar.

9 - Conclusão

Da análise das possíveis alterações na Constituição Federal que poderão ser implementadas pela PEC em questão, pode-se concluir que, ao contrário do que esperavam os contribuintes, não existe qualquer disposição expressa da qual se pode concluir que teremos algum tipo de redução da carga tributária, mas, ao contrário, percebe-se ampla possibilidade do fisco onerar ainda mais a economia brasileira por meio:

- do adicional à alíquota do IRPJ;

- da impossibilidade de aproveitamento de créditos do IVA federal relativo aos insumos isentos, não tributáveis, alíquota zero e imunes;

- tributação pelo ICMS de toda e qualquer importação, inclusive de não contribuinte;

- tributação dos produtores rurais pelo IVA e por Contribuições Sociais incidentes sobre receita, etc;

Certamente, se analisarmos com mais calma as disposições contidas na PEC, encontraremos diversas outras disposições que refletirão em maior ônus aos contribuintes, sendo certo que o objetivo claro do Ministério da Fazenda é não só aumentar sua eficiência na arrecadação como também ampliar as possibilidades de instituição de tributos.

Portanto, já podemos ter uma idéia de como será estruturada a Reforma Tributária e do provável conteúdo das Emendas Constitucionais e das Leis Complementares que instituirão novos tributos e alterarão aqueles que já tanto oneram a economia brasileira.

Fernando Guido Okumura
Advogado Tributarista; Pós-graduado em Direito Tributário pela PUC/SP; MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI/USP

368) A fratura da Bolivia, Demetrio Magnoli

A nação perdida
Demetrio Magnoli
Revista Pangea, 13/10/2008

Mas as políticas étnicas bolivianas – conduzidas, em sentidos contrapostos, por Evo Morales e pela elite dirigente de Santa Cruz – não expressam teimosas realidades ancestrais: as identidades ameríndia, no Altiplano, e camba, no Oriente, são invenções recentes que funcionam como ferramentas no jogo de poder. Os plebiscitos que confirmaram o mandato do presidente, bem como os dos governadores oposicionistas do Oriente, atestam o triunfo dos dois lados na fabricação de identidades étnicas contrastantes. Para azar da Bolívia.
Não se deu a merecida atenção às fotografias das sessões da Assembléia Constituinte boliviana da qual emanou o texto constitucional que figura como pomo da discórdia. Os deputados da maioria exibiam vestimentas ameríndias tradicionais, algo que só não provoca estranheza a quem desconhece a Bolívia. Os ameríndios são 5 milhões, entre 9,1 milhões de bolivianos. Hoje, metade deles vive nas cidades. El Alto, a "cidade indígena" na periferia de La Paz, já tem 870 mil habitantes, que fazem da internet um nexo entre o mundo e as comunidades aymarás dos povoados do Altiplano. A língua espanhola, que foi o idioma apenas dos brancos e mestiços, atualmente é tão utilizada pelos índios quanto o quechua e o aymará. Os ameríndios bolivianos não usam mais vestimentas "indígenas", exceto para vender produtos a turistas ou se são representantes de um projeto étnico na Assembléia Constituinte.
A "Bolívia ameríndia" é uma ruptura identitária. Os mineiros do estanho que deflagraram a Revolução Boliviana de 1952 tinham origem indígena, mas se definiam como trabalhadores e bolivianos, não como índios. O próprio Evo Morales alçou-se à notoriedade atuando como liderança sindical dos camponeses "cocaleros". Foi só mais tarde, quando iniciou a jornada rumo à presidência, que ele se aliou aos arautos de um "renascimento aymará" e a ONGs multiculturalistas internacionais. Dessa aliança nasceu o projeto de uma "Bolívia plurinacional", agora consagrado na letra de uma Constituição que acende a fagulha da guerra civil.
"Elite branca" – esse é o epíteto usado pelos governistas para fazer referência aos oposicionistas da "Meia-Lua" boliviana. Entretanto, nos departamentos orientais, elites e povo não se enxergam como brancos, mas como mestiços cambas. O movimento camba nasceu como reação à Revolução Boliviana dos mineiros de estanho, fabricando uma suposta identidade ancestral para o povo do Oriente. Segundo essa narrativa romântica, os cambas seriam os frutos da miscigenação entre brancos de origem espanhola e guaranis das terras baixas. O relicário de imagens dos guaranis "ancestrais" desempenha, em Santa Cruz, funções simbólicas paralelas às das "nações originárias" ameríndias em La Paz.
A ascenção de Evo Morales, portando a bandeira da restauração das "nações originárias", forneceu combustível para a transformação do projeto identitário camba num movimento popular. Evo e os seus continuam a crismar os opositores como "minoria oligárquica", mas sabem que não é bem assim. Eis o motivo pelo qual, diante das alternativas da repressão e da negociação, optaram pela segunda.
Paradoxalmente, a natureza trágica do impasse boliviano decorre da convergência de fundo entre La Paz e Santa Cruz, sintetizada na fórmula da "Bolívia plurinacional". Essa fórmula significa que todos estão de acordo em renunciar à nação boliviana. De acordo com ela, a Bolívia não existe, a não ser na forma de uma entidade territorial: uma moldura geográfica habitada por nações distintas, em tudo apartadas. O consenso da renúncia molda os dissensos políticos capazes de ensangüentar o país.
Nos tempos da Revolução Boliviana, a riqueza da Bolívia estava incrustada no subsolo do Altiplano indígena, sob a forma de extensos veios de cassiterita. Hoje, a riqueza encontra-se nos depósitos de hidrocarbonetos do subsolo do Oriente camba. Na cúpula da Unasul, dias atrás, Evo Morales defendeu a "unidade" do país e acusou os opositores de tramarem a "divisão". Na sua tradução da "Bolívia plurinacional", as "nações" bolivianas têm direito à autonomia, mas a "unidade" repousa sobre o controle central dos recursos naturais e das rendas dos hidrocarbonetos. Os governadores da "Meia-Lua", por sua vez, exigem que essas rendas sejam subordinadas ao princípio da descentralização e aos privilégios autonômicos departamentais.
A nação, nas palavras de Benedict Anderson, é uma "comunidade imaginada". Os bolivianos imaginaram-se como integrantes de uma nação única mesmo nas turbulências incessantes de quase toda a segunda metade do século 20. Agora, em virtude das opções de suas elites políticas, tanto a do Altiplano quanto a do Oriente, imaginam-se como soldados de nações étnicas separadas pela fronteira intransponível do sangue. Na cúpula da Unasul, Hugo Chávez atribuiu a crise à "ingerência do império americano" e a "uma espécie de greve" do comando militar boliviano. Mas, apesar do que pensa o venezuelano, a crise é nacional e os chefes militares comandam um exército rachado de alto a baixo pela mesma linha de corte que divide a nação.
Manifestando seu respaldo ao governo de Evo Morales, o presidente equatoriano Rafael Correa prometeu que a América Latina não permitirá a conversão da Bolívia nos "Bálcãs". Ninguém, exceto os bolivianos, tem o poder de realizar esse desejo. Mas não será fácil, pois o requisito é uma renúncia à renúncia. Depois de tudo, alguém ainda quer ser simplesmente boliviano?

Demétrio Magnoli
Revista Pangea
www.clubemundo.com.br/revistapangea/show_news.asp?n=353&ed=1

367) Diplomacia sem valor

O texto abaixo é antigo, mas seu "valor intrínseco" guarda todo o seu valor formal e substantivo...

