PERCEPÇÃO POLÍTICA: O EXEMPLO DE BRUNETTO LATINA
Regina Caldas, 2004
A vida de Brunetto Latini ( 1220-1294), coincide com um dos períodos mais agitados da história política florentina . Tendo recebido formação para se tornar notário, Brunetto foi treinado para escrever em latim nas mais variadas formas de contratos e na redação de atos e documentos governamentais. Como praticante de notário, atestou mortes, atos de ultima vontade, acordos de negócios particulares e do estado, entre Florença e outras cidades.
Brunetto Latini foi uma proeminente figura da vida pública florentina. Ocupou vários cargos de confiança como chefe de chancelaria, conselheiro e por duas vezes, embaixador. Foi também escritor, e seus livros são relatórios baseados em experiências adquiridas na vida pública. Foi na França, durante um curto período de exílio, como Dante e Machiavelli, que escreveu seus melhores livros: “Li Livres dou Tresor” (no estilo das enciclopédias medievais), o inacabado “Il Tesoretto”, um trabalho alegórico e didático em versos, e “Rettorica”, um comentário do livro de Cícero, “De inventione”. Seus escritos revelam a sua maior paixão na vida pública: a palavra e seu efeito na vida comunitária.
Aos olhos de Brunetto, a vida urbana significava a verdadeira forma de sociedade civilizada. Exagerando uma visão de Cícero, ele considerava a retórica, a suprema ciência de governar uma cidade. A arte de falar sem a qual a cidade não existia, pois faltariam justiça e solidariedade. Para ele a civilização originava-se na palavra, unindo os homens e levando-os a viverem juntos em algum lugar e debaixo de leis.
Li Livres dou Tresor, foi a primeira enciclopédia a ser escrita para ensinar as leis, e dirigida aos burgueses. Entretanto isto também trata de teologia, ciências naturais e história, mas os temas centrais são a ética, retórica e governo urbano. Seus mentores intelectuais foram Aristóteles e Cícero. O primeiro ajudou o autor a perceber as conexões entre ética, vida comunitária e política, enquanto com o segundo aprendeu a importância da retórica. Mas ele foi além de endossar seus inspiradores revelando uma extrema preocupação com os problemas políticos e morais dos espaços urbanos. Discutiu a dinâmica dos negócios e do dinheiro, a civilidade, a usura, o serviço comunitário, os departamentos de estado, a autoridade política e a justiça civil. A parte mais importante do Tresor aparece no livro III. Aqui ele trata da retórica e da “boa fala”, e se envolve com as cidades italianas e seus regimes comunais durante o período central do século XIII , discutindo as funções do “podestà”. Seus escritos nos oferecem uma percepção do homem como indivíduo e também uma visão acurada dos problemas de seu tempo. Ele aborda a natureza e origem dos governos, a ligação ideal entre o “podestà” e a comunidade, incluindo eleições e qualidades requeridas num bom governante. Trata também de todas as formalidades necessárias à chegada de um novo governante, a relação com o seu staff, reuniões com os conselhos comunitários, indicação de embaixadores, administração da justiça, suas responsabilidades sobre os direitos e propriedades dos cidadãos, preparo de seu sucessor, e tudo o que deve executar antes de deixar o governo. O livro é dirigido ao “podestà” e aos cidadãos. É um tratado prático e preciso, que além de ensinar as solenidades do cargo, também fala de justiça, imparcialidade, vontade divina e os benefícios da paz. ´
Uma preocupação de Brunetto a respeito das eleições para o cargo de governar uma cidade, referia-se a seleção dos candidatos, quase sempre de origem nobre. Ele recomendava aos cidadãos que, ao fazerem suas escolhas considerassem acima de tudo a nobreza do coração, uma vida de costumes honrados, seu trabalho e seu lar. Para tanto ele concluía: “Muitas pessoas não consideram os hábitos do candidato, mas sim o poder que ele comanda para a sua linhagem ou para os seus desejos. Eles estão, entretanto enganados, pois o ódio e a guerra têm se multiplicado entre nós, sendo isto o sinônimo de uma divisão entre os burgueses. E os cidadãos que amam uma facção odeiam as outras. Tiranos como Ezzelino da Romano, Torriani e outros, desfilavam aos olhos de Brunetto como resultado da tendência popular de eleger candidatos na base do seu poder, de suas ambições ou sua popularidade. Para ele, o poder deveria ser partilhado entre a experiência, os bem sucedidos e as eminências. Nas sociedades fortemente marcadas pelo status, deferências e intelectualidade, a tendência é que as altas classes tornem-se elitistas e cuidem apenas de proteger seus próprios interesses.
Outra preocupação do notário, relativa ao governo, era de que os governantes deveriam manter afastadas suas relações de amizade enquanto ocupassem cargos de poder, já que isto diminuiria a dignidade do cargo, levantava suspeitas e estimulava a discórdia civil. A implicação era de que o “podestà” poderia ser tentado a ajudar os amigos violando as leis. Um podestà jamais deveria vender justiça ou receber presentes, afirmava ele.. E concluia que sendo a comunidade sempre dividida pelos interesses dos vários grupos sociais, a melhor maneira de se impor barreiras à corrupção e às dissidias seria obedecer a lei e temer a Deus.
O código de Brunetto, a ser seguido pelo bom governante determinava:
Não aceite um segundo termo;
Não faça amigos enquanto estiver governando;
Não mantenha contactos pessoais;
Não adquira débitos com pessoa alguma;
Não se permita ser louvado pelo conselho;
Esteja acima das partes e facções;
Sempre consulte os cidadãos mais capazes;
Favoreça a opinião e o conselho da maioria;
Obedeça estritamente a lei em todas as circunstancias;
Não aumente as taxas e impostos deixando a população endividada, salvo por manifesto benefício à cidade e pela aprovação do conselho.
Como fica muito claro na concepção do notário, justiça não soluciona todos os problemas existentes dentro de uma comunidade, pois as pessoas diferem umas das outras e assim sempre será. O homem sempre tem uma concepção arbitrária ao reclamar para si os bens terrenos. Mas, estando a justiça no meio deles torna-se possível a convivência social.
Em vários aspectos de seus escritos, Brunetto manifestou pensamentos e atitudes que retrataram a percepção local própria do século XIII. Porém, quando fala de política e sociedade, seus pensamentos são extraídos de um forte apego à cidade tendo-a como um fim em si mesma. E, numa época em que todo ato de governo era considerado fruto da vontade divina, sua visão política vai além de seu tempo. A noção medieval de que todo poder político provinha de Deus não era uma abstração. Continuamente, nas falas públicas o homem era conduzido a aceitar plenamente a vontade divina em seu destino. A doutrina era enunciada sob o juramento de que reis e governantes reconheciam a origem divina de sua autoridade. As conseqüências eram de ordem prática. Se toda a atividade política origina-se de uma concepção religiosa e sujeita à uma ordem de valores eternos, quem governava estava imbuído de um poder superior incontestável para criar as leis, julgar, administrar e decidir os destinos da cidade e de seus cidadãos, conduzi-los à guerra ou à paz. E as conseqüências para os cidadãos eram claras, os heréticos eram condenados à morte. Foi Brunetto Latini que, durante o tempo em que esteve exilado na França, primeiro manifestou sua compreensão da necessidade de separar a gestão do Estado de suas origens de cunho espiritual tornando-o secular. Mas, para que a semente de seu pensamento se espalhasse e provocasse mudanças para governos seculares levou tempo.
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