ESCOLA PÚBLICA
Vítima indefesa das universidades
José Maria e Silva
Jornal Opção (Goiânia), 21/08/2011
O Ideb na porta das escolas não vai medir o mais grave problema da educação brasileira: a pedagogia da destruição que as universidades impõem ao ensino público
O governo goiano, por intermédio da Secretaria Estadual de Educação, adotou uma medida pioneira no País — a transformação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) numa espécie de DNA das escolas. A partir de agora, todas as escolas estaduais serão obrigadas a ostentar uma placa com a nota obtida no Ideb, tornando público seu sucesso ou fracasso no referido índice. Como pai da ideia, o empresário e economista Gustavo Ioschpe, pensador ad hoc da educação, esteve em Goiânia respaldando a decisão do secretário de Educação, Thiago Peixoto. Em seu Twitter, no final da tarde de segunda-feira, 15, Ioschpe não escondeu o entusiasmo: “Saindo de Goiânia. Ideb na Escola lançado na rede estadual de Goiás. Primeiro Estado. Grande vitória. Vamos em frente”.
A proposta de Gustavo Ioschpe ganhou força entre as autoridades do País e tende a virar lei federal, valendo para todas as escolas brasileiras. É o que prevê projeto de lei do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM), apresentado na Câmara dos Deputados em 7 de junho. No mesmo dia, o deputado Edmar Arruda, do PSC do Paraná, apresentou projeto semelhante, que foi apensado ao do parlamentar goiano. Uma semana depois, em 15 de junho, foi a vez do deputado Fernando Torres, do DEM da Bahia, apresentar projeto praticamente idêntico, também apensado ao de Caiado. E na mesma data, coube à senadora Lúcia Vânia, do PSDB de Goiás, inaugurar essa discussão no Senado, com um projeto de lei do gênero.
Além dessas iniciativas no Congresso Nacional, diversas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais pelo País afora estão discutindo projetos semelhantes, todos eles inspirados na proposta de Gustavo Ioschpe. No caso dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, o mais ousado é o de Ronaldo Caiado, pois ele obriga todas as escolas do ensino básico — não só as públicas, mas também as particulares — a exibir a nota obtida no Ideb. Se aprovado, o projeto de Caiado exigiria adaptações no Ideb, pois a Prova Brasil, um dos indicadores que compõem o índice, é aplicada por amostragem no ensino privado e não universalmente, como ocorre no ensino público urbano.
Paulo Freire da “direita”
A proposta de obrigar as escolas públicas a divulgarem seu Ideb foi lançada por Gustavo Ioschpe na revista “Veja”, na edição de 8 de junho. Ao final de um artigo em que falava de sua participação na “Blitz da Educação”, do “Jornal Nacional”, Ioschpe lançou o seguinte desafio: “As escolas públicas do País deveriam ser obrigadas por lei a pôr o seu Ideb em placa de 1 metro quadrado ao lado da porta principal, em uma escala gráfica mostrando sua nota de zero a 10. Na placa deveria aparecer também o Ideb médio do município e do Estado. A maioria dos pais e professores hoje não sabe se a escola do filho é boa ou ruim, e, se esperarmos que consultem o site do MEC, seremos o país do futuro por muitas gerações. Mande um e-mail para seu deputado e exija essa lei”.
Como as edições de “Veja” são datadas com base na quarta-feira, mas começam a circular no sábado anterior (no caso, 4 de junho), o projeto de lei de Ronaldo Caiado, como ele próprio admite, foi inspirado no artigo de Gustavo Ioschpe, mesmo tendo sido apresentado em 7 de junho. A partir daí, o Ideb na porta das escolas tornou-se uma febre entre políticos de todo o País. Em 7 de julho, Ioschpe anunciou no seu Twitter: “Bomba! Cidade do Rio de Janeiro vai aderir amanhã ao Ideb na Escola. Gol de placa! Parabéns a Eduardo Paes e Claudia Costin” (secretária de Educação da cidade). O próprio prefeito Eduardo Paes respondeu: “Ioschpe, vamos seguindo suas dicas. Aqui no Rio o esforço é total para avançar na educação”.
