sexta-feira, outubro 23, 2009

536) Deterioracao Fiscal no Brasil e controle de capitais

Ad usum Luli
Marcio Garcia
Valor Econômico, Sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Para a educação do futuro rei de França, filho de Luís XIV, o Delfim, foram elaboradas edições censuradas de clássicos latinos que escoimavam tais obras dos trechos julgados moral e socialmente inadequados. Tais edições censuradas foram denominadas ad usum Delphini (para uso do Delfim).
A contínua e acentuada deterioração da política econômica do governo Lula faz crer que o presidente esteja recebendo apenas relatos ad usum Luli, preparados por seus assessores, sem as críticas que aparecem cotidianamente na imprensa. Cabe, portanto, repeti-las, na esperança que possam chegar aos seus olhos e ouvidos.

O principal foco de deterioração é a política fiscal. Tendo deixado de lado, já em 2005, qualquer pretensão de realizar um programa de longo prazo de contenção do enorme crescimento do gasto público, a deterioração da postura fiscal ganhou grande impulso com a crise mundial recente. Com a desculpa de realizar política fiscal anticíclica, e com a cobertura provida pela comparação com os enormes déficits fiscais dos países desenvolvidos, levou-se à frente ambicioso programa de aumento de despesas de custeio que havia sido desenhado antes da eclosão da crise. Inicialmente, ainda se fazia menção ao caráter condicional dos aumentos dos gastos ao desempenho da arrecadação tributária. Com o passar do tempo, tal menção foi esquecida, e os aumentos persistiram a despeito dos seguidos malogros quanto à arrecadação fiscal, mesmo levando-se em conta os efeitos da crise e das isenções fiscais temporárias. Argúi o governo que política fiscal anticíclica é sinônimo de déficits mais elevados, esquecendo-se, convenientemente, do caráter temporário que necessariamente deve pautar tais políticas.

A retórica oficial contrapõe a política fiscal expansionista vigente à defesa de um suposto estado mínimo. A realidade, contudo, é que a combinação da atual postura fiscal, aliada à ausência de reformas, sobretudo quanto à previdência social, ameaça seriamente a sustentabilidade fiscal da economia brasileira em longo prazo. Em curto prazo, os impulsos fiscais obrigam o BC a manter os juros mais elevados para manter a inflação sob controle. Em ambos os casos, muito prejudicam o investimento produtivo, o emprego e o crescimento da economia brasileira.

Esta semana, os equívocos da política econômica alcançaram a política cambial. Sem coordenação aparente com o principal executor da política cambial, o BC, o Ministério da Fazenda decidiu criar um imposto (IOF) de 2%, sobre investimentos estrangeiros em renda fixa e em bolsa de valores. Justificou a medida como tentativa de evitar uma possível bolha na bolsa de valores, mas todos sabem que a intenção é mitigar a apreciação do real.

É muito razoável que as autoridades econômicas estejam preocupadas com a recente apreciação do real e seus impactos sobre a indústria. Entretanto, controles de entrada de capitais estrangeiros sobre renda fixa instituídos na década passada demonstraram ter efeito meramente efêmero sobre a taxa de câmbio, como indicam diversos trabalhos acadêmicos feitos tanto no Brasil como no exterior ao longo dos últimos 20 anos. O leitor interessado poderá encontrar alguns dos argumentos críticos expostos no trabalho que Bernardo Carvalho e eu escrevemos, intitulado Ineffective controls on capital inflows under sophisticated financial markets: Brazil in the nineties, disponível em www.econ.puc-rio.br/mgarcia.

A principal razão da ineficácia de tais controles em alterar persistentemente a trajetória da taxa de câmbio é que, como ocorre também no caso atual, os controles buscam apenas restringir parte das entradas de capitais, não todas. Assim, dada a fungibilidade do capital, é razoavelmente fácil disfarçar um tipo de entrada de capital passível de taxação como sendo uma entrada de capital isenta de taxação. Por exemplo, como a medida recente não atingiu os investimentos estrangeiros diretos (IED), e empréstimos entre a matriz de um banco estrangeiro e sua filial no Brasil constituem IED, alguns bancos já estão oferecendo aplicações em renda fixa no Brasil utilizando tal subterfúgio para suprimir o novo IOF. A experiência da década passada mostra que ocorreu um jogo de gato e rato entre o mercado financeiro e as autoridades econômicas na vã tentativa de restringir a entrada do capital especulativo estrangeiro, então destinado à renda fixa.

A situação atual é ainda mais difícil, uma vez que se quer não só restringir a entrada de capitais para a renda a fixa, como também para a bolsa de valores. Investimentos em bolsa são, geralmente, mais longos do que os de renda fixa. Ações têm preços voláteis; quem investe em bolsa sabe que pode ter de esperar muito tempo para poder ganhar. O IOF de 2% significa pouco para esse tipo de cálculo financeiro em prazo mais longo. Além disso, estratégias de elisão também já apareceram. Várias empresas brasileiras têm ações negociadas em Nova York, via American Depositary Receipts (ADRs). ADRs são pacotes de ações brasileiras negociadas na bolsa de Nova York (NYSE). Uma das estratégias de elisão proposta consiste em comprar ADRs na NYSE, sobre as quais o IOF não consegue incidir, e desempacotar as ações. Assim, obtêm-se as ações sem o pagamento do IOF. Naturalmente, apenas ações que tenham ADRs (as das maiores firmas) podem se beneficiar de tal subterfúgio.

Apesar de o IOF dever ser razoavelmente inócuo quanto ao efeito sobre os fluxos de entrada de capitais e sobre a taxa de câmbio, ele terá outros efeitos, quase todos negativos. Ao criar um imposto incidente somente sobre a bolsa brasileira, fará com que a liquidez das principais ações brasileiras migre para bolsas estrangeiras, prejudicando fortemente o projeto de criar, no Brasil, um centro financeiro de relevância mundial. Deverá elevar o custo de capital das empresas, sobretudo as menores, que não têm acesso aos ADRs. Também deverá elevar as taxas de juros mais longas, com impactos negativos sobre o custo da dívida pública e do financiamento das empresas. O maior custo de capital deverá afetar negativamente o investimento, fazendo o PIB potencial crescer menos, assim forçando, em médio prazo, o BC a manter juros mais altos para manter a inflação sob controle.

A melhor defesa possível do IOF está no argumento de que a postura monetária atual, extremamente expansionista, nos países desenvolvidos está empurrando capital especulativo para outros países, e o Brasil é um dos prediletos. Assim, o IOF tentaria minimizar tal distorção temporária, para evitar movimentos desestabilizadores de entrada e saída de capital. O risco é repetirmos o ocorrido nos anos 90, quando ocorreu uma escalada dos controles de capital, sem mexer nos fundamentos, sobretudo o fiscal. Ironicamente, naquele período, a escalada dos controles só terminou com a crise que redundou na flutuação do câmbio em 99 e, entre outras medidas, forçou o ajuste fiscal parcial que nos garante a saúde econômica atual. Será que mais uma vez não conseguiremos tomar as medidas corretas sem uma crise séria?

Márcio G. P. Garcia, PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras (http:// www.econ.puc-rio.br/mgarcia )

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