quinta-feira, janeiro 05, 2006

22) Diagnóstico de duas enfermidades precoces: autismo e esquizofrenia


Não, não estou falando de problemas médicos, para os quais reconheço minha monumental incompetência.
Quero referir-me ao comportamento dos anti-globalizadores, já objeto de um série inteira de posts no meu Blog principal (começar por aqui).
Vou concluir essa série por uma digressão sobre a natureza do mal que parece afligi-los. Não sei se a comparação com transtornos mentais é a mais apropriada, mas foi a única que me ocorreu ao tentar entender a formidável confusão mental que percorre esse movimento.

Ao percorrer os inúmeros escritos – caóticos, desiguais, geralmente carentes de método e ainda menos apoiados em estudos empíricos – dos anti-globalizadores, a sensação que se retira é a de uma estéril e inócua anarquia mental.
Aliás, uma única conclusão parece possível a partir da leitura (penosa) dos textos dos anti: o que os anima, na verdade, não é a criação de um “novo mundo”, ou a indicação de alternativas reais e credíveis aos problemas deste velho mundo em que vivemos, por certo desigual e iníquo, sob muitos aspectos, mas ainda assim infinitamente melhor do que aquele no qual viveram nossos avós e bisavós, e assim sucessivamente até tempos recuados, e bem mais sombrios, da história da humanidade.

O que os mobiliza, de fato, são duas tomadas de posição que cabe aqui considerar: um anti-capitalismo visceral e, o que é mais grave, sua derivação sociológica, um anti-mercadismo filosófico.

Não tenho nenhum tipo de mandato para colocar-me na defesa do capitalismo, um sistema que me parece dispensar defensores pagos ou voluntários, já que vem, ao longo dos séculos, resistindo razoavelmente bem aos assaltos continuados de uma horda de bárbaros anti-capitalistas, desde os mercantilistas adeptos das reservas de mercado, aos monopolistas das companhias reais de comércio, a socialistas utópicos e soi-disant “científicos”, a coletivistas fascistas e planejadores comunistas, a estatistas disfarçados e outros dispensadores do “bem-estar social”.
Pesa em seu favor o fato de não ter sido inventado por nenhum cérebro genial, à diferença de certas soluções “inovadoras” para minorar as misérias e sofrimentos humanos, emergindo de forma imperfeita e sempre incompleta de um processo impessoal, não administrado centralmente, não controlado e não controlável por nenhuma força social particular, mas resultando da combinação de milhares de ações e reações ao longo de uma cadeia de interações sociais que deita raízes em várias correntes constitutivas da civilização ocidental (pois é um fato histórico, não absoluto ou excludente, que o capitalismo emergiu primeiro nas formações sociais criadas a partir do substrato civilizatório comum do Ocidente medieval).

Tal como ele existe, o capitalismo é certamente imperfeito e desigual, concentrador e indiferente às especificidades humanas, mas é também o sistema mais dinâmico de criação de riqueza e de disseminação de progresso técnico que já existiu na face da Terra.
Não é eterno, certamente, mas vai evoluir gradualmente para formas diferentes – talvez não “superiores”, num sentido moral – de organização social da produção, sem que se possa predizer com alguma certeza como e em que condições ele vai continuar a moldar as sociedades modernas como o fez nos últimos cinco ou oito séculos.

É a esse sistema de remuneração pelo mérito, de prêmio pela astúcia individual, de retorno pela dedicação ao trabalho honesto, mas também de acumulação crua (e não raro violenta) de capitais, de genial inventividade e de brutal concentração de riquezas, que os anti-globalizadores pretendem substituir por algum sistema de organização social da produção e de distribuição de renda ainda indefinido, mas idealmente mais justo e menos desigual, feito de solidariedade e de respeito aos direitos humanos, assim como ao meio ambiente e à diversidade natural dos povos.
Nada mais singelo e mais irrealista, pois que eles não conseguem sequer entender a lógica de funcionamento do capitalismo, quanto mais fazê-lo ser deslocado por um outro sistema inerentemente mais justo e mais eficiente (por fiatnatural?).

A principal dificuldade para esse tipo de empreendimento benemérito – e aqui passo à segunda característica dos anti-globalizadores – é que no meio do caminho tinha um mercado.
Ainda que eles não queiram ou não possam admitir tal realidade, o fato é que o mercado é muito maior do que o capitalismo, pois que perpassa todas as sociedades, em todas as épocas e lugares.
Não há sociedade sem mercados, salvo talvez em povos muito primitivos, mas estes também conhecem formas de divisão social (e sexual) do trabalho, que já são, pelo simples fato de existirem, um embrião dos mercados potenciais.
A economia de mercado sobreviverá ao capitalismo, quando este já não mais fizer parte do estoque de modos de produção á disposição dos “engenheiros sociais”, pela simples razão que ela funciona como uma espécie de sistema circulatório, sustentando o conjunto de funções numa sociedade complexa.