Gustavo Ioschpe, um jovem de 34 anos, virou sumidade da educação no País, uma espécie de “Paulo Freire da direita”, como poderia dizer a esquerda se ousasse brincar com o santo nome de Freire. Entre seus fiéis seguidores no Twitter estão dois goianos: o próprio secretário estadual de Educação, Thiago Peixoto, e a ex-secretária e ex-deputada federal Raquel Teixeira. Outros políticos do País inteiro, talvez na esperança de conseguir espaço na grande imprensa, enchem o Twitter do economista não apenas com mensagens de apoio, mas também com o anúncio de projetos de lei baseados em sua proposta. Além deles, Ioschpe vem recebendo respaldo da grande imprensa e de outras instituições, especialmente de “Veja”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e Grupo RBS, além do publicitário Nizan Guanaes.
Ideb não é varinha mágica
A proposta de obrigar as escolas públicas a expor o seu Ideb não é ruim. Mas confundir termômetro com varinha de condão é péssimo. O Ideb detecta sintomas, mas é incapaz de curar doenças. E, como todo indicador de qualidade, ele enfrenta críticas desde que foi criado, em 2007, pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação, que também criou o Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), em 1990, e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 1998. É certo que grande parte dessas críticas têm um fundo ideológico e não se alicerçam na realidade do ensino, mas na utopia dos críticos. Mesmo assim, não convém fazer do Ideb uma espécie de solução mágica para todos os problemas do ensino público; agir assim é contrariar a própria razão de ser desse índice.
Por mais que sejam passíveis de falhas, os índices de qualidade da educação são uma tentativa salutar de avaliar o ensino com base em dados concretos, evitando o discurso apocalíptico ou salvacionista que sempre caracterizou os pensadores da educação. Como observa Emile Durkheim (1858-1917), no clássico “A Evolução Pedagógica”, cada teórico da educação tende a avaliar a escola com base na utopia que professa e não na realidade que vê. Essa tendência começou com a “Didática Magna” (1633), do tcheco João Amós Comênio (1592-1670), ancestral do ensino dito progressista, e virou doença com o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor de “Emílio ou Da Educação” (1762). Rousseau influenciou todo o pensamento pedagógico moderno, mesmo tendo sido um completo fracasso na criação dos próprios filhos, os quais abandonou.
Uma das críticas ao Ideb parte do professor Dermeval Saviani, livre-docente da Unicamp, com pós-doutorado pela Universidade de Bologna, na Itália, que, em entrevista ao caderno “Mais!”, da “Folha de S. Paulo”, em 29 de abril de 2007, acusou o índice de ser fruto de uma “pedagogia de resultados”. Eis o que afirmou Saviani ao jornal: “É uma lógica de mercado, que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos da chamada 'pedagogia das competências' e da 'qualidade total'. Esta, assim como nas empresas, visa a obter a satisfação total dos clientes e interpreta que, nas escolas, aqueles que ensinam são prestadores de serviço, os que aprendem são clientes e a educação é um produto que pode ser produzido com qualidade variável”.
Utopia histórico-crítica
A exemplo da quase totalidade dos pedagogos brasileiros, começando por Paulo Freire (1921-1997), criador do que chamo de “autoajuda marxista”, Dermeval Saviani acusa o Ideb de se guiar pela “lógica de mercado”, mas se esquece que sua própria crítica é pautada pela utopia socialista da “pedagogia histórico-crítica”, uma corrente pedagógica criada por ele, com fundamento em Karl Marx (1818-1883) e, por isso mesmo, muito utilizada nos cursos de pedagogia do País. Até mesmo a avaliação do Plano Nacional de Educação 2001-2008, encomendada pelo próprio MEC e capitaneada por professores da Universidade Federal de Goiás, padece de marxismo congênito, o que mostra a enorme dificuldade de se avaliar a qualidade da educação básica no País, pois a universidade, responsável por essa avaliação, tem um forte viés ideológico.
