sexta-feira, janeiro 13, 2006

31) O Império americano: a favor ou contra?


Não, não vamos falar propriamente do Império americano, mas de um livro recente sobre esse personagem singular da história mundial.
Trata-se de:
Formação do império americano: Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque, de Luiz Alberto Moniz Bandeira (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005, 851 pgs. R$88,90).

Primeiro, a favor:

Nesta primeira resenha, seu autor, Leonardo Valente, é simpático às teses de Moniz Bandeira: "Nas Entranhas da Grande Potência: Obra revela os mecanismos da hegemonia dos Estados Unidos" (publicado originalmente em: O Globo, caderno "Prosa & Verso" (24.12.05, p. 6).

"O império nu. A radiografia feita pelo professor Luiz Alberto Moniz Bandeira em “Formação do império americano — da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque” mostra mais do que a força, o passado e o desenvolvimento dos Estados Unidos: revela as engrenagens e os mecanismos, muitos deles pouco conhecidos, que fazem daquele país a maior superpotência da História. Mas não pense que se trata de uma obra pró-americana. Pelo contrário. Sua visão de futuro nada otimista aponta para uma nação em decadência, contraditória e que não consegue administrar de forma inteligente seu próprio poder."

Continuar a leitura neste link.

Em entrevista, "Raio X de Tio Sam", concedida ao jornalista Cláudio Camargo e publicada em IstoÉ (14.12.05), Moniz Bandeira diz que 100 anos depois do nascimento, o império americano começa seu declínio.

Leia a entrevista neste link.


Agora, contra:
(PS.: O endereço eletrônico desta matéria não é diretamente disponível, razão pela qual disponibilizo o arquivo eletrônico, tal como recebido pela internet. Mas ela pode ser acessada no site da revista Primeira Leitura, neste link.)

A FORMIGA QUE MARCHAVA CONTRA O IMPÉRIO: UMA FÁBULA HEGELIANA
Primeira Leitura, dezembro de 2005
Por Roberto Romano

Luiz Alberto Moniz Bandeira impôs-se uma tarefa gigantesca. Explicar, como rezam título e subtítulo de seu livro, a Formação do Império Americano – Da Guerra Contra a Espanha à Guerra no Iraque, nada menos de 850 páginas publicadas pela editora Civilização Brasileira (R$ 88,90). Primeira Leitura convidou o filósofo Roberto Romano, professor titular de ética e filosofia da Universidade de Campinas (Unicamp), a ler tão alentado trabalho para ver o que nele pode haver de tão extraordinário e elucidativo. Porque, é claro, deve haver, não é? Nada menos de quatro obras do autor integram a lista de leituras obrigatórias dos candidatos a cursar o Instituto Rio Branco.
Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral das Relações Exteriores, segundo homem do Itamaraty, é fã declarado de sua obra. Foi ele que incluiu, na “Escolinha do Professor Samuel”, como já se diz nos corredores do Ministério das Relações Exteriores, o consumo intelectual forçado de Bandeira. Também os diplomatas são compelidos a ler Da Tríplice Aliança ao Mercosul (1870-2003); Brasil, Argentina e Estados Unidos; Estado Nacional e Política Internacional na América Latina (1930-1992) e Relações Brasil-Estados Unidos no Contexto da Globalização.
Romano, definitivamente, não gostou do que leu. E por motivos que, bem, o leitor há de julgar. O que parece é que os descaminhos e reiterados desacertos da política externa brasileira vão muito além do erro e revelam, com efeito, um método, de que o antiamericanismo é a face mais primitiva e vulgar. As, se me permitem, barbaridades da obra de Moniz Bandeira vão um pouco além da ques tão de gosto. Incomoda pouco que ele escreva o que lhe dá na telha — expõe-se à crítica, como qualquer um de nós —, mas parece inaceitável que se torne um norte da diplomacia brasileira. Fiquem com o texto do sempre percuciente e profundo Roberto Romano.


