Preâmbulo da saída conciliatória
Kenneth P. Serbin
Caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 06/09/2009
De como o Brasil tornou-se uma democracia, desde o sequestro do embaixador americano Charles E. Elbrick
Há exatamente 40 anos, guerrilheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) sequestraram o embaixador americano Charles Burke Elbrick e o mantiveram em cativeiro até o governo militar divulgar um manifesto revolucionário e libertar 15 prisioneiros políticos. Nessa ocasião, poucos imaginariam que, hoje, o Brasil seria uma das democracias mais estáveis e uma das economias capitalistas mais fortes do mundo.
No meio de uma Guerra Fria que polarizava o mundo e a sociedade brasileira entre ideologias favoráveis e contrárias ao capitalismo, a ALN, o MR-8 e uma pletora de outras organizações revolucionárias buscavam derrubar uma ditadura que tinha aumentado ainda mais seu podercomo Ato Institucional nº 5, de 1968. O Brasil parecia se encaminhar para um destes dois extremos, ambos autoritários: um sistema socialista em parte inspirado no caudilho Fidel Castro ou um regime militar apoiado por um governo americano guiado fundamentalmente pela necessidade de contrabalançar a influência da União Soviética.
O sequestro de Elbrick foi a mais espetacular de todas as ações guerrilheiras para encurralar o Exército e preparar o caminho para uma grande ofensiva. Foi o momento terrorista do Brasil(como historiador,uso o termo “terrorismo” como fenômeno histórico e sociológico, não no sentido moral, que, usado na linguagem comum, perdeu o sentido). Numa retrospectiva, o Brasil oferece um importante tema de estudo do terrorismo e sua resolução, neste momento em que os cidadãos dos Estados Unidos se preparam para lembrar o oitavo aniversário dos atentados do 11 de Setembro e os chilenos devem reavivar as lembranças dolorosas do seu
próprio 11 de Setembro, o golpe de 1973 contra o presidente Salvador Allende.
O golpe militar de 1964 instigou a violência política que assolou o Brasil durante a ditadura que se seguiu. As forças de segurança do regime militar mataram, ou fizeram desaparecer, quase 500 militantes de esquerda e torturaram no mínimo alguns milhares de pessoas, deixando nelas sequelas para toda a vida. Entre as vítimas estavam Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, líder militar da operação Elbrick, e Joaquim Câmara Ferreira, outro participante, que, na época era o segundo no comando da ALN. Ambos foram torturados até a morte. Os revolucionários mataram mais de cem pessoas. Além do embaixador americano, raptaram outros três diplomatas estrangeiros e assassinaram um capitão do Exército dos Estados Unidos, roubaram bancos, sequestraram aviões, atacaram instalações militares e policiais e explodiram bombas. Essas ações se encaixam na categoria de terrorismo como arma do fraco contra o forte ou, nas palavras de um especialista, do “terrorismo defensivo”.
Uma das grandes ironias desse período é que os dois lados tinham muito mais em comum do que queriam admitir. Ambos aderiram à violência como meio de mudança social e compartilhavam a visão do Brasil como uma grande nação. Assim, o fundador da ALN, Carlos Marighella, encontrou-se secretamente com o general Affonso Augusto de Albuquerque Lima, líder da linha dura ultranacionalista. Outros militares nacionalistas admiravamos revolucionários por seu espírito empreendedor e por aspirarem um desenvolvimento socioeconômico brasileiro. A Lei de Anistia de 1979, cujo 30º aniversário os brasileiros comemoraram no mês passado, foi o resultado imperfeito, mas lógico, para um país forçado a entrar na camisa de força da Guerra Fria. Até agora a interpretação dessa lei tem eximido os torturadores de um processo criminal. Mas é importante lembrar que ela também propiciou o retorno de milhares de exilados e a libertação de quase todos os presos políticos. De modo significativo, as perdas brasileiras no conflito armado são mínimas em comparação com o número de mortes em conflitos similares onde não existiu um compromisso desse tipo, como no Chile (3 mil mortos e desaparecidos, Argentina (15 mil) e Guatemala (200 mil). Isso não quer dizer que o Brasil teve uma “ditabranda”, como dizem alguns observadores. Ao contrário. Mas o fato é que o menor número de mortes na oposição significou um maior número de participantes no processo político. Os militares reduziram a repressão e deixaram de controlar os partidos políticos, permitindo a formação de novas agremiações, como o PT – Partido dos Trabalhadores, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dando assim ao antigos guerrilheiros e ao restante da oposição um lugar no cenário político brasileiro.
Nos últimos anos, muitos ex-revolucionários passaram a ocupar posições de poder em todos os níveis do governo, na comunidade empresarial e no setor não-governamental. O próprio presidente Lula estimulou essa participação. Socialista que se transformou em falcão do fisco, Lula nomeou como seu primeiro chefe de gabinete José Dirceu, um dos prisioneiros libertados no episódio de Elbrick, depois de uma campanha em que Dirceu e o PT abandonaram muitas das suas metas radicais. Quando Dirceu renunciou, Lula substituiu-o por Dilma Rousseff, que também participou de um grupo de guerrilha e hoje é uma competente administradora pública, agora
posicionada para ser uma forte candidata à Presidência. Um bom número dessas pessoas moderou suas ideias e aderiu à tendência dos políticos brasileiros de ocupar uma posição mais centrista. Hoje esses sessentões dos anos 60 se tornaram dirigentes de um gigante capitalista democrático e respeitado internacionalmente, com quase um quarto de século de eleições realizadas
pacificamente, uma relativa liberdade de imprensa, uma consciência ecológica crescente e movimentos para diminuir a discriminação étnica e de sexo. Um país que conseguiu tudo isso sem o antiamericanismo extremo, às vezes irracional, e
sem o caudilhismo de Fidel Castro ou Hugo Chávez, nem tampouco com ameaças de chantagem nuclear como as que emanam da Coreia do Norte.
O caminho do Brasil na direção da democracia e do desenvolvimento tem sido repleto de compromissos e desafios morais. Vários analistas ressaltam que a herança autoritária continua infestando o sistema e o Brasil ainda é umdos países onde a desigualdade é muito grande. Mas, visto num contexto global, esse sistema no final garantiu a todas as tendências uma participação no processo, o que reduz o incentivo à violência política e outras formas de aventura. À medida que o Brasil emerge
como um novo protagonista internacional, sua história recente de inclusão eleitoral pode ser um modelo para se pôr fim a conflitos e instituir a democracia em outras partes do globo, especialmente onde o capitalismo
não conseguiu ainda garantir a liberdade política.
(*) norte-americano, dirige o Departamentop de História
da Universidade de San Diego; foi presidente da Associação de Estudos Brasileiros
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