Idéias para dar e vender
Marta Barcellos
Valor Econômico, 28/07/2006
Tão certo quanto a sucessão dos dias é o fato de que, neste exato momento, alguém está pensando em modos de influir no desenho de políticas do próximo governo. Esta é a seara dos muitos núcleos de produção de idéias e propostas de ação de que é feita a chamada sociedade organizada (incluída a parte que se propõe pensar e agir pelos não-organizados). São estes tempos pré-eleitorais, pela mesma razão, propícios à aceleração da atividade cerebral dos "think tanks", sejam suas formas de agir, depois das eleições, a advocacia aberta ou o exercício elegante de persuasão sobre os formuladores de políticas, no Executivo ou no Legislativo. Quem pretender ser ouvido lá na frente já deve ir montando seus arrazoados - também para justificar o apoio financeiro que recebem, principalmente de empresas e empresários.
Sem preconceito ideológico: reuniões do DNA Brasil (foto) buscam luzes para pensar o país no longo prazo, juntando cabeças como as do MST e do empresariado rural
A via político-partidária seria a mais óbvia para quem pretenda participar da discussão de idéias e quer levá-las adiante. Bastaria fazer uma doação ou ajudar no programa de governo do candidato mais afinado com o pensamento defendido. A prática, no entanto, mostra que, mesmo quando a estrutura política não vive uma crise de credibilidade, como a brasileira, os resultados obtidos por esse caminho tendem a ser menos que proporcionais às possibilidades imaginadas e gastos efetuados. Não por outra razão, e também porque a participação do empresariado na vida política brasileira ganhou amplitude e explicitação permanentes, os "think tanks" firmaram-se como lugares de produção de idéias e construção de influências. Legitimaram-se como canais de comunicação entre o pensar e o fazer.
Apesar dos percalços que geralmente enfrentam em matéria de financiamento, os "think tanks" vêm ganhando terreno no Brasil e, abstração feita de algumas iniciativas mal-sucedidas, têm consolidado sua presença na cena intelectual e política do país - o que também indica que podem estar encontrando o caminho da sustentabilidade financeira, graças à captação regular de recursos, e também, como é bastante comum, por meio de prestação de serviços remunerados. Para comparar: o Instituto Futuro Brasil e o Instituto Liberal têm orçamentos equivalentes a US$ 140 mil (2003) e US$ 200 mil (2004), respectivamente, segundo o Nira´s World Directory of Think Tanks; a Brookings Institution, um entre muitos exemplos de fartura orçamentária nos EUA, tem verba anual em torno de US$ 35 milhões e a Rand Corporation alcança a casa dos US$ 200 milhões.
Aqui, nascer com uma estrutura enxuta, apostar nas ferramentas mais modernas de comunicação, como a internet, e contar com o prestígio pessoal de alguns notáveis ajuda na tarefa de alcançar objetivos com recursos bem menos polpudos. E surgem os modos criativos de arrecadar meios de trabalho. "Estamos constituindo um fundo patrimonial e já conseguimos verba para o primeiro estudo", comemora Patrícia Carlos de Andrade, economista e fundadora do caçula entre os "think tanks" brasileiros, o Instituto Millenium, que funciona desde janeiro no Rio. "Temos o apoio de alguns grandes empresários, o que nos garante a existência a longo prazo."
Antes do Millenium, outras organizações conseguiram consolidar uma imagem de credibilidade, fundamental para obter repercussão para pesquisas, eventos e propostas. São exemplos, entre outros (além do IFB, IL e IRI), o DNA Brasil, a Casa das Garças, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Ietis), o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone) e, mais antigo, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
O objetivo do Millenium é "intervir no debate público, para promover os valores de liberdade, economia de mercado e Estado eficiente, por meio de estudos e publicações", como anuncia seu site. Mas Patrícia pretende ir além das pesquisas como habitualmente são feitas, com certo teor de subjetividade, para criar índices que possibilitem comparações e gerem impacto.
