domingo, novembro 18, 2007

279) Historia do Brasil: o legado do Estado Novo

O legado do estado novo
RUDOLFO LAGO e CLÁUDIO CAMARGO
Revista IstoÉ, 15 novembro 2007

Sete décadas depois, é possível ver que a ditadura de Getúlio Vargas não foi apenas uma tirania, mas também mudou a face do Brasil pela industrialização

Com a CLT, o regime obteve o apoio dos trabalhadores. Mas os sindicatos ficaram sob a tutela do Estado

O historiador francês Fernand Braudel dizia que o tempo breve é “a mais caprichosa, a mais enganadora de todas as durações” históricas porque combina e confunde o efêmero e o permanente. Até anos atrás, o Estado Novo, a ditadura implantada por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 com o apoio das Forças Armadas, era considerado a encarnação do mal absoluto. Estudiosos lembravam que o regime deixara como legado a institucionalização da repressão. O escritor alagoano Graciliano Ramos resumiu essa idéia em páginas célebres de Memórias do cárcere: “O que me atormenta não é o fato de ser oprimido. É saber que a opressão se erigiu em sistema.” Recentemente, o cinema resgatou para milhões de brasileiros uma das grandes vítimas do período, Olga Benário Prestes. Militante comunista, judia e alemã, a mulher de Luís Carlos Prestes foi presa pela polícia política em 1936 e deportada grávida para a Alemanha nazista, onde seria assassinada no campo de concentração de Ravensbrück. Setenta anos depois da implantação do Estado Novo, não estamos ainda no que Braudel chamava de “tempo longo”, mas já é possível analisar aquele período de maneira menos maniqueísta. Constata-se que Vargas não foi mais um ditadorzinho latino-americano, mas talvez um déspota esclarecido, líder de uma “revolução pelo alto” que lançou as bases da industrialização do Brasil: no fim do regime, já não éramos mais um país essencialmente agrícola. A mudança no bloco de poder trazida por essas transformações implicou também o reconhecimento de direitos trabalhistas, embora o preço disso tenha sido a perda da autonomia política dos trabalhadores pelo atrelamento dos sindicatos ao Estado – situação que perdurou por décadas.

Vargas era um líder de massas saudado como “pai dos pobres” em atos públicos que lotavam estádios como o Pacaembu, em São Paulo

O papel dúbio que os intelectuais progressistas tiveram no Estado Novo ilustra com clareza as contradições de uma ditadura modernizante. O humorista Aparício Torelly, o “Barão de Itararé”, foi preso tantas vezes e apanhou tanto em todas elas que, com sua fina ironia, colocou um aviso na porta de seu escritório que se destinava aos soldados da polícia política de Getúlio Vargas: “Entre sem bater”. Antes de escrever Memórias do cárcere, Graciliano Ramos havia sido apeado da prefeitura de sua cidade natal, Palmeira dos Índios, passando anos preso na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Mas, enquanto intelectuais como Torelly e Graciliano amargavam a cadeia, outros, igualmente de esquerda – como Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, sem contar Heitor Villa-Lobos e Manuel Bandeira –, trabalhavam para a ditadura. Sob a proteção do ministro da Educação, Gustavo Capanema, esses intelectuais desenvolviam projetos elaborados por setores progressistas. Mario de Andrade, por exemplo, um dos pais do movimento modernista, pôde no governo implementar os conceitos de identidade nacional que o modernismo esboçou na década de 20. Ali, instalou o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Enquanto isso, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido por Lourival Fontes, um brilhante intelectual de direita, controlava toda atividade jornalística e cultural e alimentava o culto à personalidade do ditador.

O culto à personalidade era comum entre os ditadores e Vargas não foi exceção

Historicamente, as raízes do Estado Novo se situam no contexto da nova ordem mundial trazido pelo fim da I Guerra Mundial e da eclosão da Revolução Russa de 1917. Em toda a Europa, surgiam regimes de direita nacionalistas e autoritários, que reagiam tanto ao Estado liberal em crise quanto ao comunismo emergente. Esses regimes, como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha, se fortaleceram principalmente depois do crack da Bolsa de Nova York de 1929, que mergulhou o mundo capitalista na maior depressão econômica da sua história. No entanto, mais do que no fascismo e no nazismo, é principalmente no corporativismo de António de Oliveira Salazar, de Portugal, que o Estado Novo getulista se inspira. A ditadura de Salazar, instalada em 1933, aliás, também se autodenominava “Estado Novo”. De acordo com a historiadora Maria Celina D’Araújo, “na crítica às instituições representativas da democracia liberal – organizações populares, sufrágio universal ampliado, governos representativos, competição eleitoral, partidos políticos, entre outras –, esse modelo propunha que as atividades políticas fossem substituídas por trabalhos técnicos em comissões e conselhos de grupos profissionais ou econômicos”. Segundo ela, “os partidos e a liberdade de organização deveriam ser substituídos por câmaras e/ou setores da produção organizados e liderados por um Estado fortalecido”. O Estado Novo foi a resposta brasileira à crise de 1929.