Ao contrário do que pensam os pedagogos marxistas e os militantes sindicais, não é errado, em si, cobrar resultados das escolas. Eles próprios fazem isso o tempo todo, só que de uma forma perversa: os resultados que cobram dos professores não dizem respeito ao mundo concreto, mas ao “outro mundo possível”, em nome do qual excluem os alunos do mundo real. Trata-se da lógica irracional da utopia, que faz tábula rasa da realidade. A depender dessa pedagogia, a escola se torna partido político, o professor vira militante de uma causa e o ensino se transforma em pura doutrinação. Prova disso é que o linguista Marcos Bagno, no famigerado “Preconceito Linguístico” (que já está na 50ª edição), chega a questionar o ensino como instrumento de promoção social do aluno e indaga textualmente: “Valerá mesmo a pena promover a 'ascensão social' para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta hoje?”
Indicadores de qualidade como o Ideb procuram mostrar que não é preciso virar o mundo de ponta-cabeça para se ensinar português e matemática a uma criança, como acreditam os discípulos de Paulo Freire. Sem dúvida, como dizia Durkheim, “a vida é, às vezes rude, outras vezes, enganosa ou vazia”, mesmo assim, a escola não pode abdicar do mundo tal como ele é, como se fosse uma seita milenarista dedicada a pregar o Apocalipse para melhor apressar o novo Éden. O papel da escola não é educar o aluno para utópicos mundos possíveis, mas para concretos mundos prováveis, os quais lhe compete deduzir com base na realidade. Isso não é “lógica de mercado” - é apenas lógica de sobrevivência humana, que vale em qualquer sociedade desde que o mundo é mundo. Privar o aluno disso, como fazem os pedagogos ditos progressistas, é um crime.
Condições sociais
Sem dúvida, fatores socioeconômicos interferem na educação. Quanto mais baixo é o nível social de uma família, mais difícil é o aprendizado de seus filhos. Obviamente, nem todo pobre está fadado à ignorância. Ao contrário do que prega a maioria dos intelectuais contemporâneos, a inteligência também depende de fatores hereditários. Mesmo assim, não dá para negar que o aluno do ensino público costuma ficar em desvantagem em relação a seus concorrentes do ensino privado. Felizmente, os pedagogos abandonaram o determinismo marxista do passado, mas o Inep continua reconhecendo, acertadamente, que o capital cultural do aluno tende a ser influenciado pelo seu nível socioeconômico.
Só que o instituto também mostra, na análise da Prova Brasil, que o desempenho dos alunos com o mesmo perfil nem sempre é igual. As escolas foram agrupadas por cinco níveis socioeconômicos, do nível 1, o mais baixo, ao nível 5, o mais alto. A escola com maior desempenho no nível socioeconômico mais baixo obteve 206 pontos na Prova Brasil, enquanto a escola de maior desempenho no nível socioeconômico mais alto alcançou 224 pontos. A diferença também se repete entre as escolas de menor desempenho, que obtiveram nota 144 no nível 1 e 174 no nível 5. A média das escolas variou de 173 pontos no grupo de menor nível socioeconômico para 207 pontos na de maior nível.
