segunda-feira, janeiro 09, 2006

29) Falando do Chile, mas era para falar da Bolivia...


Transcrevo artigo do jornalista Carlos Alberto Sardenberg, que não precisa de apresentações, sobre um tema recorrente na América Latina: como usar (bem) o dinheiro do Estado para fazer bondades para a população e ao mesmo tempo estimular o crescimento...

Por que não enxergam o Chile?
Carlos Alberto Sardenberg*
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 9 de Janeiro de 2006

Claro que há variações de política econômica, mas não se escapa da alternativa: abrir espaço para o mercado ou ampliar a intervenção do Estado. O equívoco histórico da esquerda está na tese de que só pode haver crescimento justo com estatização. Está ocorrendo de novo por aqui, na América Latina.
Tome-se o presidente eleito da Bolívia, Evo Morales. Tem apenas uma proposta econômica: estatizar completamente o gás e o petróleo. Parece que tudo se resolve automaticamente a partir daí. Produção e distribuição estatais geram riqueza para o Estado, que a distribuirá ao povo.

Logo, é só expropriar isso tudo – reservas, plataformas, refinarias, poços, gasodutos e oleodutos – e o governo tem nas mãos um instrumento poderoso.

Mas, e daí? Como transferir para o povo a renda das riquezas naturais? Ok, tem os programas de Bolsa-Família, mas isso não gera o crescimento econômico para tirar um país inteiro da pobreza. Nessa rota a Bolívia ficará parecida com uma Venezuela mais pobre, já que o petróleo dá muito mais dinheiro que o gás, principal reserva boliviana, sem contar que a estrutura de produção venezuelana foi mais desenvolvida. Hugo Chávez promove inúmeros programas governamentais de distribuição de renda e, mesmo sem olhar de perto, se pode apostar que, primeiro, grassa a corrupção e, segundo, a clientela se torna instrumento político.

Não é preconceito. No mundo todo, uma burocracia com poder e dinheiro tende inexoravelmente à roubalheira e à politicalha.

Assim, na partida Morales poderá lançar alguns programas sociais sem a garantia de que vão funcionar, como se viu no Brasil com o Fome Zero. Mesmo que funcionem, o fôlego será curto.

De novo, isso não põe um país numa rota de crescimento sustentado. Será necessário mobilizar montanhas de capital para desenvolver a produção e a venda de gás, além de toda a infra-estrutura nacional – e o governo não tem capital além desse que vai expropriar. Em circunstâncias normais, o governo poderia contratar companhias internacionais, incluída a Petrobrás, que seriam remuneradas com a renda da produção futura.

Mas que companhias vão acreditar que os contratos serão mantidos? Dado o tamanho reduzido do mercado boliviano, será preciso exportar gás para aumentar a lucratividade. Mas como embarcar nisso quando está no governo um líder que derrubou um presidente porque havia assinado contrato de venda de gás para o Chile e para os EUA?

Evo Morales contará, por certo, com o dinheiro de Hugo Chávez e, talvez, com recursos brasileiros. Chávez manda sem contestações e põe onde quer o dinheiro do petróleo. Mas Lula, especialmente em ano eleitoral, precisará criar condições políticas aqui para mandar a Petrobrás e o BNDES fazerem negócios de rentabilidade duvidosa na Bolívia.

Mesmo que dê tudo certo para Morales, está na cara que há uma óbvia limitação: os governos venezuelano e brasileiro não estão propriamente nadando em dinheiro, nem seus países já estão prontinhos de modo a dispensar investimentos locais. Ou seja, Morales não disporá do capital necessário para gerar crescimento e, assim, terá quase nada para distribuir.

Tudo culpa dos EUA, é claro, conforme outra tese clássica da esquerda. Em geral, é só discurso, mas Morales terá de tomar decisões práticas. Hoje, a Bolívia tem duas vantagens: recebe ajuda especial dos EUA, coisa de US$ 200 milhões ao ano, e tem preferência de entrada no mercado americano para diversos produtos.

Os dois acordos precisam ser renegociados neste ano e dependem da manutenção do combate à produção de coca, o que Morales, líder cocalero, não pode topar. Assim, vai trocar a ajuda americana pela de Chávez, o mercado americano pelo sul-americano. É trocar o maior pelo menor, o que só faz sentido na ideologia.

Resumo da ópera: um governo incapaz de estimular o crescimento, capaz de paralisar investimentos e instalar uma administração sem rumo. E, quando fracassar, culpa dos EUA.

Agora, como é que essas teses sobrevivem? Basta olhar por aí. Há inúmeros exemplos de países que estatizaram suas riquezas naturais e continuam tão pobres quanto antes. Ricas, só as elites locais, os ditadores, os reis, os príncipes e os seus amigos. Contam-se nos dedos de uma mão os países que estão conseguindo aproveitar a riqueza do petróleo para diversificar e desenvolver suas economias – e todos com abertura ao mercado.

Por que a esquerda latino-americana não consegue prestar atenção nos colegas chilenos? Sim, colegas, porque a esquerda chilena está no poder há quatro mandatos presidenciais e perto de emplacar o quinto.

E atenção: a principal riqueza natural chilena, o cobre, que dá menos dinheiro que o petróleo e o gás, continua sob controle estatal, inclusive por razões políticas. Mas todo o sistema econômico é construído na base do mercado, dos capitais privados, da abertura no comércio externo, incluindo acordos de livre comércio com os EUA, a União Européia e países asiáticos. Até por isso consegue bons contratos para exploração e venda do seu cobre. E cresce de modo sustentado há muitos anos, com ganhos de renda para todos.

Está logo ali, gente.

Bem faz a Polícia Federal brasileira em redobrar cuidados na fronteira com a Bolívia. Está na cara que vai aumentar a produção de coca e, pois, o tráfico de cocaína. Ou alguém acredita que o governo Morales conseguirá estimular a produção de coca para o chá e, ao mesmo tempo, reprimir a coca do narcotráfico? O chanceler Celso Amorim diz que acredita e que vai tentar convencer o governo americano de que é possível essa abordagem de esquerda para o problema do tráfico.

É acreditar que não exista globalização. Gente, o chá de coca é barato, só vende na Bolívia, e muito na Bolívia pobre. A cocaína é produto global, tem mercado rico pelo mundo afora. Só tem um modo de impedir que o cocaleiro venda seu produto para o narcotráfico: pagando mais. Outra conta para Hugo Chávez, não é mesmo? Morales pode, sim, acabar com a exportação legal de têxteis para os EUA, mas não com a exportação ilegal de cocaína, incluindo para o Brasil.

Vão desmoralizar a esquerda outra vez.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Home page.

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