Na prática, o pensamento liberal une o Millenium a um dos pioneiros "think tanks" no Brasil, o Instituto Liberal, fundado em 1983 no Rio, e que, no auge de suas atividades, gerou organizações congêneres em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco e Brasília. Desses, apenas o centro gaúcho permanece aberto, agora com o nome de Instituto Liberdade.
Não é coincidência que um dos mais antigos e o mais novo "think tank" do país defendam idéias liberais. "Não existe 'think tank' de esquerda", afirma Denise Barbosa Gros, pesquisadora da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e doutora em ciências sociais pela Unicamp. "Eles sempre são vinculados ao pensamento liberal e de direita, porque estão nas mãos do grande capital. Essa é sua origem. Trabalhadores e grupos de esquerda não dispõem dos recursos para financiá-los", explica.
Em sua tese de doutorado, Denise pesquisou a origem dos "think tanks" no Reino Unido e nos EUA. Descobriu uma rede de parcerias que ajudava a difundir idéias liberais pelo mundo, com financiamento de estudos por parte dos "think tanks" americanos em diversos países, inclusive no Brasil.
Pela lógica dos "think tanks" pioneiros, porém, a visão acadêmica de Denise poderia estar contaminada pela influência histórica das esquerdas no campus universitário. Os centros de pensamento independentes surgiram nos EUA justamente para fazer frente ao domínio das idéias socialistas nas universidades americanas e na mídia, com o desafio de gerar um movimento intelectual tão relevante e influente quanto a academia.
Recursos intelectuais não bastarão, porém, para um "think tank" funcionar com eficiência. São necessários recursos. De preferência, fontes consistentes de financiamento. É o que não falta no Reino Unido e principalmente nos EUA, onde os "think tanks" nasceram e tornaram-se poderosos e respeitados. Com corpo técnico próprio, acadêmicos contratados a peso de ouro e lobbies eficazes no Congresso, não são poucos os que recebem muito dinheiro de grandes empresas e fundações, não apenas para fazer pesquisas, mas também, e às vezes principalmente, para a promoção externa de seus resultados. Foi num "think tank" - o Institute for International Economics - que nasceu o famigerado Consenso de Washington, elaborado por John Williamson.
Se o desafio de ganhar a mesma credibilidade das instituições acadêmicas tradicionais é grande e às vezes a isenção pode ficar comprometida pelos interesses dos financiadores, os "think tanks" levam vantagem em pelo menos um aspecto: a objetividade. Afinal, foi nos campos de batalha da Segunda Guerra, onde não se podia perder tempo com tergiversações, que surgiu o modelo americano de pesquisa que unia especialistas civis e objetivos militares, numa inédita sinergia de esforços.
Os primeiros "think tanks" americanos inspiraram-se, então, na experiência do "militar intelectual", estabeleceram-se logo após o término da Segunda Guerra e cedo descobriram o alcance que sua estratégia poderia ter na política.
O Brasil não está numa situação de guerra, mas a urgência para resolver problemas aproxima o país da necessidade de unir esforços em torno de metas de curto prazo. Ponto para os "think tanks", e sua disposição para defender propostas claras - inclusive, como parte de planos de lobby explícito.
"Os institutos de pesquisas acadêmicos fazem circular estudos, às vezes até chegam às propostas, mas param por aí", compara Patrícia, do Millenium. "Nossa idéia é deixar o prato feito, para algum político implementar", diz o economista Paulo Rabello de Castro, vice-presidente do Instituto Atlântico, uma das entidades que mais apresentaram propostas de emendas durante a revisão constitucional de 1993.
A exemplo do Instituto Liberal, os bons tempos do Atlântico ficaram para trás, pelo mesmo motivo de escassez de patrocinadores. Castro diz que "há uma pulverização de esforços e os financiadores são os mesmos". Mas, "para ser bem-sucedido, um 'think tank' precisa ter pelo menos um executivo remunerado". Em seu caso, "nem dá para calcular o tempo que gastei, e em que deixei de ganhar dinheiro, tentando salvar a pátria", lamenta.