Diplomacia sem valor
Demétrio Magnoli
Revista Pangea, 6/5/2002

O afastamento de José Maurício Bustani do cargo de diretor da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) é um detalhe no cenário internacional convulsionado pela “guerra contra o terror” dos EUA. Quem se importa com um diplomata brasileiro ou os destinos da Opaq quando o espectro da guerra parece estar em todos os lugares? Mas o detalhe é daqueles plenos de significados pois, na sua singularidade, desvenda o sentido da grande paisagem.
A Opaq é uma agência multilateral destinada a implementar a Convenção de Armas Químicas, um tratado negociado há mais de uma década, que entrou em vigor em 1997. A agência tem, atualmente, a participação de 145 Estados. Entre as suas metas explícitas figura a incorporação ao tratado de todos os Estados que ainda não o reconhecem. Sob a direção de Bustani, a Opaq buscava a incorporação do Iraque. Foi, sobretudo, essa iniciativa que provocou a ira de Washington, a operação de pressões e intimidações contra o diretor e, finalmente, a vitoriosa moção de censura que o afastou.
Bustani matou a charada: “Eu buscava um diálogo com aqueles países que supostamente fazem parte do ‘eixo do mal’. Mas será que os EUA querem mesmo acabar com o eixo?” A eventual incorporação do Iraque obrigaria Saddam Hussein a se submeter ao regime de controle e destruição de armas químicas. Mas Washington não quer um Iraque sem armas químicas. Os arsenais iraquianos de armas de destruição em massa, reais ou virtuais, são elementos indispensáveis para a próxima etapa da “guerra contra o terror”. Sem eles, como isolar diplomaticamente o Iraque e executar a planejada campanha militar de derrubada de Saddam?
Na sua operação contra Bustani, Washington pretendia assegurar o monopólio do Conselho de Segurança (CS) da ONU na condução da questão dos arsenais iraquianos. Os EUA exercem suficiente controle sobre o CS para evitar um acordo de inspeções capaz de eliminar os pretextos que “justificam” a campanha militar contra Saddam. O CS serve, nesse momento, como instrumento do unilateralismo imperial da administração Bush. A Opaq representava o multilateralismo diplomático, assentado sobre a teia de tratados que prendem as peças do sistema internacional de Estados. Por isso, era preciso eliminar a Opaq.
Bustani matou mais essa charada: “Eu só posso interpretar a ofensiva lançada contra mim como uma ofensiva contra a própria Opaq”. Os EUA passaram um rolo compressor na Opaq. Pressionaram, até o limite, seus aliados europeus, ameaçando abandonar a agência. Prometeram vantagens para países africanos e asiáticos. Pagaram, na última hora, as contribuições de países como o Gabão, para que pudessem votar. Conseguiram 48 votos. Mesmo assim, 43 Estados revelaram, por meio da abstenção, a sua indignação silenciosa. Bustani teve sete votos e deixou o centro de conferência ovacionado por quase todas as delegações. De agora em diante, existe um precedente: qualquer agência multilateral pode ser reduzida à irrelevância pela vontade exclusiva de Washington.
Bustani não era diretor da Opaq por acaso: estava lá por ser um diplomata brasileiro. O Brasil não tem armas nucleares ou influência econômica global, mas tem um outro tipo de poder, materializado na tradição de defesa do multilateralismo. Contudo, o Itamaraty abandonou Bustani, estendendo um tapete vermelho para a tropa de choque dos EUA.
A infâmia começou semanas antes do desfecho. Quando as pressões americanas passaram a ser divulgadas pela imprensa, o Itamaraty trocou um silêncio ensurdecedor por notas oficiais que descreviam Bustani como “diplomata licenciado”, ocupando um posto internacional “a serviço da Opaq”. Faltou só cassar o passaporte do diplomata, tornando-o um apátrida. O grotesco formalismo jurídico mal disfarçava a vontade de esconder que estava em jogo o princípio do multilateralismo e, com ele, o patrimônio diplomático brasileiro.
As declarações e notas emanadas do Itamaraty limitaram-se a afirmar que o Brasil “confia” em Bustani e “não acredita” que ele tenha gerido mal os fundos da Opaq. Assim, o Brasil legitimava a operação dos EUA, baseada na divulgação de calúnias grosseiras, que contrariam evidências e auditorias. Os embaixadores brasileiros no exterior, sob orientação de cima, recolheram-se ao silêncio. Não solicitaram aos governos junto aos quais atuam o apoio a Bustani. Não deram declarações à imprensa denunciando a operação em curso. Afinal, o que o Itamaraty tem a ver com um “diplomata licenciado”?
No dia do desfecho, o Itamaraty não dirigiu a Washington sequer um protesto, oficial ou informal. Ao contrário: Celso Lafer, o ministro do Exterior, passou o dia louvando a qualidade das relações entre o Brasil e os EUA e assegurando que o episódio da Opaq não teria o menor impacto sobre o relacionamento bilateral.
“Vivemos num mundo maquiavélico”, não num “mundo de valores”, e é nesse ambiente que temos que defender os “interesses nacionais”. Foi essa a justificativa de Lafer, embrulhada na linguagem das Relações Internacionais, para a pantomima do Itamaraty. A contraposição do “maquiavelismo” aos “valores” é uma tentativa, superficial e bufa, de desviar o foco.
Os interesses nacionais exigem a defesa de valores que ampliam o poder a a autonomia do Brasil no “mundo maquiavélico” onde se exerce a hegemonia da hiperpotência unilateralista. O multilateralismo – político e econômico – é um valor crucial nesse cenário. O abandono do “apátrida” Bustani assinala um mergulho sombrio da diplomacia brasileira, que renega as suas melhores tradições e age contra os interesses nacionais. É o rumo de uma diplomacia sem valor.

Demétrio Magnoli é doutor em Geografia Humana pela USP e diretor-editorial do jornal Mundo – Geografia e Política Internacional.

quarta-feira, outubro 22, 2008

366) Escravidao e Racismo

Escravidão e Racismo
Rodrigo Constantino

"A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?" (José Bonifácio)

Quando se fala em escravidão, logo vem à mente a imagem de um homem branco do ocidente mantendo um escravo negro africano. No entanto, uma análise histórica da escravidão como instituição logo rejeita esta visão racista, pois a escravidão existiu por milhares de anos, muitas vezes entre a mesma "raça". Como explica Thomas Sowell, "os negros não viraram escravos porque eram negros, mas porque eles estavam disponíveis no momento". Brancos escravizaram outros brancos por séculos na Europa antes dos negros serem trazidos para o continente. Além disso, asiáticos escravizaram outros asiáticos, africanos escravizaram outros africanos, e os nativos do hemisfério ocidental escravizaram outros nativos. A escravidão não era um fenômeno de raça.

O que torna a situação americana peculiar não é apenas o fato de a escravidão ter sido entre "raças" diferentes, mas sim dela entrar em confronto com os pilares filosóficos de liberdade predominantes no país. A Declaração de Independência, escrita pelos "pais fundadores" da nação, pregava a igualdade de todos os homens perante as leis, com base no direito natural. Tamanha a sua influência na mentalidade do povo, era visivelmente contraditório manter escravos. Seria um atestado de que homens negros eram menos do que homens, um absurdo que infelizmente durou tempo demais para ser eliminado. No entanto, não podemos perder de vista o fato de que ali estavam as sementes para a abolição. Na maior parte do mundo, na mesma época, ninguém parecia ver nada de errado com a escravidão. Há um século, apenas o ocidente condenava a escravidão, e há dois séculos, somente uma pequena parcela dele o fazia. O restante conviva com bastante naturalidade com a escravidão. Foi o maior poder bélico e econômico ocidental que possibilitou a imposição da abolição em outras partes do globo.

Algumas pessoas, com um viés marxista que enxerga o dinheiro como causa de tudo, argumentam que somente o interesse econômico fez com que o ocidente resolvesse acabar com a escravidão. Em primeiro lugar, eles devem explicar porque a escravidão durou tantos séculos então. É fato que a escravidão é ineficiente do ponto de vista econômico, pois o capitalismo mostrou como trabalhadores livres e motivados podem ser bem mais produtivos. Mas seria curioso entender porque somente no século XIX essa lógica prevaleceu, especificamente no ocidente. Na verdade, foram as idéias liberais que enterraram de vez a escravidão. Idéias de pensadores como John Locke, abraçadas pelos "pais fundadores" dos Estados Unidos, que defenderam a liberdade individual como um direito natural, acima de qualquer lei escrita. Os principais abolicionistas baseavam sua causa em princípios morais, retomando a idéia da lei natural advogada por Thomas Jefferson na Declaração, que era usada diretamente para defender seus argumentos.

O famoso caso Amistad de 1839 foi o primeiro no qual se apelou para a Declaração, e o ex-presidente americano John Quincy Adams fez uma defesa eloqüente dos africanos presos. Seu longo discurso diante da Suprema Corte contou com o seguinte argumento: "No momento em que se chega à Declaração de Independência e ao fato de que todo homem tem direito à vida e à liberdade, um direito inalienável, este caso está decidido". Abraham Lincoln foi outro que apelou constantemente à Declaração para defender a causa abolicionista. O texto foi uma vez mais invocado por outro grande defensor da igualdade perante a lei, Martin Luther King Jr. Seu mais famoso discurso, sobre seu sonho de viver numa nação livre, faz alusão direta ao trecho da Declaração onde todos os homens são criados iguais, uma verdade evidente por si mesma. Outro abolicionista conhecido, David Walker, escreveu em 1823 um texto usando os trechos da Declaração, e questionando se os americanos compreendiam o que estava sendo dito ali. Enfim, os maiores defensores da abolição beberam diretamente da fonte liberal presente na Declaração de Independência.

No Brasil, o combate à escravidão contou com um forte aliado na figura de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Seus argumentos, em discurso pronunciado na Assembléia-Geral em 1824, eram claramente influenciados pela visão liberal. Bonifácio chegou a apelar para o argumento econômico também, explicando que os agricultores não deveriam temer o fim da escravidão, que seria inclusive benéfico para seus negócios. Ele questiona: "Mas como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos?" Mas o pilar de seu discurso era moral. Contra os defensores da escravidão com base no direito de propriedade, eis o que Bonifácio argumentou: "Não é, pois, o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade". E acrescentou ainda: "Não basta responder que os compramos com o nosso dinheiro; como se o dinheiro pudesse comprar homens! – como se a escravidão perpétua não fosse um crime contra o direito natural". Em resumo, a escravidão é injusta, pois ignora que todos os homens merecem tratamento igual perante as leis, e que nascem livres.

Muitos dos que alimentam a visão estritamente racista da escravidão são os mesmos que costumam condenar o liberalismo. No fundo, gostam sempre de atacar a cultura ocidental, pintando um quadro extremamente negativo do homem branco, particularmente o anglo-saxão. São curiosamente adeptos de uma esquerda que tantas vezes enalteceu o socialismo, mesmo que seu resultado tenha sido justamente o retorno da escravidão. Talvez por um estranho sentimento de culpa, essa elite branca seja a voz mais estridente na demanda por reparação, exigindo medidas racistas, como as cotas. Não obstante o fato de que nem mesmo um pai transfere dívida líquida para seu filho, querem jogar nos ombros de inúmeros brancos inocentes um pesado fardo para carregar. Falar sobre a escravidão na própria África não agrada esta agenda "politicamente correta", e por isso nunca se lê sobre ela na grande mídia. Negros com escravos negros? E quem vai reparar quem?

