segunda-feira, outubro 12, 2009

529) FMI e o Brasil: quando o governo do PT tinha restricoes ao FMI

Atualmente, final de 2009, o governo se vangloria de "emprestar" dinheiro ao FMI, o que é tecnicamente equivocado (mais passons...).

O texto abaixo se refere a um debate de outra época, segundo semestre de 2003, quando o governo debatia a oportunidade e a necessidade de se refazer, renovar, renegociar o acordo do Brasil com o FMI.
Nele eu comento artigos postados no boletim da Fundação Perseu Abramo, do PT, sobre o tema.

O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas
Comentarios de Paulo Roberto de Almeida
16 de setembro de 2003

Li com atencao o texto em questao mas tenho serias duvidas sobre algumas das afirmacoes ali contidas.
Por exemplo, em primeiro lugar, a de que se for feito um novo acordo com o FMI este nao pode obstaculizer políticas de desenvolvimento. Ora, nao sao os acordos com o FMI (exatamente tres ate aqui, talvez quatro dentro em breve: em 1998, em 2001 e em 2002) que tem introduzido constrangimentos ao processo de desenvolvimento brasileiro. Esses constrangimentos precedem de muito os acordos com o FMI e tem sido uma constante desde os anos 80, pelo menos. Pode-se pensar, pela afirmacao, que a ausencia desses acordos teria sido uma situacao melhor, de "liberdade" para crescer, do que sua efetivacao, a pedido do Brasil. O Pais não é certamente obrigado a pedir ajuda ao FMI, mas se o faz, deve haver alguma razao, e ela nao se prende à necessidade de crescer, mas sim a de evitar um problema maior. Nao se deve olvidar que os acordos foram todos preventivos, evitando situacoes de default e moratoria, como as que enfrenta hoje a Argentina. Esta teria sido uma melhor solucao para o Brasil? Nao me parece...
Parece-me, por outro lado, absolutamente caotico, para a imagem de seriedade do governo, esta situacao descrita no proprio artigo com base em artigos de imprensa: "“se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas”. O jornal O Globo noticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os
ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção."
Isto, sem mencionar declaracoes de meia duzia de parlamentares, da esquerda, da "direita" e do centro do PT, alem de outros lideres politicos de todos os quadrantes possivel. Nao creio que uam discussao publica sobre como deve ser ou nao ser o futuro acordo com o FMI agregue algo em termos de esclarecimento publico ou de coerencia nas posicoes do governo. Deveria haver uma opiniao de governo sobre assunto tao importante e nao "achismos" individuais de pessoas nao envolvidas com a administracao financeira do Pais. A cacofonia e a dispersao de posicoes deveriam ser apontadas na matéria em questao como fatores de debilitamento, nao de fortalecimento, da postura negociadora do Brasil.
Que o ministro encarregado do CDES, por exemplo, fique dizendo qual deve ser o patamar de juros, de superavit e de cambio, me soa totalmente surrealista, contribuindo mais uma vez para o que o PT quer mais evitar: volatilidade. Esta, ao contrario do que pensam alguns, nao é um alienigena que ataca o Brasil desde o exterior, mas é criada basicamente pelas politicas e praticas internas, made in Brazil...
Mais surrealista ainda é o relator do Orcamento indicar, ele proprio, quais sao as questoes que devem ser renegociadas com o FMI, que ele mesmo aponta como sendo: "retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário"; "emissão dos Títulos da Dívida Agrária"; "mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios". Propriamente inacreditavel. Por acaso o relator do orcamento é responsavel pelas negociacoes com o Fundo, é o guardiao da moeda? Creio que ele tem por dever, em primeiro lugar, de zelar pelo equilibrio do orcamento que sair da Camara, mas me parece pouco preparado para estabelecer
condicionalidades sobre as quais ele nao tem o minimo envolvimento. Ele contribui assim para o aumento da volatilidade...
O conselho de Stiglitz aos argentinos me parece totalmente dispensavel ou entao ridiculo: ele nao é o responsavel pelas contas argentinas e o melhor que teria a fazer, como economista responsavel, seria ficar quieto, pois a decisao compete absolutamente aos argentinos...
O autor da "teoria dos tres erros" se apoia em Stiglitz para dizer que o FMI nao é um hospital. Talvez nao, mas o Brasil, ou a Argentina, poderiam entao tentar viver sem essa UTI, o que significa viver com meios proprios e sem esse emprestador de ultima instancia que constitui o FMI. Que esta reflita a visao da chamada comunidade financeira internacional é a mais absoluta verdade, mas a questao é a de saber se o Brasil pretende viver à margem dessa comunidade. Pode viver sem depender, o que depende inteiramente dele, nao da mal vista comunidade.
Fundos regionais, como reconhecem outros economistas tao ou mais importantes do que Stiglitz, contribuem para o que se chama de "moral hazard", ao aumentar a exposicao dos mesmos paises que normalmente iriam parar na UTI do FMI. Que este pratique confidencialidade, naoé de se estranhar, na medida em que lida com dados sensiveis, comparaveis ao cadastro de um cliente privado. Ou ou autor do artigo gostaria, por exemplo, que seus dados bancarios e de patrimonio estivessem expostos ao conhecimento
publico em quaisquer circunstancias?
Compreende-se a visao estreita do FMI em favor dos credores: condenavel moralmente, mas pode-se perguntar: em caso de necessidade um pais vai tomar dinheiro dos "cidadãos ou das economias em seu conjunto", ou sera que o unico dinheiro disponivel nao é, basicamente os dos "credores"? E estes vao pensar nos interesses dos cidadaos e da economia em geral ou nos seus proprios interesses? A indignacao moral pode ser bonita como posicao publica, mas resolve muito pouco dificuldades concretas de paises
desequilibrados. E, ao contrario do que diz a materia ("E é raro que ele não receba o que emprestou"), inadimplencias e renegociacoes sao muito mais frequentes do que se pensa...