“A medida que o nível socioeconômico cresce, também aumenta a nota da escola”, conclui o Inep. “Este é um fato já amplamente conhecido, mostrando que o desempenho do aluno reflete, ainda que de forma, não determinística, o capital cultural de sua família, que, no Brasil, está muito associado ao nível socioeconômico”, acrescenta. Mas, em seguida, ressalva que, numa mesma cidade, entre alunos com o mesmo nível socioeconômico, houve expressiva variação de desempenho na Prova Brasil. No nível 3, por exemplo, a pior nota foi 133 e a melhor, 208. “A diferença entre esses dois valores - 75 pontos - é tão relevante que corresponde a mais de três anos de escolarização”, sustenta o Inep. E conclui: “Como a diferença entre as escolas de um mesmo nível socioeconômico não está nos alunos, esta deve ser procurada na gestão pedagógica, na forma de ensinar, na cultura, nos valores da escola ou no projeto pedagógico. Todos esses pontos passíveis de serem mudados com a ação da escola”.
Dimensão moral da escola
A conclusão do Inep mostra o quanto pode ser perigosa a transformação do Ideb na solução para todos os problemas do ensino. O fato de um determinado grupo de alunos ter o mesmo nível socioeconômico não significa que eles sejam todos iguais e que qualquer diferença em seu aprendizado seja responsabilidade exclusiva da escola, como acredita o Inep. O mundo sempre foi prenhe de pobres geniais e ricos estultos que contrariam o determinismo dessa tese. Além disso, a educação comporta uma dimensão moral que jamais é avaliada por indicadores de qualidade como o Ideb. O que mais atrapalha o aprendizado de um aluno não é o seu baixo nível socioeconômico e, sim, o seu baixo nível moral. Ninguém é capaz de ensinar um aluno indisciplinado, que se recusa a aprender. E isso o MEC, o Inep e as universidades se recusam a enxergar.
Uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), que teve o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), ajuda a elucidar essa questão. Realizado entre 2009 e 2010 em 61 escolas da Zona Leste da cidade de São Paulo e divulgado em julho último, o estudo constatou que, quanto maior a vulnerabilidade social de um determinado território, menor é o nível da qualidade de ensino de suas escolas e também menor é a aprendizagem dos alunos. O estudo tomou como parâmetro as notas das escolas no Ideb e constatou que, quanto mais vulnerável é o território em que a escola está situada, menor é a sua nota.
A vulnerabilidade social do território da escola é tão importante que interfere até na bagagem cultural que o aluno traz de casa. A pesquisa do Cenpec mostra que, nas escolas de baixa vulnerabilidade social, 39% dos alunos de maior nível cultural conseguem atingir um nível adequado ou avançado no Ideb. Já nas escolas de alta vulnerabilidade, esse índice cai para 19%. Além disso, 41% dos alunos de maior nível cultural não conseguem nem mesmo atingir o nível básico no Ideb quando estudam em escolas vulneráveis, enquanto nas escolas de baixa vulnerabilidade apenas 19% desses alunos ficam abaixo do básico.
Uma tragédia educacional
Quando a vulnerabilidade da escola se soma ao baixo nível cultural que o aluno traz de berço, então, temos uma verdadeira tragédia educacional. Do total de alunos com baixos recursos culturais que estudam em escolas altamente vulneráveis, cerca de 50% se situam na categoria abaixo do básico, enquanto apenas 10% se situam nos níveis adequado e avançado. Já nas escolas de baixa vulnerabilidade social, mesmo os alunos que trazem pouca bagagem cultural de casa conseguem um desempenho bem melhor: os que se situam abaixo do básico caem para 38% (12 pontos a menos em relação às escolas de alta vulnerabilidade) e os que conseguem atingir o nível adequado sobem para 24% (14 pontos a mais).
Os pesquisadores do Cenpec concluem que, nos territórios de alta vulnerabilidade, as escolas são o principal equipamento público de referência e “tendem, por isso, a ser tomadas pelos problemas sociais do território”. Vale a pena transcrever uma da conclusões do estudo: “As escolas de meios vulneráveis tendem a apresentar um corpo discente fortemente homogêneo no que diz respeito aos baixos recursos culturais familiares e ao local de residência na vizinhança vulnerável da escola. Elas tendem, por essa razão, a reproduzir, em seu interior, a segregação territorial urbana e sociocultural da população que atendem, bem como os problemas decorrentes dessa segregação”.
