domingo, julho 09, 2006

129) O mito da nova India...

Nova Índia não passa de um mito
Pankaj Mishra*
O Estado de São Paulo, 09/07/2006

"A Índia é uma história de estrondoso sucesso capitalista." É o que diz o último número de Foreign Affairs; e no mês passado, muitos executivos e políticos de destaque na Índia celebraram quando Lakshmi Mittal, o quinto homem mais rico do mundo, finalmente teve êxito em sua tomada hostil do controle da siderúrgica Arcelor, de Luxemburgo. O principal jornal econômico da Índia, The Economic Times, resumiu a euforia geral sobre o acontecimento em sua matéria "O controle indiano global: para a Índia, é um anúncio das coisas que virão - superestrelato econômico".

Isso parece persuasivo, desde que não se saiba que Mittal, que vive na Grã-Bretanha, só anunciou seu primeiro investimento na Índia no ano passado. Ele é uma história de sucesso indiana tanto quanto Sergey Brin, o co-fundador de origem russa da Google, é prova do iminente superestrelato econômico da Rússia.

Nas últimas semanas, a Índia parecia uma história improvável de sucesso capitalista enquanto partidos comunistas venciam com folga eleições para Legislativos estaduais e o mercado acionário, que tivera um crescimento recorde nos últimos dois anos, caía quase 20% em duas semanas, varrendo cerca de US$ 2,4 bilhões de riqueza de investidores em meros quatro dias. Na semana passada, o primeiro-ministro Manmohan Singh deixou claro que somente uma pequena minoria de indianos desfrutará dos "padrões ocidentais de vida e alto consumo".

Não há como negar a muitos indianos, porém, a sua convicção de que o século 21 será o século indiano, assim como o 20 foi americano. A autoconfiança exuberante de uma minúscula elite indiana infecta agora cada vez mais a mídia noticiosa e o establishment de política externa nos Estados Unidos.

Encorajado por um poderoso lobby de ricos indo-americanos que procuram expandir sua influência política tanto em seu país natal como no adotivo, o presidente dos EUA, George W. Bush, concordou recentemente em ajudar o programa nuclear da Índia, mesmo com o risco de minar seus esforços para conter as ambições nucleares do Irã. Como que orquestradas, apareceram reportagens e matérias de capa saudando a ascensão da Índia na Time, Foreign Affairs e The Economist no mês passado.

Não faz muito tempo que a Índia aparecia na imprensa americana como uma nação pobre, atrasada e muitas vezes violenta, tolhida por uma burocracia ineficiente e, embora oficialmente não-alinhada, simpática à União Soviética. De repente, o país parece ser não só "uma história de estrondoso sucesso capitalista" como também, segundo Foreign Affairs, um "parceiro estratégico emergente dos EUA". Até que ponto isso é um desejo, em vez de uma estimativa precisa do potencial da Índia?

CHINA E IRÃ
Em busca de novos amigos e parceiros em um mundo em rápida transformação, o governo Bush espera nitidamente que a Índia, uma democracia, seja um contrapeso confiável contra a China e também o Irã. Mas o comércio e a cooperação entre a Índia e a China estão crescendo e, embora grata à generosidade americana na questão nuclear, a Índia depende demais do petróleo do Irã (ela também está estudando o desenvolvimento de um gasoduto até o Irã) para apoiar sem reservas os EUA em seus esforços para impedir a República Islâmica de conseguir sua arma nuclear. O mundo, mais interdependente hoje que durante a Guerra Fria, talvez já não possa ser dividido em alianças e blocos estratégicos.

No entanto, há razões muito mais fortes para esperar que a Índia sustentará de fato os ideais gêmeos americanos de mercados livres e democracia, o que nem a América Latina nem os países pós-comunistas - nem o Iraque - alcançaram.

Desde o início dos anos 1990, quando a economia indiana foi liberalizada, a Índia emergiu como a líder mundial em tecnologia da informação e terceirização de negócios, com um crescimento médio em torno de 6% ao ano. O investimento estrangeiro crescente e o crédito fácil alimentaram uma revolução do consumo nas áreas urbanas. Com seus cafés no estilo Starbucks, profissionais jovens de Blackberry (misto de computador, agenda eletrônica e celular) e shopping centers vendendo marcas de luxo, grandes partes de cidades indianas se esforçam para parecer com Manhattan.

Os magnatas dos negócios indianos estão tentando controlar cada vez mais nomes de destaque, como o champanhe Taittinger e o Carlyle Hotel em Nova York. "India Everywhere" (A Índia em toda parte) foi o slogan dos líderes empresariais indianos no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, neste ano.

