Gostaria de comentar este artigo, que recebi, em março de 2009, via lista de discussão acadêmica na internet, mas simplesmente não disponho de tempo. Vou postá-lo aqui, esperando poder voltar e comentar. Ele tem coisas que me parecem muito boas e sensatas, e outras que revelam alguns dos vieses acadêmicos que caberia justamente superar para tornar a universidade pública mais coerente e útil à sociedade. Espero voltar logo.
Paulo Roberto de Almeida
O funcionamento da universidade pública no Brasil: uma plataforma para discussão
Renato M. Perissinotto
É opinião corrente na sociedade brasileira que as universidades públicas, estaduais e federais, são instituições que atingiram um nível de qualidade acadêmica superior ao apresentado pelas universidades privadas. A comparação nos parece justa, mas pouco meritória. Afinal, poderíamos nos perguntar se é de fato adequado comparar níveis de produção e excelência acadêmica com instituições que, salvo honrosas exceções, não orientam suas atividades pela consecução de tais objetivos. De qualquer forma, sejam quais forem os termos da comparação, acreditamos que as universidades públicas poderiam produzir muito mais e com melhor qualidade se alguns de seus problemas organizacionais e administrativos pudessem ser discutidos e resolvidos pela comunidade acadêmica.
Correndo o risco de uma generalização excessiva, o fato é que conversas informais com vários colegas das mais diversas instituições públicas do país revelam problemas recorrentes: todos eles, sem exceção, reclamam de professores que se recusam a dar aula e a assumir funções administrativas, funcionários que faltam ou trabalham bem menos do que deveriam, telefones que tocam incansavelmente sem que ninguém os atenda, funcionários que perdem processos, cidadãos que, sistematicamente, dão com a porta na cara quando precisam de um determinado serviço, dentre outros “incômodos”. Essa situação sugere a existência de uma "cultura organizacional" caracterizada fundamentalmente por um profundo desinteresse pelo "serviço público" que, no dia-a-dia, afeta profundamente o funcionamento e o desempenho institucionais. Algumas razões, a nosso ver, ajudariam a entender um pouco melhor esse fenômeno.
1) Razão de ordem organizacional: não há nas universidades públicas (por experiência própria, referimo-nos especialmente às instituições federais) nenhuma instância autônoma dotada de poder efetivo que avalie funcionários e professores. Todos nós sabemos como são, por exemplo, efetuadas as avaliações dos estágios probatórios dos professores recém contratados. Os seus próprios colegas de departamento são obrigados a emitir um parecer que decidirá pela sua permanência ou demissão. O estágio probatório é feito ao longo de três anos, o que é tempo mais do que suficiente para que relações pessoais se estabeleçam, comprometendo qualquer avaliação neutra do desempenho do professor novo. Além disso, não há qualquer mecanismo sério de avaliação do desempenho dos professores e dos funcionários já estáveis. No caso dos funcionários isso é particularmente grave, pois, no que diz respeito aos professores, há ao menos instituições exteriores às universidades (Capes e CNPq) que assumem o papel de avaliadoras daqueles docentes que atuam nos programas de pós-graduação. Ora, uma organização que se abstém de cobrar institucionalmente um determinado nível de desempenho dos seus funcionários está fadada a contar somente com a disposição voluntária (a "boa vontade") deste ou daquele indivíduo para realizar as tarefas necessárias ao bom despenho institucional. Como sabemos, em médio prazo tal disposição tende a desaparecer, quando não por outras razões, pelo simples fato de que fazer algo ou não fazer nada dá absolutamente no mesmo.
2) Razão de ordem corporativa: na prática, a ausência da cobrança institucionalizada gera privilégios. O maior desses privilégios consiste pura e simplesmente em não trabalhar o tempo necessário e em não executar as tarefas essenciais para o funcionamento cotidiano da universidade. Uma vez consolidado o "hábito" e suas benesses, é difícil removê-lo, pois a reação a qualquer mudança no que diz respeito a esse ponto é imediata e quem quer que coloque esse problema na agenda universitária é sumariamente tachado de representante da “direita” ou do “mercado”. Aqui tocamos no problema central da "estabilidade". Não somos, em hipótese alguma, contrários à estabilidade do funcionalismo. Servidores públicos não podem ficar à mercê dos humores políticos deste ou daquele governante. No entanto, como está não pode ficar. É preciso que a estabilidade esteja vinculada a algum tipo de avaliação e cumprimento de metas. Não é aceitável, também sob hipótese alguma, que um professor que passe anos e anos sem publicar e que um funcionário sistematicamente relapso perante suas obrigações continuem sendo pagos pelo dinheiro público. Isso é um privilégio inaceitável. O direito à estabilidade exige, para que não se transforme em privilégio, procedimentos efetivos de avaliação, cobrança e punição. O instituto da estabilidade no emprego público deve garantir que um funcionário ou um professor jamais será demitido por razões políticas e ideológicas, mas, ao mesmo tempo, assegurar (aos seus colegas e aos cidadãos que pagam seus salários) que ele será dispensado caso não cumpra suas obrigações adequadamente.