Esses defensores de cotas deveriam pensar bem antes de falar em compensação com base na história. Um estudo mais cauteloso mostraria que esta visão coletivista faria com que praticamente todos devessem alguma compensação a todo mundo. E para quem preferir atacar a cor do autor desses argumentos, em vez dos próprios argumentos em si, lembro que Thomas Sowell expôs exatamente esta linha de raciocínio. Ele é negro.

A escravidão não depende do racismo. A escravidão, que foi a regra durante quase toda a história da humanidade, deve ser combatida com base nos princípios liberais de igualdade perante as leis, pois todos nascem livres e desfrutam dessa liberdade como um direito natural. É justamente essa igualdade que os defensores das cotas tentam derrubar. Em nome do combate ao racismo, uma parte da esquerda resolveu pregar o retorno da escravidão. Devemos usar, uma vez mais, os argumentos presentes na Declaração de Independência americana contra esses movimentos, para preservar a nossa liberdade.

http://rodrigoconstantino.blogspot.com

terça-feira, outubro 21, 2008

365) Protecionismo argentino contra produtos brasileiros

Crisis financiera, MERCOSUR y el MAC (salvaguardias)
Por Alejandro D. Perotti
LA LEY (AÑO LXXII, N° 201, BUENOS AIRES, ARGENTINA; Lunes 20 de octubre de 2008; ISSN 0024-1636)

Introducción
1. En los últimos días, y como producto de la crisis financiera mundial, el Gobierno nacional se halla evaluando, entre otros asuntos, el comercio bilateral con Brasil. El origen de dicha preocupación se halla en la fuerte devaluación del real brasileño, lo que provocará, según los analistas, un importante aumento de las importaciones argentinas desde el Brasil; asimismo, y como consecuencia de la revaluación del dólar en el país del samba, las exportaciones nacionales perderán competitividad, y con ello participación en el mercado carioca. En definitiva, los resultados que el Gobierno está analizando son: aumento de las importaciones brasileñas y disminución de las exportaciones argentinas.
Bien es cierto que la contracción de la economía mundial, principalmente en los países desarrollados, provocará una agresiva política de “colocación” de exportaciones en mercados alternativos, en particular de los exportadores chinos. Sin embargo, la devaluación brasileña y la amplificación del comercio bilateral como consecuencia del MERCOSUR provocan que la lupa sea dirigida con mayor atención hacia el hermano país.
2. En este contexto, según los medios de prensa, el Gobierno se apresta a ensayar una serie de medidas que restrinjan las importaciones brasileñas. Sin embargo, las autoridades han dejado bien en claro que cualquier herramienta que se aplique será consensuada con el Gobierno carioca y sin que ello melle las buenas relaciones con el vecino país.
3. En el marco de las reuniones de trabajo entre distintos ministerios, la Cancillería ha esgrimido la posibilidad de utilizar (“desempolvar”) el denominado “MAC” (Mecanismo de Adaptación Competitiva) en el comercio bilateral con Brasil.

¿Qué es el MAC?
4. El MAC constituye, ni más ni menos, que un mecanismo de salvaguardia. En el marco de los acuerdos comerciales internacionales, las salvaguardias —una especie de adaptación de la “teoría de la imprevisión”— son cláusulas que permiten a una de las partes contratantes y sin que ello signifique violar el acuerdo—, ante el aumento desproporcionado de las importaciones de determinados productos en un lapso de tiempo relativamente corto, y siempre y cuando ello produzca daños —o su amenaza— a una rama de la economía nacional, suspender transitoriamente algunas de sus disposiciones, en particular las vinculadas a la libre circulación de mercaderías, por un período de tiempo prefijado, el cual servirá para la adaptación del sector afectado.
El MAC, adicionalmente, reglamenta este último aspecto, obligando al Estado que desee utilizarlo a concertar con el sector nacional afectado un plan de reestructuración empresarial —a ser aplicado dentro del plazo de vigencia del MAC— que permita a la industria estar en condiciones de competir con los productos importados, una vez que dicho mecanismo sea suprimido.
5. El MAC se halla regulado en un acuerdo bilateral suscripto entre Argentina y Brasil, el 1 de febrero de 2006; y fue protocolizado en la ALADI (Asociación Latinoamericana de Integración) el 11 de abril del mismo año, como 34° Protocolo Adicional (“Adaptación competitiva, integración productiva y expansión equilibrada y dinámica del comercio”, ACE-14/34) al Acuerdo de Complementación Económica N° 14 (ACE-14). Este último también está protocolizado en la ALADI.
El ACE-14 es el antecedente inmediato del Tratado de Asunción, y en términos resumidos establece el mismo objetivo que el MERCOSUR, es decir, la constitución de un mercado común.
Al firmarse el Tratado de Asunción, que significó incluir a Paraguay y Uruguay en el proyecto original, los Estados Partes lo protocolizaron en la ALADI, y es lo que se conoce como ACE-18. El nacimiento del ACE-18 provocó que se vaciara de contenido al ACE-14 dado que todo el comercio exterior —de importación y de exportación— de los cuatro Estados Partes comenzó a canalizarse por el primero. La única excepción ha sido el comercio del sector automotriz, el cual, ante la falta de consenso para su regulación en el MERCOSUR, en lo que hace al comercio argentino–brasileño, sigue bajo el amparo del ACE-14.

¿Es aplicable el MAC?
6. Definitivamente, el MAC, a pesar de la propuesta de las autoridades, es inaplicable o, en el mejor de los casos, ineficaz.
7. En primer lugar, es inaplicable según sus propios términos. En efecto, su artículo 30 (MAC, ACE-14/34) prevé que “entrará en vigor en forma simultánea cuando ambas Partes comuniquen a la Secretaría General de la ALADI que lo han incorporado a su derecho interno, en los términos de sus respectivas legislaciones, la que, a inicio de su vigencia”. Sin embargo, a la fecha (13/10/2008) ni Argentina ni Brasil, han notificado a la Secretaría General de la ALADI la incorporación del MAC a sus derechos internos, por lo cual el mismo no está vigente.
8. En segundo lugar, el MAC es ineficaz por varias razones:
9. i) No se puede aplicar al comercio intra MERCOSUR, dado que es un acuerdo bilateral, sólo suscripto entre Argentina y Brasil. Esto es relevante dado que, tal como antes se señaló, todo el comercio con Brasil —salvo el sector automotriz— (así como también con Paraguay y Uruguay) se canaliza por el MERCOSUR (ACE-18).
Y aún en el hipotético caso de que algún importador (o exportador) continuara usando el ACE-14, le bastaría con declarar que su importación (o exportación) se realiza bajo el ACE-18 (cumpliendo los requisitos de origen) para quedar a salvo del MAC.
El único sector sobre el cual se puede aplicar el MAC es el automotriz, y éste es justamente uno de los cuales Argentina no quiere restringir.
10. ii) Pero la inaplicación del MAC al comercio bilateral con Brasil que se canalice por el MERCOSUR no se impone únicamente —por su fuera poco— por su suscripción bajo el ACE-14, sino por una razón jurídica. Y es que el Tratado de Asunción (Anexo IV) prohíbe taxativamente la aplicación de medidas de salvaguardia a las importaciones de productos originarios de los Estados Partes.
Y esto no es desconocido por las autoridades nacionales, ya que en el año 2000, ante una demanda de Brasil, el Tribunal ad hoc del MERCOSUR declaró que la Argentina había violado el derecho regional al aplicar —mediante la Resolución N° 861/99 ME (Ministerio de Economía)— medidas de salvaguardia a las importaciones brasileñas de textiles. El Tribunal consideró que la prohibición de salvaguardias intrazona prevista en el Tratado de Asunción era plenamente operativa e impedía a los Estados Partes implementar tales medidas a los productos de los demás Estados Partes. Argentina cumplió el laudo derogando la salvaguardia (Resolución 265/00 ME). Posteriormente, el ME ha aplicado dicha doctrina en varias resoluciones posteriores (N° 348/01, 158/06 y
351/07, entre otras).
Los demás Estados Partes han observado dicha prohibición del Tratado de Asunción. Así por ejemplo, el dictamen del Consultor Jurídico del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil, Prof. Dr. Antônio Cachapuz de Medeiro, del 3 de mayo de 2000, presentado en el marco del trámite judicial sobre importaciones de arroz argentino y uruguayo; posición que fue convalidada por el Superior Tribunal de Justicia (STJ) brasileño que revocó una medida de salvaguardia, establecida por el Tribunal Regional Federal de la 4ª Región (Porto Alegre), por su incompatibilidad con el Tratado de Asunción (PET 1.273) (1).
En el año 2005, Paraguay presentó durante su Presidencia Pro Tempore un proyecto de Decisión del Consejo del Mercado Común (CMC) para implementar medidas de salvaguardia en el comercio intrazona. La Secretaría del MERCOSUR (SM), a través de un dictamen consideró recordando la doctrina sentada por el Tribunal ad hoc— que dicho proyecto no podía ser válidamente aprobado dado que las salvaguardias estaban prohibidas por el Tratado de Asunción, y el CMC, a través de una Decisión, no podía modificar
el Tratado, ya que para ello era necesario aprobar un instrumento de jerarquía similar —por ejemplo, un Protocolo—, el cual requeriría su aprobación por los Congresos nacionales. Las Decisiones del CMC son de jerarquía inferior al Tratado de Asunción.
Al tratarse el proyecto en el seno de la Reunión del CMC, Uruguay rechazó la propuesta de Decisión, endosando varios de los argumentos de la SM. Seguramente, el Gobierno oriental tuvo en consideración asimismo que la aplicación de medidas de salvaguardia, cuando son decididas por los Estados Partes y no por órganos independientes (como ocurre en las Comunidades Europeas o en la Comunidad Andina), por lo general, suelen tener mejores efectos para los países de mayor tamaño, en comparación con los de menores dimensiones.
Dada la falta de consenso para lograr la implementación de salvaguardias en el MERCOSUR, Argentina y Brasil decidieron su regulación bilateralmente, lo cual dio origen al citado ACE-14/34 (MAC).
11. iii) El MAC encierra una cuestión conflictiva adicional. Su artículo 17 obliga a que si como consecuencia de su aplicación se produjere desvío de comercio —esto es “un aumento de las importaciones del producto objeto del MAC originario de terceros Estados”—, el Estado que lo aplica “adoptará las medidas tendientes a corregir dicha situación”. Ahora bien, esto es sólo operativo para situaciones de desvío de comercio que involucren importaciones extra MERCOSUR, dado que si éstas provienen de Paraguay y Uruguay las medidas restrictivas al comercio —necesarias para eliminar el desvío de comercio— podrán ser atacadas por infringir el “Programa de Liberación Comercial” del Tratado de Asunción, pudiendo ser llevado el caso, en última instancia, ante el
Tribunal del MERCOSUR.