Os pesquisadores do Cenpec não dizem, mas eu digo: esse quadro se torna ainda mais grave pela influência das universidades no ensino básico. De acordo com a ideologia pedagógica predominante no País (o construtivismo), o aprendizado do aluno deve ocorrer de modo autônomo a partir do seu contexto cultural. Com isso, o professor que leciona nessas regiões de alta vulnerabilidade social não pode fazer da escola um instrumento civilizador - tem de deixar que o aluno despeje na sala de aula toda sorte de barbárie que traz do seu contexto. Se não agir assim, o professor será acusado de opressor e preconceituoso. Por isso, até os livros didáticos de português, inspirados na sociolinguística de Marcos Bagno, estão banindo a norma culta do idioma, com se a função da escola fosse referendar as gírias dos guetos.
O paradoxo das notas
Se o Ideb for colocado na porta das escolas para que elas possam pedir socorro à sociedade, ele será bem-vindo. Mas se for utilizado como instrumento de pressão contra diretores e professores, será mais um desastre na educação brasileira. O verdadeiro problema do ensino básico não é o professor, mas o aluno. Não basta que o professor saiba ensinar - é preciso que o aluno queira aprender. Até Jesus Cristo, na Parábola do Semeador, deixa isso claro: é impossível cultivar uma semente na pedra. Em toda a história da educação brasileira, jamais as escolas públicas contaram com tanto recursos materiais e humanos como contam hoje. Nas grandes cidades, um percentual expressivo de professores tem especialização, mestrado e até doutorado, mas as notas do Ideb são mais altas nas pequenas cidades, onde a qualificação do professor é menor.
São duas as razões para esse paradoxo: primeiro, os cursos de pós-graduação, em muitos casos, só servem para confundir o professor do ensino básico, na medida em que desprezam sua experiência didática em nome de utopias mirabolantes; segundo, a aprendizagem do aluno da escola básica depende mais da autoridade do que da capacidade intelectual do professor. Por isso, Cajuru, no interior de São Paulo, com 23.371 habitantes, e Eirunepé, na Amazônia, com 30.665 moradores, saíram-se muito bem no Ideb de 2009. Cajuru conseguiu colocar seis de suas oito escolas no ranking das melhores médias, enquanto uma escola pública de Eirunepé obteve a quarta melhor nota (8,7), ultrapassando em 3,6 pontos a meta para 2011. Em cidades pequenas, as famílias tendem a estar mais próximas da escola e, com isso, reforçam a autoridade do professor — que é imprescindível para o aprendizado do aluno.
E é justamente a autoridade do professor que vem sendo vilipendiada pelas universidades. As pesquisas acadêmicas sobre educação costumam apontar o suposto autoritarismo dos mestres como causa da violência e indisciplina entre os alunos e ainda acusam os professores de não serem suficientemente criativos para atrair a atenção da classe. É o que se vê no livro “Juventudes: Possibilidades e Limites”, publicado pela Unesco, como resultado de um grande seminário sobre o tema realizado na Universidade Católica de Brasília em novembro de 2009, com o apoio do governo federal. Nesse seminário, ongueiros, executivos federais e doutores universitários foram praticamente unânimes em criticar os professores, acusando-os de não dar voz aos alunos, como se os alunos, hoje, não dessem palpite em tudo dentro da escola. Os professores é que são silenciados, tanto que nunca são chamados a falar nesses seminários.