Nem todos reclamam da falta de apoio financeiro. No Millenium, que tem Arminio Fraga,
ex-presidente do Banco Central, como gestor do fundo patrimonial, "a captação de recursos está melhor do que o esperado", diz Patrícia. Fraga também integra o conselho técnico do IFB, ao lado de outras estrelas do pensamento econômico brasileiro, como Affonso Celso Pastore, Claudio Haddad, Eliana Cardoso e Pedro Malan.
No Instituto Liberal - que nos anos 1980 e 90 ficou conhecido pela tradução de obras clássicas liberais e por uma detalhada proposta para a previdência social -, a reclamação sobre a falta de financiamento foi substituída pela empolgação com os meios avançados de comunicação.
"Decidimos colocar nossas poucas fichas na internet, depois de constatar que nossos comentários se espalhavam espontaneamente pela rede e que muitos chegavam ao nosso site pelo Google", diz o vice-presidente, economista Roberto Fendt. A digitalização dos arquivos e a reforma do site, além da ampliação do "mailing" de 3 mil "formadores de opinião" fazem parte dos planos mais imediatos do Instituto Liberal.
Também investe na reformulação de seu site e no potencial de seus arquivos o Instituto Fernando Henrique Cardoso, fundado pelo ex-presidente. Enquanto o Instituto Liberal procura desvincular-se do partido homônimo, o de Fernando Henrique vê-se cercado de desconfiança a respeito de seus vínculos políticos e partidários (com o PSDB). "Aqui no Brasil as pessoas conhecem pouco o conceito do 'think tank'", diz Sérgio Fausto, coordenador de projetos do Instituto. "É mais fácil explicar o nosso trabalho lá fora."
O Instituto escolheu alguns temas específicos para neles se aprofundar, como tecnologia, meio ambiente e metrópoles. Da idéia de descobrir quais são os novos temas relevantes para o país surgiu o estudo coordenado pelo economista André Urani: "Uma Nova Agenda de Desenvolvimento para a América Latina". Trata-se de produto típico de um "think tank", encomendado a um acadêmico respeitado e financiado por entidades internacionais - no caso, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Corporación de Estudios para Latinoamérica (Cieplan), do Chile.
Se para estruturar e financiar estudos o Instituto vem descobrindo o caminho das verbas, a tarefa de garantir a participação espontânea dos simpatizantes da entidade não é tão fácil. "É preciso manter a animação do baile", compara Fausto. "A internet vai nos dar esse instrumento, com discussões virtuais." Fausto ressalta que, por enquanto, a entidade está mais voltada para o debate de idéias do que para formulação de políticas públicas. "Não vamos virar uma máquina de fazer propostas", diz.
O prestígio de Fernando Henrique ajuda na captação de recursos, mas ao mesmo tempo, em ano eleitoral, é preciso explicar que o Instituto "não é comitê nem braço do PSDB".
Mesmo quando não são tão personalizados, os "think tanks" no Brasil se valem do prestígio individual de seus membros, do meio acadêmico ou empresarial, para ganhar espaço e credibilidade. É o caso da Casa das Garças e do Cebri, no Rio, como do DNA Brasil e do Cebrap, em São Paulo.
Comandado por Edmar Bacha e Dionísio Dias Carneiro, economistas oriundos da PUC do Rio, o Instituto de Estudos de Política Econômica, nome oficial do núcleo instalado na casa projetada por Oscar Niemeyer, segue a cartilha "apartidária" dos "think tanks" que se considerariam "puros", mas acaba identificado com o PSDB e sua política econômica neoliberal.
O DNA Brasil foi idealizado pelo empresário Ricardo Semler, que sonhava com um "think tank" inovador. De fato, o DNA conseguiu se diferenciar, juntando, em eventos anuais para "pensar o país no longo prazo", personagens tão díspares quanto o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, o fazendeiro Luiz Hafers, o padre católico Júlio Lancelotti e a monja budista Coen.