Francis Bacon distinguia entre formas lucíferas e frutíferas de pesquisa. As primeiras, por atingir paragens elevadas do intelecto, levam à ciência. As segundas perdem importância na hora do consumo. Paolo Rossi (1) recorda as imagens usadas pelo suposto empirista para descrever os vários tipos de intelecto. Em primeiro, acadêmicos-formigas : recortam dados indefinidamente sem processá-los no pensamento. Depois, chegam os acadêmicos-aranhas, que tecem silogismos sem base efetiva no mundo. Como descartaram os dados, eles vivem suspensos em sistemas filosóficos. Finalmente, com base em Platão e poetas como Horácio, vem o pesquisador-abelha, que recolhe o néctar das flores (os dados), elabora-o e entrega um belo e ali mentício produto: o mel.
Os “sábios” europeus e seus herdeiros desprezam a filosofia anglo-saxã. Esquecem a lição de Kant, cuja honestidade proclama que, sem Hume, o sono dogmático dominaria a sua mente. Não por acaso, Bacon é citado na Critica da Razão Pura: “calamos sobre nós mesmos, falamos sobre as coisas”. Hegel é um charlatão a mais a espalhar preconceito contra a cultura inglesa. O mesmo Hegel, no seu doutoramento, errou uma citação essencial de Newton (2), mas disse sem pudor algum : “Newton é pensador tão bárbaro no plano conceitual que, à semelhança de outro inglês, se espantou ao descobrir que falava em prosa. Quando imaginava manipular coisas físicas, Newton não tinha consciência de usar conceitos”. (3)
Luiz Alberto Moniz Bandeira se proclama hegeliano. Dados os elementos acima, acredito. Ele afirma ser preciso “penetrar no âmago dos acontecimentos, conhecer a ca usa e a essência dos fenômenos, o que é real e racional por trás da aparência”. O jargão escolástico foi dado. Vejamos as conseqüências. Bandeira segue a lógica do mestre, aplicando-a sem cautelas ao mundo histórico. Aliás, trata-se de um estranho hegelianismo que amontoa fatos empíricos e teses a priori, sem que os dois elementos se unam. Em muitas páginas, o autor mimetiza a formiga baconiana e acumula dados, mas não os pensa. Ao mesmo tempo, insiste em esquemas paranóides que anunciam uma indemonstrada “ditadura mundial do capital financeiro”. E a salada empirico-transcendental vem recheada de “denúncias” que, sem exagero, atribuem ao governo norte-americano plena cumplicidade com o ataque de 11 de Setembro. Essas histórias fantásticas recordam invenções como Os Protocolos dos Sábios do Sião. Mas vamos por partes.
O livro começa errando e termina do mesmo jeito. Nele se fala em “fundamentalismo” dos founding fathers americanos. Ignorância pura. Se tivesse lido uma linha dos ditos senhores, Bandeira saberia que eles estudavam teologia em bases tão rigorosas quanto as obedecidas pelos teóricos europeus. A filosofia, a teologia, a retórica, a lógica de Petrus Ramus, a panóplia conceitual sofisticada movida por eles, tudo somado a um saber científico e literário de fazer inveja à Sorbonne, mostram que, de “fundamentalistas”, eles nada possuem. (4) Caso oposto, inexistiriam as universidades norte-americanas produtoras de amplos saberes científicos, técnicos, humanísticos. Mas não se espera sutileza teológica de alguém que escreve ser Jesus apologista do “não pagamento de tributo ao César”. Erro feio demais para ser apenas erro. (5) O autor, para fundamentar sua “tese” sobre o terror (6), apela com singeleza a certo Cristo inscrito na guerrilha e... no terror “libertário”. Assim fala o hegeliano: se os dados históricos e textuais negam a lógica assumida, danem-se eles.
Bandeir a assume o mais vulgar antiamericanismo e cita oráculo franceses que descrevem os EUA como “esse povo do qual todas as forças vivas são dirigidas pelo excesso no crescimento indefinido dos bens materiais” (Joseph Patouillet, 1904). Se é para catar preconceitos, por que não descer à base do etnocentrismo europeu defendido por De Pauw ? Este, nas Pesquisas sobre os Americanos (7), afirma serem podres o povo e a terra daquele continente. Mas a lógica hegeliana é conhecida por seus truques. Bandeira, bom hegeliano, transforma “a parte” num todo. Ele cita Raymond Aron, para quem os norte-americanos possuem “uma parte da responsabilidade no desencadeamento da guerra dupla no Atlântico e no Pacífico”. Daí, o autor passa ao “notável” Gore Vidal (retórica das seitas: os “nossos” são notáveis, os “outros” recebem adjetivos impublicáveis) : “Hoje, ninguém nega com seriedade que Roosevelt queria a guerra dos EUA contra Hitler”. Para mim, se Hitler declarasse guerra ao inferno, eu também me aliaria ao diabo. Mas para Bandeira, não. A beligerância contra Hitler é crime. Ele cita Hitler com indulgência, num discurso contra “a ilimitada ditadura mundial norte-americana” (8). Encontra-se aí uma perigosa coincidência entre a tese central do livro em pauta e o discurso totalitário: os EUA querem impor uma ditadura sem limites ao mundo.