Leniência do sistema de ensino
Um dos participantes da conferência, o assessor da presidência do BNDES, Ricardo Henriques, chegou a afirmar que “há uma falta de aderência dos professores à vontade dos alunos” e acusou o docente de ser “desencadeador de situações de violência”, como se o professor não fosse uma vítima acuada pela classe, que, uma vez referendada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pode fazer dele o que quiser. Todos os professores que ouvi em minha dissertação de mestrado — defendida há quase dez anos — disseram já ter sido xingados com palavrões por alunos. Um deles afirmou: “Um aluno que xinga o professor, que ameaça de morte o professor, tem que ser pelo menos suspenso. Mas não acontece nada. Hoje, o aluno dizer para o professor ‘vai tomar no cu’ é uma coisa normal. Aluno já me mandou fazer isso. Conversei com a diretora e ela disse que não podia fazer nada. Isso está errado. A escola tinha que poder fazer alguma coisa”.
Que outro profissional convive com isso todo dia como o professor é obrigado a conviver? E o professor não tem a quem reclamar. Os intelectuais universitários veem-no como um incapaz; as autoridades educacionais tratam-no como um relapso; os pais consideram-no um serviçal de seus filhos; os alunos transformam-no em verdadeiro palhaço. E todas as instâncias educacionais do País tentam esconder essa realidade, pois o estudante não pode ser responsabilizado por nada. E quando alunos agridem violentamente um colega ou um professor, muitas vezes é a vítima quem tem de mudar de escola. E se ocorre de o agressor ter de sair, ele jamais é expulso, mas apenas transferido pela própria direção. Ou seja, é premiado, pois não terá nem o trabalho de procurar vaga em outro estabelecimento de ensino — a direção da escola é obrigada a fazer isso por ele.
Entre as soluções para a violência que os acadêmicos defendem estão a abertura das escolas para a comunidade nos finais de semana — sobrecarregando ainda mais o professor — e a promoção da “Cultura da Paz”. Esse movimento, criado pela ONU e encampado pelo MEC, consiste em legitimar as gangues que depredam a escola, pois retira delas o caráter de agressoras — que, de fato, são — para conferir-lhes o “status” de parte legítima de um conflito social. Como se não bastasse, as universidades ainda defendem que os próprios alunos sejam capacitados em mediação de conflitos, fingindo não ver que esses conflitos, na maioria das vezes, envolvem drogas, facas, estiletes, armas de fogo e propensão à chacina, pois membros de gangue são animais selvagens: não sabem o que é honra se deleitam em massacrar, em grupo, a vítima indefesa.
Professor como subcidadão
É na porta desse tipo de escola que a Secretaria Estadual de Educação vai pendurar a placa com a nota do Ideb. Como eu disse, a medida pode ser positiva, desde que não se transforme em mais um instrumento de tortura psicológica contra professores e diretores e sirva como um pedido de socorro da escola, permitindo-se a ela que explicite todos os seus problemas, como a violência, a indisciplina, a vadiagem dos alunos e a tresloucada inclusão de deficientes mentais grave entre alunos normais. Por que Thiago Peixoto, Ronaldo Caiado, Lúcia Vânia, Eduardo Paes e várias outras autoridades pelo País afora dão as costas para esses problemas que os professores relatam todos os dias e correm para pôr em prática as ideias de Gustavo Ioschpe, sendo que muitos mestres da rede pública têm de magistério o que Ioschpe tem de vida?
A importância excessiva que os políticos dão ao empresário e economista é uma forma indireta de desmerecimento do professor. É como se ele valesse mais do que todos os professores brasileiros juntos. Mas os políticos não são os únicos culpados por agirem assim. Foi a universidade quem transformou os professores do ensino básico em subcidadãos. Raras são as pesquisas acadêmicas que ouvem o professor e, quando o fazem, é apenas para desacreditar o que ele diz. Por isso, Gustavo Ioschpe consegue pontificar sobre educação com tanta facilidade, apesar de nunca ter posto os pés numa escola pública, a não ser como celebridade, nas asas do “Jornal Nacional”. Ioschpe é colunista da grande imprensa desde os 20 anos e logo se tornou uma espécie de guru da educação, sobretudo depois do lançamento do livro “A Ignorância Custa um Mundo”, em 2004.
