Desenvolvimento: A importância da mão do Estado para a produção do saber que interessa
Conhecimento não cai do céu
Por Cyro Andrade, de São Paulo
Valor Econômico, 02/07/2009
Alice H. Amsden:
A Ascensão do 'Resto'
São Paulo: Unesp, 2009, 586 págs.
Que o mundo está em transformação, não há como duvidar. Nem sempre a mudança se dá pelo lado dos acréscimos de natureza social, nem de forma homogênea, para cima ou para baixo, em matéria puramente econômica, nesses mares tempestuosos da globalização financeirizada que desembocou nesta crise. Talvez tivesse que ser assim. Talvez a própria crise, com sua cara e conteúdo tão demonizados, possa ser interpretada como a matriz em que se foi nutrindo o ponto de inflexão que agora dá origem a um novo ciclo de mudança, de inevitável alcance transnacional, como aconteceu de outras vezes sob formas e razões diferentes.
Aprende-se com as crises. Nem precisaria algum chinês ter filosofado longamente para se chegar a essa conclusão. É óbvio. E esta crise, que revela com todas as cores e de vários ângulos como é falaciosa a ideia de que aos mercados sobram competência e vontade para se resolverem por si mesmos em suas perdas de funcionalidade, ensina que é oportuno repensar, com foco em distâncias maiores de reflexão, o papel do Estado nas sociedades contemporâneas - especialmente naquelas em que esteja amadurecendo a percepção de que, no longo prazo, de fato estaremos todos mortos, mas outros muitos estarão vivos e lendo a história para ver de onde vieram seus problemas ou melhores condições de vida.
Cabe muito bem, então, a leitura deste livro de Alice H. Amsden, professora de economia política no departamento de urbanismo e planejamento do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, mundialmente conhecida como pesquisadora e analista das questões relacionadas ao papel dos governos na promoção do desenvolvimento, especialmente nos países de industrialização recente. Seu livro mais importante, "Asia´s Next Giant: South Korea and Late Industrialization", de 1989, recebeu da Associação Norte-Americana de Ciência Política a distinção de melhor livro de economia política.
Em "A Ascensão do 'Resto'", Amsden examina como um grupo de países retardatários - China, Coréia, Índia e Taiwan, entre outros - pôde avançar, nas décadas de 1980 e 1990, em um ambiente em que o conhecimento era de difícil acesso e constituía uma barreira à entrada erigida pelas empresas estabelecidas, a ponto de se sobreporem, aqueles "latecomers", em várias áreas industriais, a posições ocupadas tradicionalmente pelo Japão e países ocidentais. O Estado se fez presente nesse processo como figura de protagonismo essencial para a promoção do crescimento e a equalização social, via comércio internacional, atuando em várias frentes. A produção de conhecimento e sua difusão pelo organismo econômico estaria o tempo todo como referência norteadora de um processo que também se fez notório por uma simbiótica integração de propósitos de governo e iniciativa privada, com afirmação da vontade nacional em termos de opções estratégicas e desenho de políticas de longo prazo.
A edição original é de 2001. Contudo, o livro de Amsden não perdeu atualidade. Bem ao contrário, dá muito que pensar neste cenário de hoje, de aberta discussão de disfuncionalidades que se revelam inerentes a mercados ditos "livres", com pouco ou nada de circunstanciais, nem propensas a desaparecer, vê-se com clareza, por meios auto-explicativos. Instigam, isto sim, e justificam ações corretivas de iniciativa governamental - com o fim último de se recomporem tecidos econômicos e sociais esgarçados e dar alguma sustentação a possibilidades de, no longo prazo e em meio a prováveis novas crises, ser menor o número de "mortos".
O livro de Amsden sugere que cada país preste muita atenção à questão da produção e difusão do conhecimento para cimentar os alicerces de um desenvolvimento de fundamentação autóctone (dentro das globalidades estabelecidas e as tendo por natural estímulo, é claro), feito de PIB e equalização social que não se percam com o passar do tempo. Nada acontecerá, porém, só pelas mãos do mercado, deduz-se já destas primeiras linhas do prefácio escrito pela autora:
"O comportamento do mercado tem como premissa a ideia de 'escassez' - ela é a essência do valor. É, portanto, curioso que as principais teorias de desenvolvimento econômico tratem o conhecimento como um bem livre. Na teoria que alicerça as prescrições de políticas em prol do livre comércio, o conhecimento cai como maná do céu. Nas 'novas' teorias do crescimento da década de 1980, o conhecimento em um dado país é o bem 'público' quintessencial, cujo uso por um indivíduo ou empresa não diminui sua disponibilidade para outros."
Melhor será ter em mente que "o conhecimento é o mais precioso de todos os ativos" e que "o conhecimento necessário para concorrer em mercados mundiais, diversamente de informações factuais, compreende habilidades únicas, capacidades 'sui generis', novos conceitos de produtos e sistemas de produção idiossincráticos. Por ser exclusivo e específico de cada empresa, o conhecimento é tudo, menos universalmente disponível e gratuito. Ele é a chave para o desenvolvimento econômico, que envolve uma conversão da criação de riqueza centrada em ativos primários baseados em produtos na criação de riqueza centrada em ativos baseados no conhecimento".
Enquanto Coréia, Taiwan, China e Índia escolhiam constituir sistemas nacionais de produção e serviços incumbidos do investimento em pesquisa e desenvolvimento que energizaria corporações fortemente competitivas nos mercados internacionais, Brasil, México, Turquia e Argentina, por exemplo, preferiam o caminho das fusões, aquisições e privatizações. "Colheram, com isso, resultados relativos bem inferiores em termos de consolidação de empresas nacionais com capacidade de liderança internacional, assim como suas economias carregaram a marca da instabilidade ou do baixo crescimento", resume, na apresentação do livro, o professor do departamento de sociologia da USP Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados.
"O recorte com base na busca do conhecimento [como fator de desenvolvimento] estabeleceu um verdadeiro divisor de águas entre as análises de Amsden e as de perfil mais convencional", destaca Arbix. "Sua lógica permitiu que a autora tomasse o conhecimento com todas as imperfeições, dificuldades e incertezas que cercam sua geração. A instabilidade acentuada desses processos - decorrente da natureza própria do conhecimento - retira das mãos exclusivas do mercado a dinâmica de formação de preços para o trabalho, capital e mesmo para a terra."
Eis um campo de complexo exercício de escolhas políticas, pois, "se a questão de fundo é viabilizar um salto para o desenvolvimento, a intervenção do Estado torna-se essencial, tanto para abreviar os ritmos da produção quanto para acesso ao conhecimento novo. Caso contrário, os mecanismos de defesa dos mercados tenderão a destilar, a conta-gotas, os determinantes mais avançados da competitividade das economias."
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