3) Razão de ordem ideológica: faz parte do ambiente ideológico universitário a identificação entre "esquerda" e "defesa do funcionalismo público". Essa identificação é tão forte que qualquer crítica ao funcionamento da universidade é imediatamente identificada com uma posição de direita ou favorável aos mecanismos seletivos do mercado. O comportamento do movimento estudantil é um forte indício da veracidade dessa afirmação. Os estudantes organizados, sempre tão preocupados em lutar pela igualdade e pelo avanço da democracia, em nenhum momento problematizam o funcionamento cotidiano da universidade. O mesmo pode ser dito a respeito do movimento docente. Todos preferem defender posições políticas grandiloqüentes e virar as costas para um problema "comezinho", mas que exemplifica muito bem o descaso do Estado brasileiro com a população em geral. O curioso é que temos, nesse caso, um paradoxo: as "esquerdas" passam a se identificar com a manutenção de privilégios, ao passo que a "direita" toma para si a bandeira de lutar para que servidores públicos ajam como tais. Acreditamos, ao contrário, que uma posição de esquerda exige defender, entre outras coisas, que se honre o princípio republicano de tratar adequadamente a "coisa pública". No caso, trata-se apenas de defender a seguinte proposição: quem é pago para dar aula e pesquisar deve dar aula e pesquisar, quem é pago para administrar o funcionamento da universidade deve fazê-lo adequadamente.
4) Razão de ordem política: refiro-me, especialmente, à política interna, a essa pequena política universitária. O fato é que todos nós (professores, funcionários e alunos) votamos. Como em qualquer eleição, aquele que concorre ao cargo precisa convencer os eleitores e é difícil convencê-los dizendo que seus privilégios serão atacados. Evidentemente, não propomos o fim das eleições dentro das universidades. No entanto, não precisamos adotar os mesmos procedimentos das campanhas eleitorais voltadas para a grande política. É muito curioso que, em geral, candidatos à reitoria ou à direção de setores e institutos (novamente, a experiência pessoal remete-nos especialmente às universidades federais) raramente apresentem programas de administração universitária detalhados, em vez de plataformas ultra-genéricas de princípios sobre a “universidade pública, gratuita e de qualidade”, que pudessem ser efetivamente discutidos e debatidos com a comunidade acadêmica. Não somos ingênuos a ponto de pensar que seria algo fácil de fazer, sem luta e conflitos, mas é urgente que aqueles que se apresentam como candidatos assumam também a tarefa de pensar a instituição. Caso contrário, continuará parecendo que os cargos universitários servem apenas de passagem para cargos mais altos em outras instâncias mais importantes.
5) Razão de ordem material: ninguém nega que professores e, de longe, muito mais os funcionários das universidades brasileiras têm poucos motivos materiais para se dedicarem à instituição. A má remuneração, sobretudo dos funcionários, é um enorme empecilho ao bom desempenho institucional. Isso ocorre não apenas pelo fato óbvio de que pessoas que ganham mal tendem a se desinteressar pelos seus afazeres, mas também porque a baixa remuneração é pouco atrativa, tornando os concursos públicos menos concorridos e atraindo as pessoas com menor qualificação. O movimento docente, os reitores e o movimento estudantil, se têm algum compromisso com a universidade, têm a obrigação moral de incluir a melhoria salarial dos funcionários nas suas pautas de reivindicações.
6) Razão de ordem cultural: os fatos descritos acima, somados a fatores de ordem temporal (isso tudo ocorre há muito tempo), acabaram criando uma "cultura", isto é, uma forma de ver a organização que se tornou absolutamente naturalizada. Na maioria esmagadora das vezes, por exemplo, causa sincero estranhamento quando pedimos a um funcionário que trabalhe oito horas por dia. Esse fato, entre outros vários exemplos que poderiam ser aqui listados, mostra que não se trata mais da má vontade desta ou daquela pessoa. Não resolveremos o problema brigando pessoalmente com este ou aquele professor, com este ou aquele funcionário. O fundamental é alterar essa forma de pensar e a conduta que lhe corresponde. Mais uma vez, não somos ingênuos de acreditar que valores internalizados ao longo de décadas, reafirmados sistematicamente por uma estrutura organizacional inepta e por discursos condizentes com essa prática, desapareçam de uma hora para outra. Por outro lado, não somos dos que acreditam que a cultura seja imutável e que estamos condenados a essa situação. Por essa razão, é importante que se comece a pensar reformas administrativas e institucionais que, uma vez implementadas, mostrem claramente a todos que vale a pena trabalhar adequadamente, ou por outra, que é desvantajoso não fazê-lo. A combinação de incentivo e punições é, a nosso ver, uma exigência inescapável para que a universidade pública brasileira passe a funcionar num nível acadêmico mais elevado. Acreditamos que esses novos mecanismos institucionais seriam estratégicos para a criação de uma nova cultura e para o enfraquecimento de uma velha disposição, que hoje se constitui num dos maiores obstáculos ao bom funcionamento de nossas universidades.
Essa sugestão, muito provavelmente, provocará a eterna condenação dos "mecanismos de mercado", incompatíveis com uma "universidade pública, gratuita e de qualidade". Rechaçamos categoricamente essa estratégia discursiva, que consiste em desqualificar adversários com o pretexto de defender a universidade pública, quando, na verdade, trata-se, consciente ou inconscientemente, apenas de lutar pela manutenção de privilégios.
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