Hitler é citado pelo autor como personagem neutro. Semelhante técnica de citação chega a ser escandalosa. Veja-se a seguinte sequência: “Hitler considerou um ‘trágico encadeamento’(eine tragische Verkettung), um ´infeliz acaso histórico´(ein unglücklicher geschichtlicher Zufal) o fato de que sua ascensão ao poder na Alemanha ocorreu quando ´o candidato do mundo judaico´(der Kandidat des Weltjudentums), Roosevelt, assumiu o governo da Casa Branca”. No juí zo do hegeliano, só está errado nesta série de frases o fato de que “Hitler se precipitou”, nada mais. Ao expor a fabricação de armas, Hitler é novamente citado num discurso como alguém que só denuncia os instrumentos letais nas mãos norte-americanas. Em passagem rápidas a “política” nazista é referida com as suas “enormes atrocidades”. Mas logo o autor tira a lição silogística: se Hitler dizimou o povo russo, este, “logicamente”, apoiou Stálin e a sua tirania.
Num texto que defende a tese de uma ditadura mundial maquinada pelos EUA e onde o leitor é forçado a topar com certo Hitler estadista sóbrio, é no mínimo bizarro que o autor cale quase tudo o que se relaciona com o tema jurídico da ditadura, os debates sobre o artigo 48 da Constituição de Weimar (9). O dilema do autor com tal silêncio é claro: se os EUA têm uma Constituição democrática, neles haveria a legalidade da qual se beneficiou Hitler. Se os EUA seguem para uma ditadura nos moldes do artigo 48 (existem p essoas que pensam desse modo), então aprenderam com a Alemanha. E seria preciso, para denunciar o imperialismo ianque, descer ao parentesco com a “civilizada” Alemanha.
Quando se fala em “império” e “ditadura mundial”, tais asserções entram na polissemia lingüística, elas não brotam de “fatos” a exemplo de Minerva da cabeça jupiteriana. É preciso interpretar documentos e dados com ótica plural. Em pontos delicados assim, o preceito da justiça é imperativo: quem julga tem o dever de ouvir a outra parte. Não se encontra um norte-americano defensor de sua terra e gente nas 800 páginas do calhamaço. Fico no caso mais notório, pois se trata de um filósofo especialista em estratégia militar. Trata-se de Victor Davis Hanson (10). Além dos que dizem cobras e lagartos dos EUA, ralas são as referências aos seus defensores idôneos. Todo país possui valores negativos e positivos. Mas o autor afirma trabalhar sine ira et studio e que não f az reflexão ética, expõe apenas uma cadeia de fatos. É preciso dizer que, entre os fatos a serem levados em conta pela razão científica, em se tratando de política e não de matemática ou física (e mesmo aí Hegel errou…), a boa lógica exige o exame dos arrazoados trazidos pelos que defendem o campo “inimigo”.
Outros equívocos, agora de leitura filosófica, surgem ao longo do livro. Todo estudante de primeiro ano conhece a passagem da Fenomenologia do Espirito sobre “o Reino animal do Espírito”. Baseando-se numa leitura não provável de Marx, Bandeira reduz o significado daquele trecho, jogando-o totalmente sobre a sociedade de mercado e para a concorrência. Hegel era tosco, mas nem tanto. A seqüência inteira é dirigida aos intelectuais, parte essencial das Luzes. Para quem analisa a ditadura mundial estadunidense, talvez o erro seja pequeno. Mas para um hegeliano…
Em suma: em tedioso agenciamento de números, documentos e discursos, como diligente intelectual-formiga, o autor exibe sua riqueza, a qual contrasta com a miséria de uma ideologia raivosa, que não hesita em repetir slogans anti-semitas ao discorrer sobre o Partido Democrático, além de outras repetições de enunciados totalitários cujo lugar deveria ser debaixo do rio chamado Esquecimento. Bandeira se proclama hegeliano. E nele acredito. Ele também diz só levar em conta “os fatos, como cientista”, abandonando todo esforço axiológico. Assim, os “fatos” terroristas são coletados como se fossem apenas fatos. Mas eles expressam juízos de valor e definem uma prática covarde de intimidação, ao jogar sociedades inteiras na morte aninhada nos ventres fanáticos.