12. En definitiva, el MAC:
1) no se encuentra en vigor;
2) es inaplicable al comercio intra MERCOSUR (incluyendo el intercambio Argentina–Brasil), ya que fue negociado al amparo del ACE-14, y
3) es ineficaz dado que las corrientes comerciales entre Argentina y Brasil se canalizan por las normas del MERCOSUR (ACE-18) y no por el ACE-14 (excepto, sector automotriz).
Por último, cabe recordar que el Tratado de Asunción prohíbe la aplicación de medidas de salvaguardias al comercio intra MERCOSUR.
13. La única posibilidad para implementar medidas de salvaguardia entre los Estados Partes —incluyendo a las importaciones desde Brasil— es la previa modificación del Tratado de Asunción a través de un instrumento de su misma jerarquía, el cual deberá contar con la aprobación de los Congresos nacionales. De lo contrario, las salvaguardias que se apliquen culminarán siendo invalidadas por los tribunales nacionales —quienes cuentan ahora con el auxilio del Tribunal del MERCOSUR a través del mecanismo de las Opiniones Consultivas (2)—, con los costos que para las arcas públicas implican los juicios, más aun cuando los mismos están acompañados de condenas por daños y perjuicios.

(1) STJ, decisão monocrática, PET [Petição] 1.273/RS, rel. Min. Paulo Costa Leite (presidente), 08/06/00, Notícias do STJ 08/06/00,
confirmado ello por otras decisiones dictadas en el mismo expediente [STJ, decisão monocrática, PET 1.273/RS, rel. Min. Nilson Naves (vicepresidente en ejercicio de la presidencia), 25/07/00, DJU (Diário Judicial da União) 01/08/00; Corte Especial, AgRg (Agravo Regimental) na PET 1.273/RS, rel. Min. Paulo Costa Leite, 02/08/00, DJU 18/09/00, y AgRg no AgRg na PET 1.273/RS, rel. Min. Nilson Naves, 29/08/02, DJU 30/09/02], como así también en otras causas [STJ, decisão monocrática, REsp (Recurso Especial) 726.774/RS, rel. Min. José Delgado, 16/03/05, DJU 06/04/05, y Primeira turma, EDcl (Embargos de declaração) no REsp 726.774/RS, rel. Min. José Delgado, 05/05/05, DJU 13/06/05]. Para un comentario, puede verse, del autor, “El arroz... la gran base... para una decisión que afianza el Derecho Mercosur (Medidas Cautelares). La sentencia del Superior Tribunal de Justiça del 8 de junio de 2000”, Revista Derecho del Mercosur N° 4, agosto 2000, ed. La Ley, Buenos Aires, págs. 237-246.
(2) CSJN, Acordada 13/2008, por la que se aprueban las “Reglas para el trámite interno previo a la remisión de las solicitudes de opiniones consultivas al Tribunal Permanente de Revisión del Mercosur”, 18/06/08, BO 23/06/08, págs. 12-13.

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Este jurista argentino confirma o que venho dizendo desde o inicio das discussões em torno dos mecanismos defensivos aplicados pela Argentina contra produtos do Brasil. Esse tipo de mecanismo não é apenas ilegal e abusivo do ponto de vista das normas do Mercosul, ele também é ilegal e completamente contrário às normas do comércio internacional, do ponto de vista dos códigos de salvaguardas e demais mecanismos de defesa comercial do sistema GATT-OMC.
A anuência das autoridades brasileiras com esse tipo de contravenção à letra e ao espírito do Tratado de Assunção configura não apenas uma violência contra os interesses exportadores brasileiros, ela constitui uma aberração jurídica que não pode ser aceita por nenhum tribunal que decida acatar as obrigações internacionais do Brasil.
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Paulo Roberto de Almeida
www.pralmeida.org

sexta-feira, outubro 17, 2008

364) Revisitando a Guerra Civil Espanhola

A recuperação da memória histórica na Espanha
José Yoldi
Madri, El Pais, 17/10/2008

O juiz Baltasar Garzón entrou para a história nesta quinta-feira como o primeiro magistrado espanhol que atribuiu ao ditador Francisco Franco e a outros 34 chefes militares que dirigiram a rebelião contra o regime legalmente constituído da Segunda República Espanhola a implementação de um plano de extermínio sistemático de seus adversários políticos e de uma repressão que acabou com pelo menos 114.266 pessoas desaparecidas das quais não se explica o paradeiro e que, na opinião dele, constitui um contexto de crimes contra a humanidade. O juiz se declarou competente para investigar as denúncias apresentadas pelas Associações da Memória Histórica e ordenou que se iniciem as exumações dos cadáveres de 19 fossas comuns, entre as quais está a que supostamente contém os restos do poeta Federico García Lorca, assassinado em Granada.

Em uma resolução no mínimo original, Garzón assumiu a investigação da causa por considerar que os seqüestros com desaparecimento de pessoas são delitos permanentes até que se dê conta do paradeiro dos seqüestrados, o que determina que não são afetados pela prescrição nem podem ser amparados por uma lei de anistia. Mas a competência da Audiência Nacional (Ministério Público) não é determinada pela investigação desses delitos, que considera em um contexto de crimes contra a humanidade por existir um plano sistemático de extermínio, mas porque Franco encabeçou um golpe de Estado contra o governo legítimo, democraticamente eleito, e os delitos contra a forma de governo e os altos organismos da nação, sim, estão atribuídos à Audiência Nacional. Esse delito está relacionado aos desaparecimentos e o juiz considera Franco outros 34 generais e ministros responsáveis pelos mesmos.

O processo menciona expressamente: "A ação desferida pelas pessoas sublevadas e que contribuíram para a insurreição armada de 18 de julho de 1936 esteve fora de toda legalidade e atentou contra a forma de governo (delitos contra a Constituição, do Título II do Código Penal de 1932, vigente quando ocorreu a sublevação), de forma coordenada e consciente, determinados a acabar pelas vias de fato com a República mediante a derrubada do governo legítimo da Espanha, e dar lugar com isso a um plano preconcebido que incluía o uso da violência como instrumento básico para sua execução". No entanto, o magistrado está consciente de que Franco e todos os integrantes da relação de golpistas que inclui no auto já morreram. Por isso solicitou aos registros civis que lhe enviem no prazo de dez dias os certificados de óbito de todos eles, com a finalidade de declarar extinta sua responsabilidade criminosa por esse delito.

Sem a possibilidade de investigar o delito, a Audiência Nacional não seria mais competente no caso e Garzón deverá remeter as autuações aos juizados territoriais correspondentes dos lugares onde foram cometidos os desaparecimentos forçosos. Isso quer dizer que no prazo de um mês, no máximo dois, Garzón não poderá mais seguir com o caso.

Enquanto isso, Garzón se diverte em lembrar no auto os bandos dos generais Mola e Queipo de Llano, os quais ordenavam passar pelas armas todos os que se opusessem ao levante, os comunistas, marxistas, etc., e as declarações de Franco ao jornal "Chicago Herald Tribune" em 27 de junho de 1936, nas quais assumia que teria de matar meia Espanha. Para estabelecer a existência do plano de desaparecimento e extermínio, cita vários historiadores e conclui com o corolário de Secundido Serrano: "Não foi só uma guerra civil, mas também um programa de extermínio", acompanhado do ocultamento sistemático dos corpos, de forma que os familiares não pudessem encontrar o local do enterro. O magistrado lembra que esses crimes atrozes nunca foram investigados penalmente na Espanha, e que "até o dia de hoje a impunidade foi a regra diante de acontecimentos que poderiam ter a qualificação jurídica de crime contra a humanidade".

Também afirma que não pretende fazer uma causa geral, nem uma revisão da Guerra Civil em foro judicial, mas explica que os vencedores, seguindo instruções do promotor geral do Estado, recém-acabada a guerra, abriram uma causa geral contra as chamadas vítimas do "terror vermelho". Apesar de Gallardón e outros governantes terem enviado ao juiz listas de mortos de ambos os lados, a investigação de Garzón se refere unicamente a um deles. Isso fica claro quando o auto indica: "Os vencedores da Guerra Civil aplicaram seu direito aos vencidos e mobilizaram toda a ação do Estado para a localização, identificação e reparação das vítimas caídas da parte vencedora. Não aconteceu o mesmo em relação aos vencidos, que além disso foram perseguidos, encarcerados, desaparecidos e torturados por aqueles que haviam quebrantado a legalidade vigente ao levantar-se em armas contra o Estado, chegando a aplicar-lhes retroativamente leis (...) tanto durante a contenda como depois, nos anos do pós-guerra, até 1952".