A ortodoxia do FMI nao é melhor ou pior do que qualquer outra ortodoxia: pode funcionar em certas circunstancias e nao funcionar em outras. O duro é ter de depender de qualquer ortodoxia, mas ninguem é obrigado a seguir a do FMI ou a de qualquer outro parceiro externo: basta ter independencia e nao precisar de credito externo.
O artigo de Fernando Carvalho retrata uma realidade keynesiana que tornou-se inaplicavel, anacronica e equivocada. O FMI, em seu inicio, meio ou fim, nunca zelou pelo "equilíbrio das transações correntes entre os países", mas tao simplesmente pela liberalizacao dos pagamentos para sustentar essas transacoes correntes, deixando a criterio dos paises seus meios de financiamento (IDE, emprestimos, rendas do capital, etc). O FMI sempre interveio, antes, durante e depois desse mundo keynesiano, quando
algum pais em desequilibrio necessitava de uma transfusao temporaria de liquidez, apenas e tao somente isso (ele tinha o papel de guardiao cambial também, mas isso acabou em 1981-73).
Ele nunca teve foco em paises desenvolvidos ou em desenvolvimento: ele esta apenas a servico de seus membros, sejam estes pobres, ricos ou remediados. Nao se deve confundir situacoes conjunturais com mandato preferencial...
O FMI nunca sofreu reversao nenhuma quanto ao controle de capitais, pois que ele nunca teve mandato para cuidar dessa area. Quem pressionou o FMI a entrar na area foram os paises desenvolvidos como os EUA e alguns europeus, contra a opiniao de outros desenvolvidos e outros europeus. A crise asiatica se encarregou de enterrar essas propostas, que nao sao absurdas em si, apenas talvez prematuras...

Quanto ao terceiro erro, parece que se confunde duas coisas: consistencia ou inconsistencia das receitas do FMI e o fato de ele ser ou nao um ativo de credibilidade para o Brasil. Ele pode ser, ou nao, uma ou outra coisa, mas nao se pode negar que o mercado o ve como um ativo, por mais inconsistentes que possam ser suas recomendacoes... As vezes a versao é mais importante do que o fato...
Contariamente ao que se diz na materia, o FMI recomendou SIM a desvalorizacao cambial para o Brasil (e para a Argentina), apenas nao pretendeu ser impositivo demais com esses paises, que insistiram em praticar a estabilidade cambial. E a recomendacao nao foi feita apenas por economistas nao-neoliberais: posso apontar pelo menos meia duzia de economistas liberais, dentro e fora do Brasil, que criticaram a politica
cambial e recomendaram desvalorizacao.
Que um economista pouco conhecido por sua obra teorica (alguma para ser citada?) diga que FMI e OMC carecem de legitimidade, nao confere legitimidade a esse tipo de afirmacao: ele é tao valida como a afirmacao contraria, a menos que venha sustentada em argumentos solidos e provas empiricas. O FMI tem hoje 189 membros e a OMC 148, com mais entrantes a cada vez. Isso por acaso faz delas entidades pouco legitimas?
O economista Bello nao quer a prosperidade da classe capitalista? Talvez ele devesse indicar uma classe socialista como alternativa? Ou ele está pensando nos simples cidadaos das economias capitalistas? Isso os converte em anti-capitalistas?
Belas palavras: "a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente". Sim, e a partir daí? O economista Bello pretende que os paises asiaticos tenham passado a adotar um paradigma oposto e alternativo?
Qual seria ele?

Por fim, apontar as fragilidades das reservas brasileiras, como o faz Paulo Leme, aparece como algo duvidoso, a ser confirmado na pratica? Quanto a preservacao das políticas econômicas predominantes, trata-se de uma inferencia razoavel a ser feita, a menos que se aponte alternativa melhor, o que me parece nao foi feito na materia em questao.
O que me parece fragil é a simples classificacao como neoliberais de dois tecnocratas tipicos do Estado (Levy e Giambiagi) sem oferecer uma argumentacao mais consistente para contradizer suas afirmacoes, que se dirigem nao a rotulos, ou slogans, mas a situacoes concretas: fragilidade das contas publicas e do balanco de pagamentos.

Como afirmado ao inicio, o governo pode escapar aos constrangimentos de um acordo com o Fundo, simplesmente nao fazendo. Se escolher fazer, foi porque chegou a conclusao de que seria melhor, nao com base em apreciacoes subjetivas de duvidosa qualidade politica, mas com base em uma analise objetiva da situacao economica. Os governos em geral, diferentemente de economistas academicos, sao muito pouco, ou nada, ideologicos, e se guiam mais pelo senso pratico...

Quanto ao risco "etico-moral", ele se prende a uma situacao muito concreta: se o governo pagou x de juros, foi porque havia y de dividas, do contrario estaria sendo ingenuo ou inconsequente. Mas, se o autor da materia tem uma solucao melhor para a situacao da divida publica, esta sendo muito ingenuo em nao expo-la, para que possa ser debatida ou ate adotada pelo governo. O que fica parecendo inconsequencia é criticar sem propor uma solucao alternativa.
Estas sao as minhas observacoes objetivas sobre a materia em questao.
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Paulo Roberto de Almeida
pralmeida@mac.com palmeida@unb.br
www.pralmeida.org

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