Paradoxalmente, o Brasil se americanizou durante o Estado Novo. E Carmen Miranda foi a expressão desse fenômeno

Antes de ceder às pressões econômicas e políticas e ingressar na II Guerra Mundial ao lado dos aliados, Getúlio Vargas deixava claro sua simpatia pelos regimes fortes. Em 1940, num discurso diante de militares no navio São Paulo, ele elogiou “as nações fortes que se impõem pela organização baseada no sentimento da pátria e pela convicção da própria superioridade”. O próprio governo estava dividido entre simpatizantes do Eixo, como os generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, e adeptos do alinhamento aos aliados, como o ministro Osvaldo Aranha. Segundo Maria Celina D’Araújo, “o Brasil, ainda que numa posição assimétrica de força, soube tirar proveito das ambições e necessidades dos dois blocos de poder representados pelos EsEstados Unidos e Alemanha [...] Iniciouse então um delicado momento na política externa brasileira, amenizado com a decisão norte-americana de financiar a indústria de aço no Brasil”.

Foi o início do processo de industrialização do País por substituição de importações. Além da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), o governo Vargas criou a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco e a Fábrica Nacional de Motores, a primeira indústria automobilística do País. O funcionalismo público foi modernizado com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Estudioso do período, a quem dedicou um longo capítulo no seu livro A presença dos Estados Unidos no Brasil, o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira defende que os aspectos ditatoriais do Estado Novo precisam ser compreendidos dentro do contexto da época. Vargas é contemporâneo de vários outros ditadores de características semelhantes, de direita ou de esquerda, como Hitler na Alemanha, Salazar em Portugal, Francisco Franco na Espanha, Stálin na União Soviética ou Juan Domingo Perón na Argentina.

“O autoritarismo, naquele momento, era inevitável, dado tanto o contexto nacional como internacional”, analisa Moniz Bandeira. No âmbito interno, considera o professor, Vargas talvez não tivesse sido capaz de romper o poder da oligarquia agrária que dominou os governos desde a proclamação da República sem seu golpe de força. Pelo voto, o próprio Getúlio tentara chegar à Presidência em 1930. Foi a derrota e a pressão dos setores que não se sentiam representados pelo regime da Velha República, centrado nos interesses agrícolas especialmente de Minas Gerais e São Paulo, que levaram ao primeiro golpe de Vargas, na Revolução de 1930. A resistência a mudanças, porém, permanecia forte em 1937, segundo o cientista político. “Havia uma elite que não percebia que o modelo anterior, agroexportador, estaestava esgotado. A industrialização era uma necessidade histórica, e Getúlio Vargas tinha consciência disso.”

O Brasil deixou de lado as simpatias pelo Eixo e mandou soldados lutar nos campos da Itália

O nacionalismo era a tônica do regime. Paradoxalmente, como escreve a historiadora Maria Celina D’Araújo, “também durante o Estado Novo o Brasil entrou definitivamente na órbita cultural dos Estados Unidos; foi nessa ocasião que o personagem de quadrinhos Zé Carioca foi criado pelos Estúdios Disney e que Carmen Miranda foi içada a símbolo da boa vizinhança entre os EUA e o Brasil”. Cantando em Hollywood, a “Pequena Notável” – apelido dado pelo radialista César Ladeira – virou símbolo da cooperação entre os dois países, mas ganhou o desprezo de muitos brasileiros que a acusaram se ter-se americanizado.

No final de 1945, a vitória aliada na Segunda Guerra e a conjuntura nacional viraram o País de ponta- cabeça. Antevendo o realinhamento de forças políticas, o líder comunista Luís Carlos Prestes saiu da cadeia para apoiar o ditador contra a direita, já então ferozmente antigetulista. Em 29 de outubro daquele ano, as mesmas forças que ajudaram a levar Vargas ao poder depuseram-no. Mas o Brasil nunca mais seria o mesmo.

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