A promotoria da Audiência Nacional já anunciou a apresentação de um recurso de apelação contra a decisão do juiz Garzón, que previsivelmente será decidida pelo plenário da Sala Penal.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

terça-feira, outubro 14, 2008

363) Teses sobre o novo imperio: os EUA como poder aroniano e Estado westfaliano

Mundorama

Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial: Os Estados Unidos e o Brasil nas relações internacionais,
Paulo Roberto de Almeida
Em: Abril 22, 2008


Uma pequena, mas necessária, introdução

Vou propor algumas teses simples e diretas sobre o papel dos EUA no atual cenário da segurança internacional. Antes, contudo, preciso adiantar que parto de uma premissa fundamental para a discussão dessa questão e para meus propósitos explicativos: a segurança estratégica de um país tão “aroniano” e tão “westfaliano” como os EUA, não pode ser diferenciada ou separada das demais condições econômicas e ambientais que se traduzem em segurança para os negócios e para a vida dos seus cidadãos, o que significa a manutenção de um ambiente competitivo, externa e internamente, aberto aos méritos privados e às capacidades individuais, o que corresponde, exatamente, ao que são, em sua essência fundamental, os EUA. Para resumir o sentido geral dos argumentos contidos neste texto, eu diria, retomando o subtítulo deste ensaio, que os EUA configuram, no contexto internacional atual, duas características básicas: um poder aroniano e um Estado westfaliano. A noção aroniana remete, obviamente, às raízes do pensamento do grande cientista social francês, Raymond Aron, em especial a seus estudos sobre a guerra e a paz. Já o adjetivo histórico westfaliano se refere aos esquemas de reconhecimento recíproco da soberania exclusiva e excludente dos Estados-nações partícipes de um sistema de relações internacionais. De uma parte, os EUA são um poder aroniano por excelência, ou seja, um Estado que soube, melhor do que qualquer outro, no concerto de nações, conjugar e combinar os dois vetores essenciais de qualquer capacidade de projeção internacional. Esses vetores são constituídos, de um lado, por uma presença dilatada e ativa nos mais diversos foros e cenários abertos à sua diplomacia e, de outro, por uma poderosa ferramenta de afirmação do seu poder primário, isto é, sua força militar, que permanece incontrastável desde um século aproximadamente. O diplomata e o soldado, ainda que o primeiro apareça como bem menos eficiente do que o segundo, são os instrumentos sempre presentes da afirmação internacional ímpar desse hegemon relutante, desse decisor incontornável, de última instância, nos assuntos de segurança internacional e desse árbitro unilateral, por vezes arrogante, das questões de segurança de outros países, incapazes, por sua própria vontade e poder, de dirimir certas contendas ou de afastar certas ameaças.De outra parte, os EUA constituem também um Estado radicalmente westfaliano, no sentido em que eles serão, provavelmente, a última nação do planeta disposta a ceder soberania a qualquer entidade intergovernamental, internacional ou supranacional que possa ser chamada a exercer, pela evolução natural ou dirigida do direito internacional, competências reguladoras ou decisoras infringindo o mandato original conferido ao seu congresso, vale dizer, ao povo dos EUA. Contrastando com outras nações, da Ásia do Sul à América Latina, passando sobretudo pela Europa, mas também pelo Oriente Médio e pela África, que consentem em renunciar, por vezes alegremente, à sua soberania – em políticas macro e setoriais, em questões monetárias e até em matéria de defesa –, os EUA não são sequer relutantes quanto a isso: eles simplesmente não cogitam em colocar qualquer aspecto de sua soberania exclusiva, política, econômica e a fortiori militar, nas mãos de qualquer outro poder político que não seja o seu próprio Congresso e, em última instância, o seu povo. A China talvez possa ser um Estado tão “westfaliano” quanto os EUA, mas ela é muito pouco aroniana em sua natureza profunda e em seu modo de ser. Em suma, estamos falando, no caso dos EUA, de uma democracia irredutível e indivisível, isto é, não solúvel nas águas do direito internacional e não fracionável em partes menores. Dito isto, vejamos, em primeiro lugar, quais seriam as minhas poucas teses, simples, sobre a natureza essencial do poder dos EUA, para depois examinar, numa segunda etapa, seu papel na segurança internacional.
As entranhas do monstro imperial (nem tão monstro, nem tão imperial assim)

1) Os EUA não são um império, no sentido formal da palavra.
Um império é, basicamente, um sistema extrator de recursos por meio da coerção, o que não ocorre no caso dos EUA, que estão comprometidos com valores e princípios condizentes com a liberdade de mercados e as franquias políticas democráticas. Qualquer afirmação em contrário teria de comprovar que as ditaduras que os EUA apoiaram em várias partes do mundo, na era da Guerra Fria, foram obras construídas consciente e deliberadamente pelos EUA para assegurar um tipo qualquer de extração de recursos por via da coerção militar.

2) Mesmo que os EUA se conformassem ao (e se aproximassem do) modelo histórico dos impérios, eles constituiriam um império de novo tipo, não diretamente interessados na construção de um poder hegemônico incontrastável e incontestável, como os impérios “extratores” do passado.
Eles estão, sim, interessados em garantir, em primeiro lugar e quase que exclusivamente, a sua própria segurança e, em segundo lugar, em criar as condições para que essa segurança se expresse, não em termos diretamente militares, mas sim em termos econômicos, comerciais e financeiros, ou até em bens intangíveis, como são os valores da democracia, da livre iniciativa e da liberdade individual.

3) A única hegemonia na qual os EUA estão legitimamente interessados é a hegemonia do livre-comércio.
Em outros termos, os EUA estão interessados em um sistema de portas abertas no qual não subsistam restrições, ou que elas sejam muito poucas e não-discriminatórias, à atuação de suas empresas nas diversas frentes dos intercâmbios humanos e sociais que possam, de fato, estar (e ficar) abertos à criatividade de suas empresas e cidadãos.

4) Nesse sistema de portas abertas, a única “ditadura” suscetível de ser criada pela hegemonia dos EUA é aquela que destrói todas as ditaduras.
Estas são as bases indiscutíveis do “império” americano: a livre circulação de fatores de produção e de produtos da inteligência e da criatividade humanas. Esse é um sistema destruidor de todas as hegemonias conhecidas historicamente. Mas quem destrói todas as velhas hegemonias não é o poder comercial ou econômico dos EUA, e sim a força das suas idéias, idéias tão simples como as que venho expondo aqui.

5) Nos últimos dois séculos de sua existência enquanto nação independente, os EUA exerceram, inquestionavelmente, um papel eminentemente positivo na história da humanidade.
Isto se deu tanto em termos de liberdade econômica como no terreno das franquias democráticas e dos direitos humanos, não necessariamente porque os americanos são mais virtuosos do que outros povos, mas pela configuração específica de sua “civilização”. Seus valores básicos confundem-se com os do racionalismo iluminista, embora eles sejam extremamente confusos e contraditórios na hora de aplicá-los na prática, fruto de um regime de extrema liberdade individual, o que redunda eventualmente em disfunções localizadas.

6) Os EUA são uma nação westfaliana, no sentido clássico da palavra, mas de âmbito universalista.
Em outros termos, eles acreditam na soberania nacional, que no seu sistema nacional se confunde com a soberania popular, e não estão – e não estarão nunca – dispostos a renunciar a essa soberania em nome de qualquer sistema que se proponha administrar coletivamente a liberdade. Os EUA acreditam que a liberdade não precisa de administração centralizada, aliás, ela não necessita sequer de administração: a liberdade é, ou existe, ponto. Seu universalismo consiste em propor que todos os países vivam nas mesmas bases de soberania igualitária, que é a soberania da convivência pacífica tendo como única postura “agressiva” a competição comercial, ou seja, a conquista pelos méritos do que cada um tem ou pode oferecer de melhor.

7) O westfalianismo americano não se coaduna com nenhum projeto integracionista, apenas com acordos de livre comércio, de implementação dos direitos de propriedade e com garantias de promoção e proteção de investimentos.
Trata-se de uma integração “light”, compatível, filosoficamente, com o exercício das liberdades individuais nos demais planos da vida social. Os Estados Unidos são, ademais de westfalianos e aronianos, schumpeterianos, isto é, a favor da “destruição criativa”, o que significa uma constante remise en cause, ou contestação, das condições estabelecidas. Seu sistema econômico e social funciona com base no mérito, o que implica uma constante luta pelo sucesso, sobretudo de tipo econômico. É o que os economistas chamam de “market contestability”, aquilo que pode ser testado e contestado num sistema que funcione sem barreiras à entrada. Daí a desconfiança de princípio, histórica, dos EUA pelos esquemas preferenciais, tendência apenas revertida nas últimas duas décadas em favor de um minilateralismo de ocasião, em face das tendências regionalistas e da relutância dos muitos membros da OMC em se engajar num desmantelamento comercial verdadeiramente multilateral.

