Você acredita em raças?
Demétrio Magnoli
O Estado de São Paulo, 12 de julho de 2007, p. A-2
O Brasil não produziu leis raciais desde a Abolição, o que nos libertou do problema de associar cada pessoa a um grupo de raça. A identidade nacional foi elaborada em torno do conceito de mestiçagem
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana. Artigo publicado no Estado de SP:
A Suprema Corte dos EUA acaba de estabelecer, por estreita maioria, que os direitos dos cidadãos não se podem sujeitar a critérios raciais. Mas as opiniões dos juízes da maioria e da minoria não contestaram o princípio de fundo, de que as pessoas podem ser classificadas pela pertinência a um grupo racial.
A exceção apareceu na opinião do juiz Anthony Kennedy, que escreveu: 'Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade.'
A nação americana elaborou sua identidade através das lentes do conceito de melting pot: o caldo de componentes diversos, que se misturam, mas jamais se fundem. Depois de abolida a escravidão, as leis de segregação reafirmaram a fronteira entre brancos e negros, colocando o problema de definir a raça de cada um.
A regra da 'gota de sangue única' forneceu a solução: para ser negro basta um só antepassado negro. Nos EUA, essa experiência histórica converteu a raça num fenômeno natural, como os rios, as montanhas e as estrelas.
O Brasil não produziu leis raciais desde a Abolição, o que nos libertou do problema de associar cada pessoa a um grupo de raça. A identidade nacional foi elaborada em torno do conceito de mestiçagem.
Essa experiência se coagulou na aquarela brasileira, composta por um continuum de cores sem fronteiras nítidas, que se traduz na linguagem do censo pela ambígua categoria dos 'pardos'. Do ponto de vista científico, o Brasil está certo e os EUA, errados. A investigação genética comprova que a humanidade não se divide em raças.
Duas obras recentes oferecem uma visão dessas investigações de ponta. Em Genes, Povos e Línguas (Companhia das Letras, 2000), Luigi Cavalli-Sforza, que dirigiu o Projeto da Diversidade do Genoma Humano, delineia uma 'geografia gênica', reconstruindo as migrações que difundiram os seres humanos pelo planeta.
Em A Invenção das Raças (Contexto, 2007), Guido Barbujani, um dos mais destacados geneticistas contemporâneos, desmonta o mito das raças e esclarece o sentido do conceito de diversidade humana. Todas as populações atuais da Europa, Ásia, América e Oceania se originaram dos grupos humanos que deixaram a África recentemente, entre 100 mil e 50 mil anos atrás, e representam subconjuntos do patrimônio genético africano.
A diversidade é mais forte na África e diminui em relação direta com o afastamento da África. Somos todos afrodescendentes.
O voto de Kennedy é um sinal de que, na 'pátria das raças', se procura acertar o passo entre a política e a ciência. Enquanto isso, o Estado brasileiro entrega-se à operação inversa, investindo contra nossa experiência histórica para substituí-la pelo dogma da raça.
O MEC obrigou as escolas a associar nominalmente cada aluno a um grupo racial. O Ministério da Saúde, por meio das carteiras do SUS, prega um rótulo racial a cada usuário do sistema público de saúde. Nas palavras de Kennedy, 'é um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar!'
A meta oficial, expressa pela secretária da Igualdade Racial (Seppir), é substituir a identidade baseada na mestiçagem pela imagem de um País bicolor, dividido em 'brancos' e 'afrodescendentes'.
Trata-se, sob inspiração da tradição racista dos EUA, de mimetizar a regra da 'gota de sangue única'. Há, porém, uma diferença crucial: lá, a existência imaginária de raças serviu para orientar as políticas de cotas raciais; aqui, são essas políticas que funcionam como instrumentos para a produção das raças.
Não se convence uma nação a acreditar no mito racial sem naturalizar a raça. É com esse objetivo obscurantista que a Seppir e o Ministério da Saúde conduzem o programa Saúde da População Negra.
Os paradigmas do programa, definidos em seminários realizados em 2004 e 2006, se inscrevem no vasto território do charlatanismo racial. Os textos dos seminários identificam 'doenças genéticas com maior incidência entre os negros', desafiando os conhecimentos gerados pela pesquisa genética, e entregam aos 'movimentos negros' o 'controle social' do sistema de saúde pública, subordinando os profissionais de saúde às ONGs política e financeiramente associadas à Seppir.
Nos EUA, entre as décadas de 1920 e 1940, a anemia falciforme foi associada pela medicina ao corpo negro. Testemunhando a força do imaginário racial, essa associação sobreviveu ao esclarecimento da origem não-racial da doença, em 1949.
Nas condições de mito médico e discurso ideológico, a luta contra a anemia falciforme se tornou um componente das políticas de ação afirmativa dos anos 70. Alguns Estados introduziram leis de testagem compulsória para negros e os portadores do traço falciforme perderam a oportunidade de pleitear determinados empregos. Nesse ponto, levantaram-se vozes de protesto contra a estigmatização biológica em curso.
A anemia falciforme não é uma 'doença de negros' - algo que, de resto, não existe. O traço falciforme é uma mutação adaptativa que confere maior resistência à malária. A mutação sobreviveu em regiões sujeitas à prevalência histórica da malária. A África, mas não toda ela, é uma dessas regiões, ao lado da Índia e da Europa de sudeste.
A doença acomete indivíduos que herdaram o traço falciforme de ambos os genitores. Mas os promotores da Saúde da População Negra preferem ignorar a ciência e sugerem copiar a antiga abordagem americana, implantando um Programa de Anemia Falciforme 'com prioridade para os Estados com maior contingente populacional negro'.
A cor da pele, uma característica literalmente superficial dos seres humanos, decorre da adaptação aos diferentes tipos climáticos e não é capaz de oferecer informações relevantes sobre o patrimônio genético de um indivíduo. Essa afirmação, óbvia para os cientistas, se converteu em heresia no nosso Ministério da Saúde. É que os fanáticos estão no poder.
(O Estado de SP, 12/7)
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