Sim, Bandeira é hegeliano e diz levar em conta os fatos. “Mas quem aprendeu antes a curvar as costas e inclinar a cabeça diante da ‘potência da história’, acaba acenando mecanicamente, à chinesa, seu ‘sim’ a toda potência, seja esta um governo ou uma opinião pública ou maioria numérica, e movimenta seus membros no ritmo preciso com o qual alguma ‘potência’ puxa os fios. Se todo sucedido contém em si uma necessidade ‘racional’, se todo acontecimento é o triunfo do lógico ou da ‘Idéia’ — então, depressa, todos de joelhos e percorrei ajoelhados toda a escada dos ‘sucedidos’! Como não haveria mais mitologias reinantes? Como as religiões estariam à morte? Vede apenas o religião da potência histórica, prestai atenção aos padres da mitologia das Idéias e em seus joelhos esfolados” (Considerações Extemporâneas).
Nietzsche falava, nestas frases, dos hegelianos. Enquanto eles, agora, apresentam a imagem mais horrenda dos EUA, “inclinam a cabeça à chinesa”, literalmente. Na cena mundial, depois do nazismo e da URSS, sobraram os EUA, a UE e a China. Não aposto um centavo para saber em qual país Bandeira enxerga razões para solapar o Estado norte-americano. Não gosto de inclinar a espinha diante da História, mesmo ainda contada no padrão idealista.
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1) "Ants, Spiders and Epistemologists", in Francis Bacon, Seminario Internazionale, ed. Marta Fattori, Roma, 1984
2) “Quando Hegel cita a definição quinta dos Principia de Newton como uma definição da força centrífuga, seu erro tem graves conseqüências, pois invalida quase toda a crítica de Newton feita por ele; o mais incômodo é que ninguém notou o erro no ato, e Hegel repetiu publicamente o mesmo erro (por exemplo na Enclicopédia das Ciências Filosóficas, § 266) até o fim da vida”. De Gandt, F: “Introdução” à edição da tese De orbitis planetarum (Paris, Vrin, 1979), p. 47.
3) Leitor ami go: se deseja rir mais, abra as Lições sobre a História da Filosofia no item “Newton”. Cito na edição seguinte: Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp, 1975), III, p. 231. Hegel inicia o método Chaui de leitura científica.
4) Da imensa bibliografia, cito apenas Miller, Perry: The Americans Puritans, their prose and poetry. (NY, Doubleday, 1956) e The New England Mind. The Seventennth Century (Boston, Beacon, 1968).
5) Pergunta : Licet censum dare Caesari, an non?. Resposta: Reddite ergo quae sunt Caesaris, Caesari: et quae sunt Dei, Deo. (Mateus, 22, 17-21).
6 ) A benção ao terror repete-se, como cantilena, em muitas passagens : “…quando as grandes potências desprezam a força do Direito e impõem o direito da força, os povos mais fracos, oprimidos, são levados a recorrer ao terrorismo, como ferramenta de luta, no processo de insurgência”, “no curso da história, o terrorismo serviu como a arma dos mais fracos, com o objetivo de quebrar o monopólio da violência exercida pelo Estado e, no mais das vezes, identificou-se com a insurgência, o método da guerrilha”, e outras jóias de mesmo quilate.
7) C. De Pauw, Recherches philosophiques sur les Américains, 1774. O texto pode ser lido na edição eletrônica Gallica da Biblioteca Nacional da França.
8) O termo germânico é preciso: “…unbegrenzte Weltherrschaftsdiktatur”. Discurso de Hitler em 11/12/1941.
9) “Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich deve tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153.”
10) Cf. Carnage and Culture (Anchor/Vintage, 2002), tradução com o título de Porque o Ocidente Venceu. Massacre e cultura- da Grécia antiga ao Vietnã (RJ, Ediouro, 2001). O autor publicou muitos outros livros e artigos sobre a Grécia antiga e a Guerra, incluindo a questão da democracia. Dentre os mais importantes, listo os seguintes : Warfare and Agriculture in Classical Greece (Ed. University of California Press, 1998); The Western Way of War (University of California Press, 2000); Hoplites: The Ancient Greek Battle Experience (Routledge, 1992); The Other Greeks: The Family Farm and the Agrarian Roots of Western Civilization (Ed. University of California Press, 2000); Fields without Dreams: Defending the Agrarian Idea (Ed. Touchstone, 1997); The Land Was Everything: Letters from an American Farmer (Free Press, 2000); The Wars of the Ancient Greeks (Cassell, 2001); The Soul of Battle ( Anchor/ Vintage, 2000); An Autumn of War (Anchor/Vintage, 2002); and Mexifornia: A State of Becoming (Encounter, 2003).

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