Que o mercado seja contraditório, incerto, caótico e inerentemente injusto, como parecia interpretar um espírito idealista como Marx, não implica em que possamos nos desvencilhar dele facilmente (ou impunemente). Todas as tentativas realizadas até aqui, a mais notória durante setenta anos, entre as planícies européias e as estepes asiáticas, redundaram em notórios fracassos, quando não em tragédias humanas incomensuráveis.
A recusa filosófica, digamos idealista, do principio do mercado pela maior parte dos anti-globalizadores, sempre prontos a acusar a “mercantilização da vida” em qualquer relação envolvendo intercâmbio de renda ou ativos patrimoniais, é algo preocupante e, eu diria, sintomático de uma doença bem mais grave, que em psiquiatria recebe o nome de “esquizofrenia”.

A esquizofrenia, segundo os dicionários médicos, é uma psicose caracterizada pela desagregação da personalidade e por uma perda de contato vital com a realidade. Antigamente conhecida por “demência precoce”, ela afeta mais particularmente os adolescentes ou adultos até os 40 anos.
Segundo o psiquiatra suíço que a estudou, Eugen Bleuler (1857-1939), essa doença apresenta-se como uma dissociação mental, ou “discordância”, acompanhada por uma invasão caótica do imaginário, podendo se traduzir por distúrbios afetivos, intelectuais e psico-motores, sentimentos contraditórios em relação ao mesmo objeto (amor e ódio, por exemplo), ou então por incapacidade de agir, por autismo, delírio e até recusa de falar. O autismo, por sua vez, é uma ruptura entre a atividade mental e o mundo exterior e uma introversão mais ou menos total no mundo do imaginário e dos fantasmas (Larousse Médical, 1995).

Eu estaria sendo muito cruel e exagerado se acusasse os anti-globalizadores dessas duas enfermidades: esquizofrenia e autismo? Os sintomas e as reações, em todo caso, são muito parecidos.
Como os esquizofrênicos, eles recusam ver o mundo como ele é, preferindo descrevê-lo em tintas sombrias e catastróficas, cujos componentes têm um único problema: o de não corresponderem à realidade dos fatos. Como os autistas, eles se reúnem entre eles e recusam dialogar com o exterior, ou com quem não aceitar sua Carta de “Princípios”, tão confusa formalmente quanto desconexa substantivamente.

Acredito, pessoalmente, que – à parte um “núcleo duro” de anti-capitalistas profissionais, isto é, aqueles sobreviventes do grande desastre do movimento comunista do século XX e que ainda continuam a se perpetuar como uma seita religiosa, através de velhos ritos litúrgicos que só desaparecerão com o passamento do último representante da espécie – a maior parte dos integrantes do movimento anti-globalizador é composta de jovens idealistas que desejam sinceramente a correção da piores desigualdades que ainda dividem a humanidade em um punhado de países ricos e uma imensa periferia de pobres e miseráveis.
Eles são devotados à causa e acreditam, por indução daqueles profissionais acima referidos ou por leituras apressadas ou enviesadas, que o velho capitalismo, o neoliberalismo (que muitos confundem com o chamado “Consenso de Washington”) e o sistema de mercado são efetivamente responsáveis pelas misérias do mundo, tal como o vemos de nossas janelas, nas ruas do Terceiro Mundo ou que aprendemos a conhecer em informações disseminadas pela internet. Esse mundo real é realmente inaceitável e algo deve ser feito para paliar suas carências mais gritantes e suas iniqüidades mais brutais.

Apenas considero que essas misérias, injustiças e iniqüidades não se devem, em absoluto, à globalização: elas preexistem, inclusive, ao capitalismo e podem talvez continuar a existir se, por acaso, em uma bela manhã de sol, o mundo decidisse deixar de ser “capitalista” para ser qualquer outra coisa, proposta ou não pelos anti-globalizadores.
Os anti se enganam singularmente de inimigo, provavelmente por falta de leituras honestas, de um estudo mais atento da realidade histórica, de um conhecimento mínimo sobre como funcionam os sistemas econômicos e, também, porque se deixam levar por um discurso simplista e simplificador, por parte daqueles já mencionados acima.


Não tenho nenhuma restrição mental em acusar os “defensores do culto”, tanto porque eu também já fui um deles, embora de uma vertente não religiosa, muito dada a leituras de todo tipo, onde Marx era combinado a Raymond Aron, Engels a Fernand Braudel e Lênin a Tocqueville. Derivei minha reavaliação dos capitalismos realmente existentes por meio de um conhecimento não apenas teórico, mas sobretudo prático de todos os socialismos realmente existentes (e suas pequenas e grandes tragédias sociais).
Aprendi, em especial, a reconsiderar minha análise do sistema de mercado – tal como absorvida precocemente n’O Capital, de Marx – pelo estudo das tribos mais primitivas do planeta, numa antropologia comparada das sociedades que em muito contribuiu para relativizar as críticas mais candentes que os modernos socialistas faziam às iniqüidades percebidas e reais desse sistema na moderna economia capitalista.