8. Os valores essenciais da vida política, econômica e social americana – democracia, liberdade, representação, império da lei, iniciativa individual e recompensa pelos méritos – não são exportáveis.
Não obstante, grande parte dos americanos, provavelmente a maioria, acredita sinceramente que os EUA são o farol da liberdade e que, como tal, deveriam levar esses valores a outros povos e nações. Daí um inevitável pêndulo entre duas posturas recorrentes, o isolacionismo e o envolvimento, que agitam de forma ambígua a história internacional dos EUA no último século e meio, aproximadamente.

Aceitas, ou pelo menos propostas, estas simples teses sobre a posição dos EUA no plano mundial, venho agora à questão do seu papel na segurança internacional. Disponho, igualmente, de algumas outras breves teses sobre essa questão, que não pretendo elaborar substantivamente ou discorrer longamente sobre elas, basicamente por razões de espaço, mas acredito que elas sejam suficientemente explícitas para se justificarem a si mesmas. Vejamos, portanto, minhas “teses” sobre o papel dos EUA na segurança internacional.
Nem Ialta, nem Tordesilhas; apenas Westfália (e um pouco de Viena e Versalhes)

9) Os EUA não se ocupam, nem pretenderiam se ocupar, da segurança mundial: eles se ocupam de sua própria segurança nacional e a de seus cidadãos e empresas, ponto.
A despeito do fato que alguns intelectuais apreciem racionalizar os impulsos de política internacional dos EUA como divididos ambiguamente, entre, de um lado, um idealismo de tipo wilsoniano, e portanto engajados nos assuntos do mundo, e de outro, um realismo de extração bem jacksoniana, e portanto determinados a atender única e exclusivamente o seu próprio interesse nacional, a verdade é que os EUA não pretendem, por vontade própria, se imiscuir nos assuntos dos demais países, nem desejariam se ligar a outros países em esquemas permanentes de coordenação ou aliança militar.
Os EUA acreditam que se bastam a si próprios e pretenderiam manter-se nessa situação, não fosse pelos apelos que lhes são feitos ou pelas demandas de ação externa que emergem inevitavelmente de um mundo complexo e constantemente agitado por ameaças latentes e recorrentes à segurança nacional americana. Os europeus, que viveram décadas sob a proteção do guarda-chuva nuclear americano, e deixaram de investir em sua própria segurança (e nem têm o desejo de fazê-lo), são os primeiros a chamar os EUA to the rescue quando eles têm de enfrentar alguns problemas em seu próprio jardim (como nos Bálcãs, por exemplo).

10) Os EUA não estão interessados em impulsionar nenhum esquema multilateral de segurança estratégica, de tipo onusiano ou outro, que consistiria em armar forças de intervenção que possam, de alguma forma, interferir com os seus próprios esquemas domésticos de segurança e de defesa nacional. Nisso, eles são westfalianos radicais.
Não há nenhuma chance, no futuro previsível, que os EUA venham a concordar com a implementação prática do que está estipulado no artigo 47 da Carta da ONU, relativo ao estabelecimento de um Comitê de Estado Maior para assessorar e assistir o Conselho de Segurança em todas as questões relativas às necessidades militares do CSNU, inclusive quanto ao emprego e comando de forças colocadas à disposição desse Comitê. Os EUA nunca permitirão que tropas americanas, ou quaisquer forças suas, sirvam sob comando alheio, ainda que este seja formalmente da ONU, em situações que digam diretamente respeito à segurança e à defesa dos interesses dos EUA.

11) Os EUA podem, eventualmente, vir a integrar-se a, de preferência liderando, esforços multilaterais que digam respeito à segurança de outros países – e, indiretamente, à sua própria – desde que percebam eventuais ameaças como suficientemente credíveis e suscetíveis de afetar, no plano colateral, a segurança de seus cidadãos e empresas em territórios estrangeiros.
Em outros termos: forças americanas não são solúveis em qualquer “líquido” ou recipiente estranho à própria vontade do povo dos EUA, materializado em seu Congresso e na autoridade executiva, na pessoa do presidente. Não há hipótese de soldados americanos servirem sob qualquer outro comando que não os de seu próprio país. Não se trata aqui de isolacionismo; trata-se, simplesmente, de exercício de soberania plena, ou seja, irrenunciável.

12) Os EUA mantêm, como regra de princípio, a decisão política de antepor-se e mesmo de sobrepor-se a qualquer outro poder, no plano da dissuasão e do balanço de forças, e de antecipar qualquer desafio estratégico, tendo estabelecido, para si mesmos, a postura de conservar uma supremacia estratégica clara e certa sobre qualquer outro poder exterior, amigo ou desafiante, sendo totalmente indiferentes quanto à natureza política ou ideológica desse suposto contendor.
Isto significa que, independentemente do fato de disporem de supostos aliados estratégicos no âmbito da OTAN, ou indiferentes à situação de que contendores possam emergir de países hostis ao modo de vida americano – quer seja a antiga União Soviética ou a China atual –, os EUA sempre estarão dois ou três passos, pelo menos, à frente de possíveis poderes desafiantes. Esta atitude de dissuasão total e absoluta se aplica a todo e qualquer tipo de cenário estratégico e a toda a panóplia das ferramentas militares. Desse ponto de vista, a velha Europa da OTAN reduzida – a da Alemanha ocupada dos tempos da Guerra Fria – não se distinguia em absoluto da União Soviética inimiga: ambas tinhas de ser mantidas em estado de inferioridade estratégica, o que implicava, obviamente, um crescimento contínuo da capacidade ofensiva dos EUA. O mesmo pode ser dito dos dias atuais, aplicando esses princípios à OTAN ampliada, à nova Rússia, à velha China ou a qualquer outro Estado, vilão ou amigo. Não se trata, cabe deixar claro, de uma atitude belicista, mas tão simplesmente, de um seguro militar preventivo. A preeminência estratégica é a própria alma do sistema de segurança nacional americano.

13) A segurança nacional americana não é concebida em termos exclusivamente ou mesmo essencialmente militares e nisso os EUA são perfeitamente aronianos. Eles integram, mais do que o soldado e o diplomata, também o cientista e o empresário em seus cálculos de preeminência estratégica.
Na base desse sistema integrado de defesa nacional, que vai da concepção original à implementação prática dos princípios de segurança estratégica, encontra-se um conceito de organização social da produção que é propriamente marxista ou marxiano, pelo menos alegoricamente, em seu desenho e expressão: os EUA conceberam e desenvolveram um “modo inventivo de produção” que não encontra paralelo na história econômica mundial. Trata-se da mais perfeita máquina de produzir inovações, de qualquer tipo, inclusive as militares, que se conhece no sistema planetário. Se houvesse um “prêmio Nobel” para a defesa, ou para a guerra, os EUA também se situariam entre os primeiros contemplados, como ocorre, aliás, nos demais campos, com a possível exceção (ainda) das humanidades, ou seja, da literatura. Não se trata de uma máquina exclusivamente americana, pois ela integra cérebros de todas as partes do mundo, se trata apenas de uma máquina “made in USA”, como ocorre, aliás, nos prêmios Nobel da área científica.

14) Os EUA não parecem dispostos a colocar todo o seu potencial à disposição do resto do mundo e provavelmente nunca o farão.
Eles se contentam em fazer com que o resto do mundo seja um lugar não suficientemente ameaçador do ponto de vista dos interesses nacionais americanos. Ao garantir essa situação, os EUA estão contribuindo, de forma indireta, para a segurança do planeta, ao impedir a emergência de forças contestadoras da supremacia militar e estratégica americana.
Se os EUA são “the world’s cop”, isto é, os policiais do mundo, eles têm de agir e se comportar, efetivamente, como o “porrete de última instância”, ou seja, como aquele poder acima do qual nenhum outro prevalece ou se mantém. Não se trata de uma atitude arrogante, imperial ou unilateral, como pensam muitos; apenas de um comportamento que é a própria essência do ser americano: não há poderes acima do xerife da aldeia.

15) Os EUA não precisam de aliados ou parceiros militares, eles apenas desejam países que paguem a conta das operações militares ou de manutenção da paz que não sejam aquelas estritamente vinculadas à defesa do território americano ou da segurança de suas empresas e cidadãos.
O conceito de “burden sharing”, no plano da ONU e das operações onusianas de imposição e de manutenção da paz, aplica-se exclusivamente no plano político e a esferas externas à segurança nacional americana. Ou seja, o compartilhamento de tarefas no plano da defesa e da segurança internacionais se referem a cenários estratégicos que se situam todos fora do território americano, apenas interagindo com esquemas nacionais de defesa na medida em que cenários estratégicos situados em outras latitudes e longitudes tenham ou exerçam algum tipo de impacto na segurança nacional americana.
Foi exclusivamente em função do “burden sharing” que os EUA patrocinaram, numa primeira fase, as candidaturas da Alemanha e do Japão a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, isso ainda nos anos 1980. Com o passar dos anos, com o emasculamento da Rússia e a diluição da grande Alemanha no conjunto puramente hedonista da União Européia, os EUA deixaram de patrocinar o ingresso da Alemanha nesse foro restrito dos “mais iguais”, preferindo, por razões puramente estratégicas – e não mais de ordem orçamentária, como era o caso na fase de keynesianismo militar da era Reagan –, promover a ascensão do Japão e da Índia em tal foro.