Filho de um engenheiro e industrial gaúcho com uma jornalista e socióloga, Gustavo Ioschpe é herdeiro da Iochpe-Maxion (sem o “s”), empresa do ramo automotivo e ferroviário, além de dono da G7, uma produtora de documentários sobre futebol. Como se vê, educação para ele é quase um hobby, talvez um desafio cognitivo. Isso não significa que não esteja certo em muitas de suas análises, como a defesa que faz do mérito na educação e a crítica ao corporativismo dos sindicatos. Errados estão os que o transformam em gênio salvador do ensino público, apenas porque teve a ideia de pendurar o Ideb, feito um chocalho, no pescoço do professor. Imaginem se um secretário de Saúde resolvesse esfregar na cara dos médicos um indicador da medicina proposto por um profissional de outra área. Ficaria pouco tempo no cargo.
Mais ônus sobre a escola
O principal objetivo de se colocar o Ideb na porta das escolas é mobilizar a comunidade, sobretudo os pais de alunos, para que cobrem a melhoria da qualidade de ensino. Mas é pouco provável que isso aconteça. A tendência é que justamente os pais irresponsáveis, interessados em terceirizar a criação de seus próprios filhos, monopolizem as cobranças junto à direção da escola. As leis vigentes, começando pela Constituição de 88 e passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, facilitam isso. Elas tanto fizeram para destruir o pátrio poder que muitos pais já estão achando boa a ideia de não terem que se preocupar com os próprios filhos. O próprio MEC deixa claro, no documento sobre a Prova Brasil, que a melhoria da nota no Ideb é responsabilidade exclusiva da escola e jamais do aluno. Sem dúvida, um convite para que os pais lavem as mãos e deixem o problema nas costas do professor.
Aqui vai um só exemplo dessa tendência cada vez mais crescente. Em março deste ano, um grupo de pais do Rio de Janeiro foi condenado a pagar uma indenização de R$ 18 mil por danos morais à diretora de uma escola — ela tinha sido achincalhada por alunos no Orkut, com palavras de baixo calão. Em sua defesa, os pais dos alunos alegaram que a diretora constrangia seus filhos e que eles apenas queriam “estar na moda” ao criar o Orkut. Ora, esse tipo de pai pode ser um aliado da escola na luta pela melhoria do ensino? É óbvio que não. Um pai responsável simplesmente mandaria o filho apagar o Orkut difamatório e iria pessoalmente com ele pedir desculpas à diretora.
Como dizia Durkheim, toda sociedade, para sobreviver, necessita de um mínimo de conformismo lógico associado a um mínimo de conformismo moral. E é justamente a lógica e a moral que estão sendo sistematicamente destruídas pelas próprias universidades, que deveriam ser suas guardiãs. Isso se reflete cotidianamente no ensino, indispondo filhos contra pais, alunos contra mestres, e obrigando a escola básica a acolher e educar com eficácia todo tipo de transgressor, mesmo o violento. Caso se faça um levantamento das teses e dissertações sobre educação produzidas por mestres e doutores do País, dá para criar um outro Ideb: o Índice de Destruição da Educação Básica. É esse índice que precisa ser exposto — só que na porta das universidades brasileiras.
domingo, agosto 21, 2011
domingo, agosto 14, 2011
Irlanda, da felicidade aos problemas - Colm Tóibín
Ao contrário do que o editor da revista afirma, a Irlanda não voltou à pobreza. Ela representa um dos mais extraordinários exemplos de desenvolvimento econômico e social, arrancando a si mesma da pobreza por políticas corretas. Recentemente, cometeu uma grande bobagem, devido ao excesso de riqueza, justamente: foi garantir a 100% depósitos bancários, atraiu mais capital do que deveria, e foi prejudicada pela crise dos derivativos americanos. Uma bobagem que não deveria ter feito. Mas ela não voltará à pobreza, e sim terá de administrar o buraco financeiro pelos próximos anos. Tem inteligência suficiente para superar um problema conjuntural, e continua a ter boas políticas em outras áreas.