Quero crer, com base nesses estudos e na reavaliação pessoal conduzida ao longo dos anos, que os assim chamados “marxistas” contemporâneos – e que ainda continuam a perpetuar ritos e instrumentos de um culto tão ultrapassado quanto inócuo, do ponto de vista da moderna sociedade globalizada – não merecem na verdade esse epíteto, e sim o de reacionários, pois querem fazer girar para trás a roda da história, segundo a fórmula consagrada de Marx.
Aliás, eu me considero marxista e nem por isso deixo de ser “globalizador”, como aliás Marx o seria, se por acaso vivesse atualmente. Por isso acredito, com base em todas as considerações que efetuei neste ensaio, que não só os marxistas, mas também os socialistas de todas as espécies, os humanistas, os ecologistas, as pessoas de esquerda e os progressistas em geral deveriam adotar, sincera e devotamente, uma postura em favor da globalização – atualmente inseparável, mas não para sempre, do capitalismo –, da qual um balanço honesto saberia nela reconhecer o único sistema progressista realmente existente.

Por progressista eu entendo, está claro, um sistema capaz de incorporar, progressivamente, contingentes sempre crescentes de pessoas em patamares mais elevados de produtividade, de renda e de bem estar social, não um sistema que atenda a todas as necessidades culturais, educacionais ou de justiça social de todas as sociedades por ele tocadas.
Isto a globalização é capaz de fazer, mas ela não poderá, obviamente, dispensar o igualitarismo social com que sonham alguns de seus arautos ou de que a acusam vários, ou maior parte, de seus críticos.

Quero crer, também, que a maior parte dos participantes do movimento anti-globalizador seja composta de indivíduos idealistas, que se esforçam sinceramente por encontrar respostas aos problemas do mundo atual, por definir, como proclamado no seu 4º princípio, as chamadas propostas alternativas para uma “nova etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada em sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos povos.”

Concordo basicamente com esse objetivo geral, idealista, contentando-me talvez, tão simplesmente, em retirar o adjetivo “solidária” do conceito de globalização, não por discordar da intenção, mas por considerá-la inócua e absolutamente irrelevante do ponto de vista do processo histórico. A globalização seguirá sua marcha impessoal, indiferente às vontades e intenções daqueles que pretenderiam atribuir-lhe qualquer caracterização particular ou específica.

Atores sociais e líderes políticos intentarão, obviamente, moldar o processo de globalização, tentando adaptá-lo às suas necessidades nacionais, às suas concepções filosóficas ou a seus projetos políticos. Todas essas ações poderão, ou não, desviar, ainda que de forma moderada, o traçado impessoal e aparentemente indomável do processo de globalização, mas não conseguirão determinar seu curso básico, que é o da unificação progressiva do planeta numa sociedade singular, não totalmente integrada ou dotada de padrões uniformes (como pretendem os defensores do nacionalismo cultural), mas tampouco fechada em arquipélagos nacionais como ocorreu até os nossos dias.
As ameaças de eliminação das diferenças culturais entre os povos, devido à importação de bens e serviços de “cultura de massas” do atual centro imperial, são carentes de maior substância efetiva e não deveriam ser consideradas por todos aqueles que trabalham com a identidade nacional desses povos, como a própria experiência brasileira já o demonstrou amplamente.

Uma leitura realista das possibilidades e limites da globalização nos permitiria visualizar, sem paixões ou esperanças irrazoáveis, o potencial de realizações que esse processo contraditório e indomável contém no sentido de uma transformação positiva, e progressista, da maior parte das formações sociais integradas, de uma ou outra forma, ao grande caudal da economia mundial.
Sempre haverá aqueles que preferirão combater moinhos de vento, em lugar de se lançar, modesta e pragmaticamente, nas pequenas e grandes tarefas vinculadas necessariamente ao processo de globalização: a educação das massas, a qualificação técnica e profissional dos trabalhadores, a melhoria contínua dos padrões culturais e científicos da população, de maneira a prepará-la para usufruir plenamente dos benefícios desse processo irreversível, bem como para fazê-la participar com seus próprios instrumentos dessa grande dinâmica multiforme.

Os anti-globalizadores da atualidade me parecem ter adotado, por enquanto, a atitude do avestruz, o que é próprio daqueles que se sentem fragilizados frente a uma realidade que não dominam e que parece dominá-los por sua vez. As manifestações ruidosas que conduzem nos locais e eventos típicos da atual globalização constituem um típico combate de retaguarda, e suas teses estão condenadas a se esvair na vacuidade das idéias mal pensadas, mal conduzidas e mal direcionadas.
É de toda forma reconfortante saber, de acordo com Marx, que a humanidade nunca deixa de oferecer soluções aos problemas que ela mesma se coloca. Daí a razão de meu otimismo.

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org);
Brasília, 1297: 5 de julho de 2004.

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