16) O conceito, a construção e a operacionalização prática da OTAN de forma nenhuma implicam em qualquer tipo de multilateralismo securitário ou estratégico da parte dos EUA.
A OTAN é simplesmente um braço armado dos EUA para determinadas tarefas e funções específicas, uma das muitas ferramentas utilizadas, ao longo do seu processo de afirmação imperial, para ampliar sua capacidade de projeção externa, no plano militar e diplomático, e para contribuir à manutenção de uma mesma concepção civilizatória geral, no plano dos valores e dos princípios de organização econômica e social.
A OTAN não deve ser vista apenas como uma aliança militar dotada de um conceito puramente defensivo – a proteção do Ocidente contra a ameaça militar soviética, de acordo com a doutrina do containment, inspirada por George Kennan – mas também como uma esfera de liberdade política e econômica, não necessariamente no sentido mais puro da palavra, como os exemplos de Portugal salazarista e da Turquia semicapitalista podem comprovar. Com esses flancos garantidos, a Espanha franquista era dispensável, mas se ela, por acaso, fosse estrategicamente relevante, também teria sido integrada ao baluarte da democracia.

17) A OTAN não foi vitoriosamente militarmente: ela apenas cumpriu uma função defensiva, dissuasiva, de treinamento e de enquadramento dos países subordinados, sem mencionar o lado da demanda por equipamentos militares, que também faz parte do supply-side economics da indústria americana.
A URSS manteve, na maior parte do tempo, uma capacidade ofensiva superior em forças de terreno, e talvez mesmo no terreno dos dispositivos nucleares. Ela tampouco foi “esgotada” pela competição armamentista, mas estiolou-se a si mesma. A URSS perdeu a competição em meias de nylon, não em equipamentos militares, ela implodiu, por sua própria incapacidade produtiva, por manter um sistema que não podia simplesmente funcionar. Mas isso já estava previsto desde 1919 pelo economista austríaco Ludwig Von Mises, que demonstrou logicamente a impossibilidade de cálculo econômico e, portanto, de funcionamento do processo produtivo, numa economia socialista.

18. A OTAN assumiu, desde a derrocada (não derrota) do socialismo, funções bem mais abrangentes do que eram as suas no período da Guerra Fria. Isso não tem muita importância do ponto de vista americano, uma vez que ela é acessória à sua própria segurança nacional.
A OTAN cumpre funções subsidiárias nos esquemas americanos de defesa, ainda que ela seja, hoje, algo bem mais amplo do que a coordenação de esquemas militares, uma espécie de ferramenta polivalente, numa palavra, um canivete suíço com administrador europeu e manipulador americano. Seu novo mandato lhe dá poderes para intervir praticamente em todos os assuntos, da luta contra as agressões ao meio ambiente e as violações aos direitos humanos à defesa da democracia e da paz, num cenário que há muito extravasou o Atlântico Norte, alcançando praticamente todo o mundo (com a exceção do universo, isto é, do espaço exterior, que permanece “americano”).

19) A OTAN e, de certa forma, também os EUA não parecem estar preparados para as novas ameaças, mais difusas do que claramente identificadas, ainda que o inimigo tenha contornos muito nítidos: trata-se do fundamentalismo islâmico.
A OTAN estava teoricamente preparada para combater um inimigo claramente identificado, com divisões e instâncias de comando apoiadas em coisas tangíveis: tanques e canhões, navios e aviões, quartéis e linhas de comunicação, enfim, ferro, aço, cimento, um pouco de cobre. Hoje, isso não se aplica, pois o “inimigo” vive no próprio território e confunde-se com a população em geral ou com imigrantes honestos. A globalização, neste caso, traz um processo de declínio civilizacional – que é o do Islã em crise social e econômica e capturado por minorias ativistas – para dentro do Ocidente desenvolvido.
Trata-se de uma ameaça que não assume contornos militares muito claros, e que não tem, provavelmente, nenhum perfil tático-militar preciso, mas poderosas implicações estratégicas, situadas mais no terreno da sociedade, como um todo, do que no campo dos quartéis-generais. Aliás, a arte da guerra, hoje, apresenta, bem mais, elementos de Sun Tzu do que aspectos de Clausewitz, mas pede, sobretudo, mais ações de inteligência do que operações de força bruta. Não se trata apenas do terrorismo islâmico, que é uma mera manifestação material de algo bem mais insidioso, o fundamentalismo islâmico. Este deriva do islamismo “normal”, constitui uma recusa direta da modernidade “ocidental” e se apresenta, materialmente, como uma mobilização de forças para destruir, material e humanamente, a diversidade ocidental e seus valores associados.
A OTAN pode até estender um pouco mais seus cenários de atuação, mas não se trata de um terreno no qual seus pensadores e estrategistas tenham algo de relevante a trazer para o equacionamento do problema. A batalha é mais de idéias e de conceitos, de corações e mentes, do que propriamente um combate de trincheiras, aliás impossíveis a definir, ainda que essa nova guerra tenha alguns cenários privilegiados de atuação. Todos eles se situam no arco civilizacional do islamismo, que engloba mesmo os países que tinham feito opção por sua versão light, ou laica, em todo caso, separada do Estado. Nessa luta, a ignorância popular sustenta o obscurantismo político, num cenário no qual a democracia tem de enfrentar com transparência e bons modos um inimigo que se utiliza da mentira e da deception.

20) A proliferação nuclear não constitui, de verdade, um problema militar, nem no plano dos Estados, nem ao nível dos grupos terroristas. Trata-se de um problema político e como tal deveria ser enfrentado.
Durante a Guerra Fria, o mundo foi dividido a partir de Ialta, que é uma espécie de tratado de Tordesilhas da era contemporânea (ambos acordos falhos e incompletos). No mundo pós-Guerra Fria, o cenário é bem mais do tipo Congresso de Viena ou tratado de Versalhes, sem que os grandes atores consigam se entender sobre uma agenda comum que combine segurança com oportunidade para todos, como foi o caso em Bretton Woods. Uma das razões é, precisamente, o gênio que saiu da garrafa, a capacitação nuclear, difícil de engarrafar outra vez. Não há uma solução militar ao problema dos novos proliferadores e não há suficiente consenso entre os “donos” do gênio para domá-lo de maneira credível, o que implicaria em esforços credíveis para o desarmamento nuclear. A situação de impasse político deve persistir e mesmo uma nação poderosa como os EUA não conseguem controlá-la, em parte devido a um grande déficit de liderança política. Este é, provavelmente, o único terreno nas relações internacionais contemporâneas no qual os EUA não conseguem obter resultados isoladamente ou por iniciativas unilaterais e necessitam da cooperação de outros Estados, não necessariamente no plano multilateral. Um exemplo dessa necessidade está expressa na iniciativa tendente a controlar os fluxos civis de materiais nucleares, mais um clube restrito ao estilo do finado Cocom (hoje Wassenaer), dos grupos de Londres e do MTCR.

21) O “fator China” não é propriamente um desafio militar aos EUA ou ao Ocidente, e sim uma recomposição dos dados do jogo econômico, uma “nova geografia”.
A despeito de muitas especulações sobre o desafio militar ou estratégico chinês ao poderio incomensurável dos EUA, o que há é uma reestruturação dos fluxos de bens tangíveis e intangíveis no hemisfério norte (para esses efeitos, tanto China quanto Índia pertencem ao Norte, não ao Sul). A “nova geografia do mundo”, que alguns pretendem fundar a partir de intercâmbios concentrados no sul, na verdade já existe, e ela não é apenas comercial, mas sobretudo econômica e tecnológica, mas também financeira e de cérebros (eventualmente materializados em P&D e propriedade intelectual).
Essa “nova geografia” se manifesta na incorporação de novos grandes emergentes ao conjunto de países desenvolvidos, basicamente um clube constituído pela OCDE mais emergentes dinâmicos, que seriam os RICs, com grande ênfase na China e na Índia. A nova geografia econômica, que é também uma divisão mundial do trabalho, faz o mundo convergir pela primeira vez em dois séculos, a despeito mesmo da grande divergência nas rendas individuais. Os EUA já se adaptaram a ela, inclusive no terreno estratégico, de que é prova a parceria nuclear com a Índia. No terreno comercial, financeiro e tecnológico o que existe é uma simbiose cada vez maior entre os EUA e os emergentes asiáticos: tanto os chineses são dependentes da avidez de consumo dos americanos quanto estes são hoje dependentes da boa disposição dos asiáticos em continuarem financiando seus déficits.
A América Latina não está a priori excluída da nova geografia, mas ela se exclui a si mesma quando recusa concluir acordos comerciais, estender garantias ao investimento direto estrangeiro, oferecer maior abertura em serviços ou outras rubricas. Ela se exclui, igualmente, quando se contenta em explorar suas vantagens ricardianas em recursos naturais, mas não avança na qualificação educacional da sua população, não investe o suficiente em ciência e tecnologia, mantém a desigualdade social em níveis inaceitáveis e apresenta um péssimo ambiente micro e macro para o mundo dos negócios.

22) As ameaças aos EUA provindas da América Latina não são derivadas de qualquer desafio estratégico, mas emergem de fatores negativos internos (tanto aos EUA como à América Latina), ligados à economia da droga, basicamente. A oferta contínua de imigrantes, por outro lado, é um fator positivo, para ambos os lados, mas pode estar associado a outras fontes de criminalidade.
Com uma demanda irrefreável dos EUA por drogas duras, não há dúvida de que qualquer plano de contenção atuando no “supply-side” econômico, apenas – como é o caso do Plano Colômbia – tende a não produzir resultados significativos, ainda que possa trazer benefícios residuais do ponto de vista do combate à narcoguerrilha. O problema da droga não será resolvido enquanto não for equacionado o lado da demanda. Mas, trata-se de um problema para os dois lados, pois ele tende a gerar, no território dos produtores e dos países de trânsito – o que é obviamente o caso do Brasil –, uma corrupção ativa dos agentes públicos, que atinge basicamente o sistema político e o aparato policial.
No que se refere à oferta do fator humano, ela atende, igualmente, aos dois lados da equação, mas com desequilíbrios sociais e econômicos, pois os países exportadores retiram vantagens que eles não estão dispostos a renunciar, diminuindo, por outro lado, a pressão política para que os dirigentes políticos reformem suas instituições esclerosadas, ofereçam novas oportunidades de emprego local, qualifiquem educacionalmente suas populações e atuem decisivamente no plano das desigualdades distributivas. Os EUA retiram vantagens desse fluxo importador, mas eles se preparam para gastar inutilmente US$ 6 bilhões com um muro de fronteira rigorosamente inútil e ineficiente.
E o Brasil nisso tudo?