Mas a visão de uma Índia centrada cada vez mais nos negócios oculta mais do que revela.As matérias recentes sobre a pretensa ascensão da Índia quase não mencionam o fato de que o Produto Interno Bruto per capita do país (segundo a taxa oficial de câmbio), US$ 728, é pouco superior ao da África subsaariana e por isso, como revela o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2005, mesmo que sustente suas altas taxas de crescimento, a Índia não alcançará os países de alta renda antes de 2106.

POBREZA E DESNUTRIÇÃO
A Índia tampouco está crescendo muito depressa no Índice da ONU de Desenvolvimento Humano, no qual ocupa o 127º lugar, apenas dois degraus acima de Mianmá (ex-Birmânia) e mais de 70 abaixo de Cuba e México. Apesar da recente redução dos níveis de pobreza, quase 380 milhões de indianos ainda vivem com menos de US$ 1 por dia.

A desnutrição afeta metade das crianças na Índia, e são poucos os sinais de que elas estejam sendo ajudadas pelas reformas de mercado do país, que se concentraram mais na criação de riqueza privada que na expansão do acesso a saúde e educação. Apesar da economia crescente do país, 2,5 milhões de crianças indianas morrem anualmente, ou seja, uma em cada cinco mortes de crianças no mundo; e as instalações para a educação primária entraram em colapso em grandes partes do país (o índice de alfabetização oficial, 61%, inclui muitos que mal conseguem escrever seus nomes). No campo, onde vivem 70% dos habitantes indianos, o governo reportou que cerca de 100 mil agricultores cometeram suicídio entre 1993 e 2003.

Nutrindo-se do ressentimento dos que foram deixados para trás pelo crescimento econômico orientado para as cidades, revoltas comunistas (não relacionadas com os partidos comunistas parlamentares da Índia) eclodiram em algumas das partes mais populosas e mais pobres da Índia setentrional e central. O governo indiano já não controla de fato muitos distritos onde comunistas combatem grandes proprietários rurais e as forças policiais, impondo uma forma dura de justiça a uma população rural em grande parte miserável.

O potencial para conflitos - tanto entre castas como entre classes - também aumenta nas áreas urbanas, onde as cruéis disparidades sociais e econômicas da Índia são tão evidentes quanto sua nova prosperidade. A principal razão disso é que o crescimento econômico da Índia não tem criado empregos. Apenas 1,3 milhão de uma população economicamente ativa de 400 milhões está empregado nos setores de tecnologia da informação e de gestão empresarial que constituem a chamada nova economia.

Ainda não ocorreu na Índia um boom industrial com trabalho intensivo do tipo que impulsionou o crescimento econômico em quase todo país desenvolvido e em desenvolvimento do mundo. Diferentemente da China, a Índia ainda importa mais do que exporta. Isto significa que, quando mais 70 milhões de pessoas entrarem na força de trabalho nos próximos cinco anos, a maioria delas sem as habilidades requeridas pela nova economia, o desemprego e a desigualdade poderão aumentar ainda mais a instabilidade social.

Por muitas décadas os desprivilegiados da Índia usaram as eleições para registrar seu protesto contra o desemprego, a desigualdade e a corrupção. Nas eleições gerais de 2004, eles destituíram pelo voto um governo central para o qual a Índia estava "brilhando", surpreendendo não só a maioria dos jornalistas estrangeiros, como os indianos que haviam previsto uma vitória fácil da coalizão governante.

Entre os políticos rejeitados pelos eleitores estava Chandrababu Naidu, o tecnocrático ministro-chefe de um dos Estados mais pobres da Índia, cujas políticas de aparência avançada - como prover acesso à internet em aldeias - levaram a revista Time a declará-lo o "Sul-Asiático do Ano" e "um farol de esperança". Mas a insurgência anti-Índia na Caxemira, que já custou 80 mil vidas na última década e meia, e a força de militantes comunistas violentos em toda a Índia sugerem que eleições regulares poderão não ser suficientes para conter a frustração e a ira de milhões de despossuídos, ou protegê-los das tentações do extremismo religioso ou ideológico.

Muitos problemas sérios se apresentam para a Índia. Eles provavelmente não serão resolvidos enquanto os ricos, tanto dentro como fora do país, optarem por acreditar em seus próprios mitos complacentes.

*Pankaj Mishra é autor de 'Temptations of the West: How to Be Modern in India, Pakistan, Tibet and Beyond' (Tentações do Ocidente: Como Ser Moderno na Índia, Paquistão, Tibete e Além). Escreveu este artigo para o jornal 'The New York Times'.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

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