Postura brasileira em energia nuclear
José Mauricio Bustani
Embaixador do Brasil em Londres
Passou quase despercebido, mas, no mês de maio, o Brasil foi alçado a um novo patamar internacional: integramos o seleto grupo de 10 países dotados de capacidade de enriquecer urânio, juntamente com as cinco potências nucleares oficiais de acordo com o Tratado de Não-Proliferação (TNP), mais Alemanha, Japão, Holanda, Índia e Paquistão. A Fábrica de Combustível Nuclear das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Resende, Rio de janeiro, deverá entrar para os manuais da História do país como uma conquista comparável aos feitos anteriores em áreas como o petróleo (Petrobras), a aeronáutica (Embraer), a hidroeletricidade (Itaipu), o aproveitamento agrícola do cerrado (Embrapa) e a liderança mundial em biocombustíveis. 0 mérito da conquista pertence à comunidade científica, à diplomacia e às lideranças políticas.
Não tenho o necessário conhecimento técnico, como diplomata, para discorrer sobre as dificuldades científico-tecnológicas que enfrentamos. Sou testemunha, contudo, de inúmeros casos em que programas estratégicos do Brasil - como o programa espacial ou de propulsão naval - tiveram seu acesso a materiais e equipamentos externos denegados por governos estrangeiros.
Explorando as ambigüidades das regras de não-proliferação de armas, as grandes potências agem, também, em nome de seus interesses, tanto estratégicos quanto comerciais, para manter um oligopólio internacional em setores de ponta. É desta ótica que, creio, precisa ser considerada a recente proposta de membros do secretariado da Agência Internacional de Energia Atômica de colocar sob controle multinacional as atividades de enriquecimento de urânio. Será mesmo que as grandes potências cederão à comunidade internacional o controle de suas fábricas de urânio enriquecido?
Colocados à prova, contudo, a ciência e os cientistas brasileiros deram mostra de sua engenhosidade, ao desenvolverem uma tecnologia própria e extremamente avançada. Graças a sua inteligência e persistência, o Brasil deixará em poucos anos de ser importador-dependente, passando a ser um dos mais competitivos fornecedores de urânio enriquecido no bilionário mercado internacional. Para enriquecer urânio a 4% (a porcentagem necessária para abastecer uma usina, mas muito abaixo da necessária para fazer uma bomba), EUA e França, que detêm a metade do mercado mundial, consomem cerca de 13.250 kWh/kg, enquanto nosso processo exige apenas 530 kWh/kg.
Nossos cientistas criaram uma nova vantagem comparativa e um novo setor dinâmico na economia brasileira. A política internacional ergueu desafios tão grandes, ou até maiores, dos que os técnicos. É clássica a pressão que exercem as grandes potências em favor do desarmamento da periferia - não apenas militar, mas também científico-tecnológico, tarifário, etc. -, com vistas a preservar seu diferencial de poder, riqueza e influência. Em 2004, uma série de suspeitas a respeito do programa nuclear brasileiro foi estimulada pela mídia internacional, alimentada por desinformações, às vezes endógenas.
Ao invés de perguntarem “quo bono?”, alguns setores da imprensa brasileira ecoaram aquelas suspeitas. Era precisamente o que esperavam os anônimos autores da campanha: voltar à sociedade brasileira contra o projeto de seu governo e forçar a mudança de posição do Brasil nas negociações com o secretariado da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).
A campanha foi frustrada pela competência de nossa diplomacia e pela visão dos interesses nacionais de diversas lideranças políticas. O Itamaraty e o Ministério da Ciência e Tecnologia concluíram com habilidade e firmeza a dificílima negociação com a AIEA. Como democracia madura e transparente, em dia com suas obrigações internacionais, o Brasil não comprometeu seu direito de desenvolver todo tipo de atividade nuclear para fins exclusivamente pacíficos, nos termos do artigo 4° do Tratado de Não-Proliferação.
A atuação de nossa diplomacia foi também instrumental para desmascarar a atitude maliciosa contra o Brasil e reiterar nossas credenciais de ator responsável. Mobilizamo-nos para recordar ao resto do mundo que o compromisso do Brasil com a não-proliferação nuclear data do Tratado de Tlatelolco (1967), que criou a “área livre de armas nucleares” na América Latina; que a Constituição de 1988 formalizou a decisão da nação brasileira de proibir as armas nucleares; que era inaceitável comparar o Brasil a países que admitiram ter atividades paralelas; que o Brasil é um dos mais ativos defensores do desarmamento nuclear. Obtivemos de dois secretários de Estado consecutivos dos EUA, Colin Powell e Condoleezza Rice, claras declarações de confiança nos fins pacíficos do programa nuclear brasileiro.
Nossa maior vulnerabilidade terá sido na frente interna. Aliando-se aos interesses estrangeiros, talvez por pura descrença na capacidade e no futuro do Brasil, alguns setores defenderam que o governo cedesse às exigências. Não caberia aqui citar nomes, mas talvez valha a pena recordar-lhes os argumentos: pequeno e fraco, segundo eles, o Brasil não deveria comprar uma briga com o secretariado da AIEA e, supostamente, as grandes potências, ainda que isso significasse sacrificar o projeto nuclear; ficaríamos isolados internacionalmente e poderíamos sofrer sanções; deveríamos temer nossos próprios setores militares; a energia nuclear seria antiética e anti-econômica; deveríamos, em síntese, aceitar que nosso lugar é na periferia. Hoje, essas mesmas vozes, defendem que o Brasil ponha sua fábrica de combustível nuclear sob controle multinacional. Quanta falácia!
É preciso extrair uma importante lição para o futuro. Como ensinou o presidente da República durante a recente formatura de diplomatas no Itamaraty, o Brasil deve ter um projeto de desenvolvimento e, sobretudo, persegui-lo mantendo a cabeça erguida. Presto minha homenagem a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a concretização do projeto nacional de enriquecimento de urânio no Brasil.
Londres, Junho/2006
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