O Brasil, no plano estritamente militar, é um país rigorosamente marginal, alheio aos grandes cenários estratégicos internacionais, como de resto a maior parte da América Latina. Tem certa importância no plano comercial, para algumas commodities e produtos de sobremesa, e pode tornar-se um ator relevante na nova matriz energética mundial, que emergirá paralelamente ao lento declínio da velha (150 anos) civilização do petróleo (aqui mais do lado dos combustíveis do que no plano industrial e tecnológico). Ainda não estamos prontos para a quarta revolução industrial, mas temos competências potenciais (científicas, pelo menos) para acompanhá-la.
A rigor, não apresentamos nenhuma ameaça à segurança dos EUA, mas existem os que acreditam que os EUA representam uma ameaça à soberania brasileira. Como esse tipo de suposição se presta a alguma confusão mental, talvez fosse o caso de terminar este pequeno ensaio por algumas novas teses, breves, em relação à posição do Brasil no atual cenário de segurança internacional.

23) O Brasil não tem um grande papel a cumprir, positivo ou negativo, no atual cenário estratégico internacional. Seu papel é residual e talvez seja mais relevante no caso de operações conduzidas no quadro das Nações Unidas, que a rigor não servem de parâmetro para nada, apenas para a manutenção do status quo. Se o Brasil tiver de assumir algum papel mais importante nessa vertente, a questão da cooperação militar com os EUA torna-se inevitável (e politicamente complicada).
O Brasil é, como se sabe, um país soberanista, em todo caso bem mais do que outros na América Latina e na Europa, dispostos eventualmente a ceder soberania em troca de alguns benefícios materiais. O Brasil também aspira – e isso é histórico, mas se trata de uma reivindicação puramente elitista – fazer parte dos “mais iguais”, embora disponha de poucos atributos para tanto. As elites militares e diplomáticas – deixando de lado as elites políticas, extremamente fluídas para merecerem atenção – possuem essa inclinação oligárquica que visa colocar o país no inner circle da política mundial, agenda que nunca ganhou crédito entre as elites econômicas – também cambiantes e, sobretudo, desprovidas de visão internacional – para que elas sustentassem essa pretensão.
O fato é que, com o Brasil dentro ou fora do Conselho, o cenário estratégico não mudará rigorosamente nada, nem para o Conselho, nem para o Brasil, e tampouco para o mundo, ocorrendo apenas e tão somente maiores despesas orçamentárias para o país, num engajamento que jamais foi discutido a fundo com a sociedade brasileira ou com seus representantes proclamados. A participação apresentaria, obviamente, maior impacto para as Forças Armadas, que teriam de revisar suas concepções estratégicas – mas essa é uma função talvez mais política do que militar – e sobretudo revisar toda a panóplia na qual se apóiam atualmente, com adaptação conseqüente de suas ferramentas de atuação.
Grande parte da corporação militar parece preparada e estaria disposta a enfrentar esse esforço de revisão, mas esse cenário não depende da vontade dos militares, sequer dos políticos e das elites econômicas, e sim da capacitação da economia nacional como um todo. Trata-se de um processo lento e duvidoso, pois significa colocar o país num outro patamar de desenvolvimento que o atualmente seguido, que se apresenta bem mais como um lento arrastar de pés em direção da modernidade.

24) O Brasil não tem ameaças credíveis vindas do imediato entorno regional (embora alguns atores se esforcem por criar artificialmente uma custosa, inútil e totalmente indesejada corrida armamentista). O nível de dissuasão requerido parece justificar, portanto, o baixo investimento efetuado nos instrumentos, ainda que isso não devesse refletir-se na capacitação e treinamento, sempre necessários.
Não existe mais hipótese, sequer no plano teórico, de conflitos inter-estatais que possam envolver o Brasil em torno de disputas regionais, como ocorreu no passado em torno do Prata. Os conflitos são menores e residuais e tendem a ser equacionados por via diplomática, embora a prudência histórica recomende que um “grande porrete” esteja sempre pronto para oferecer a dissuasão necessária.
Outras ameaças – como a narcoguerrilha, o crime organizado, eventualmente os neobolcheviques que insistem numa agenda de expropriação direta de terras – terão de ter um equacionamento basicamente policial, mas a inteligência militar e algum respaldo material das FFAA podem contribuir decisivamente para o afastamento de quaisquer riscos de transbordamento, inclusive fronteiriço. Nesse particular, a cooperação com os EUA é inevitável e desejável, embora condicionada a aspectos operacionais nem sempre bem-vindos do ponto de vista brasileiro.

25) Não parece haver nenhuma ameaça à soberania brasileira na vertente amazônica, embora interesse a diversos atores, tanto à direita quanto à esquerda, agitar esse espectro, por razões peculiares a cada setor. A Amazônia será naturalmente integrada ao mainstream da economia brasileira – e internacional – à medida que seu imenso potencial venha a ser adequadamente identificado e explorado (e isso implica algum grau de desgaste em relação ao patrimônio existente).
A Amazônia tem vários inimigos, mas os principais não são aqueles supostamente interessados em sua “internacionalização”, em princípio ecologistas ingênuos que podem estar a serviço de interesses externos (segundo rezam algumas lendas made in Brazil). Existem muitas paranóias e teorias conspiratórias em torno dessa questão, fabricadas por uma anacrônica esquerda antiimperialista e pela extrema direita nacionalista – geralmente composta de militares da reserva –, nenhuma delas justificada por dados credíveis da realidade. Lendas e fabulações não merecem, obviamente, ser objeto de quaisquer teses.
No plano estritamente militar, o espectro pode servir para uma maior alocação de recursos, embora seja indesejável uma misallocation em função de esquemas dissuasórios que nunca serão testados na prática. A responsabilidade das autoridades militares é aqui enorme, pois uma eventual indução ao erro na elaboração orçamentária setorial redundará em investimentos custosos, desviando recursos de investimentos econômicos e sociais que são necessários para, não propriamente afastar temores totalmente infundados, mas para construir as bases do desenvolvimento sustentável naquela região.
Os problemas da defesa amazônica parecem ter o mesmo teor das ameaças já aludidas anteriormente, derivadas da narcoguerrilha e do crime organizado, o que recomendaria uma adaptação do ferramental militar e policial a essas circunstâncias. Isso implica, igualmente, um maior grau de cooperação com os EUA, o que pode suscitar resistências em certas áreas, mas que me induzem, experimentalmente, a elaborar uma última tese sobre o papel do Brasil no cenário estratégico internacional.

26) Se o Brasil não é um ator relevante para os cenários estratégicos internacionais, ele o é, contudo, no âmbito regional, naval, do Atlântico Sul, e no do imenso hinterland sul-americano. Tanto quanto para sua integração a esquemas militares onusianos ou plurilaterais mais amplos – isto é, numa base de like-minded countries –, um papel mais ativo na própria região se beneficiaria de maior cooperação com os EUA, algo extremamente complicado para nossos padrões políticos e diplomáticos.
O Brasil é um país introvertido, quase avestruz economicamente, embora tentando graus crescentes de abertura numa fase em que a globalização é, não apenas inevitável, como uma quase fatalidade. O establishment diplomático-militar guarda relutâncias em relação a uma maior cooperação com os EUA em virtude dos choques no passado – no caso da agenda nuclear, por exemplo – e das assimetrias do presente, para nada dizer da arrogância imperial que não vai diminuir tão cedo. Em termos claros, cooperação com os EUA, mormente no terreno militar, significa subalternidade e integração a esquemas já fixados, em posições acessórias e desprovidas de real capacidade decisória.
O próprio establishment militar, com algumas exceções, não parece arredio a uma maior cooperação técnica com a superpotência, embora sejam manifestas as reações contrárias e as resistências a tal intento. Alguns acreditam que o caminho da afirmação do Brasil no cenário mundial passa não apenas ao largo como se situa contrariamente às iniciativas e interesses das grandes potências, cabendo sempre a singularização negativa da hiperpotência. Nessa visão, as articulações geopolíticas do Brasil devem passar, prioritariamente, pela periferia do sistema, o que explica, aliás, muitas das escolhas do presente. Não parece haver justificativas econômicas ou tecnológicas a esse tipo de visão excludente, mas deve-se reconhecer que a cooperação com gigantes sempre é complexa e duvidosa, em qualquer hipótese.
Os obstáculos, assim, parecem ser mais de natureza política, ou ideológica, do que propriamente estratégica ou econômica, mas se é verdade que são as idéias que dominam o mundo, então os primeiros fatores são muito mais poderosos do que os segundos. O Brasil é um país que caminha muito lentamente no cenário doméstico e internacional: é bastante provável, assim, que ele acabe confirmando sua natureza essencial.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasilia (Uniceub); autor de diversos livros de história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org; pralmeida@mac.com).