Afinal, qual é a orientação ideológica do DNA Brasil? "Nos posicionamos como o instituto que congrega a maior diversidade de cabeças pensantes do país, independentemente de sua posição ideológica", afirma Horacio Lafer Piva, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e um dos fundadores do DNA, no fim de 2004.
O risco de juntar 50 pessoas brilhantes de áreas diferentes e nada acontecer é grande. Por isso, o DNA se preocupa em direcionar os debates em torno de temas e gerar publicações. Do evento "Somos ou Estamos Corruptos", por exemplo, saíram 19 pontos de combate à corrupção e um livro. No "Programa Parlamentar", a idéia é obter ainda mais impacto político, apresentando a deputados senadores informações aprofundadas sobre cada assunto. O primeiro evento tratou da educação no Brasil.
Na área social, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) é outro "think tank" que tem por missão fazer a ponte entre a pesquisa acadêmica e políticas públicas afinal implementadas em diferentes setores. Criado em 1999, o Iets tem em seu conselho consultivo nomes como os de José Alexandre Scheinkman, Marcos Lisboa, Pedro Moreira Salles e Wanderley Guilherme dos Santos.
O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), um "think tank" tradicional, faz uma ponte entre o mundo da academia e da intelectualidade independente. Fundado em 1969 por um grupo de professores universitários - alguns afastados da Universidade pela ditadura militar - tem como criadores José Arhur Giannotti, Fernando Henrique e Ruth Cardoso, entre outros. Pelo respaldo acadêmico, o Cebrap dispõe de auxílio financeiro de instituições nacionais e estrangeiras, o que lhe permite desenvolver seus programas de pesquisas e estudos, com independência intelectual garantida pela diversificação das fontes de financiamento.
Mas os "think tanks" não precisam ter objetivos múltiplos. Podem ser setoriais ou temáticos. A denominação está sendo utilizada até mesmo dentro das empresas, para designar "forças tarefas", que estudam questões externas e seus reflexos nos negócios. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), criado em 1989 e mantido por quase 50 grandes empresas nacionais, faz contraponto às organizações liberais e defende a formulação de políticas de desenvolvimento industrial, em parceria com o governo.
O Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) também se autodefine como "think tank", uma instituição independente, multidisciplinar e apartidária. Formado para promover estudos e debates sobre temas prioritários da política externa brasileira e das relações internacionais em geral, o Cebri foi criado em 1998 por um grupo de intelectuais, empresários, autoridades governamentais e acadêmicos, com a pretensão de ser o mais importante "think tank" de políticas públicas na área externa do Brasil. Entre os sócios-fundadores estão empresas como Aracruz, Bradesco, British Petroleum, Coca-Cola, Embraer, Unilever. Seu presidente é José Botafogo Gonçalves, ex-ministro da Indústria e Comércio, que sucedeu a Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores no governo de Fernando Henrique Cardoso.
No ano passado, foi a vez de os representantes do setor cafeeiro buscarem o formato dos "think tanks" para fundar o Centro de Inteligência do Café (CIC), com o objetivo de pesquisar e formular propostas para o agronegócio do café. "Queremos resultados", diz Carlos Brando, presidente da consultoria P&A e consultor do CIC. "O meio acadêmico faz estudos sobre o agronegócio, mas fica querendo provar seus pontos. Nem sempre é isso que o mundo dos negócios precisa."
A pesquisadora Denise Gros reconhece que nem todas as organizações que usam a designação são "think tanks" legítimos, mas refuta a hipótese de que o fenômeno seja um modismo. "Na medida em que os interesses econômicos das grandes empresas não forem atendidos pelas políticas públicas, vão surgir mais 'think tanks'", prevê. Ou seja, eles não só vieram para ficar como são uma tendência.
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