Paulo Roberto de Almeida
O preço da felicidade, o custo da desgraça
por Colm Tóibín
Revista piauí, agosto 2011
Em texto exclusivo para a piauí, o escritor irlandês narra a trajetória de seu país, da pobreza à prosperidade e de volta à pobreza, em apenas quinze anos
Devia ser o verão de 1965, ou talvez um ano antes, e estávamos na praia na costa leste da Irlanda. Eu tinha 9 ou 10 anos. Minha mãe e meus irmãos provavelmente tinham ido nadar e isso significa que eu estava deitado no tapete escutando a conversa do meu pai com a irmã da minha mãe. A irmã da minha mãe gostava de discutir grandes assuntos como religião e política. Agora ela estava perguntando a meu pai, que era um membro ativo do partido do governo, o Fianna Fáil – que desde 1932 esteve quase sempre no poder – se ele apoiava todas as políticas e decisões de seus correligionários. Meu pai disse que sim, e isso me pareceu certo, pois nunca imaginara que ele pudesse pensar de outro modo. Eu sabia a opinião dele sobre o outro partido – o Fine Gael, principal partido oposicionista – que era a de que você podia cumprimentar seus membros quando cruzava com eles na rua, mas se alguma vez votasse neles sua mão direita gangrenaria e seria amputada.
O pai do meu pai era um nacionalista irlandês e tinha lutado contra os britânicos. Participou da rebelião de 1916, que, mesmo sendo derrotada, tornou-se o início do fim do domínio britânico na Irlanda. Em 1922, quando finalmente se retiraram, os ingleses decidiram dividir a Irlanda, ficando com o norte do país, que tinha uma população protestante maior e não queria se separar da Grã-Bretanha. E homens como meu avô eram totalmente contrários a esse arranjo. Meu avô e seus amigos queriam tudo ou nada, uma república formada por toda a ilha; os da outra facção, até ali seus camaradas na luta contra o domínio britânico, queriam aceitar a proposta britânica de uma Irlanda dividida. As duas facções, incluindo irmãos, travaram uma feroz guerra civil. Noventa anos depois, os dois principais partidos – Fianna Fáil e Fine Gael – descendem dessa guerra.
A política de ambos os lados era nacionalista, anti-imperialista e não propriamente de esquerda. O ideário não ia além da vaga noção de uma Irlanda autossuficiente. A guerra que travaram não foi uma guerra de classes. Assim, enquanto alguns ingleses partiram e perderam suas propriedades, a burguesia irlandesa não foi afetada pela independência. Os proprietários rurais mantiveram suas terras; os lojistas, suas lojas; os banqueiros, seus bancos. E a revolução irlandesa foi também comandada principalmente por católicos. O fim da guerra civil viu crescer, ao sul da fronteira, um Estado católico insular profundamente conservador e, ao norte, numa imagem especular, um estado protestante insular profundamente conservador. O partido do meu avô, Fianna Fáil, do qual meu tio também era membro, e no qual meu pai logo ingressaria, tomou o poder no sul em 1932; tornou-se ainda mais conservador e mais católico do que o outro partido, Fine Gael. O Partido Trabalhista continuou pequeno, sempre a terceira força; o movimento sindical também era conservador, e quase não tinha influência.
O problema para o novo Estado irlandês era como proporcionar trabalho à população. Os melhores empregos eram no funcionalismo público. Quase não havia indústria; a Irlanda era ainda um país basicamente agrícola. Dos anos 20 em diante muitos jovens emigraram para a Grã-Bretanha e Estados Unidos em busca de trabalho. Em 1939 Seán Lemass, que se tornaria primeiro-ministro vinte anos mais tarde, disse que os problemas econômicos da Irlanda tinham “criado uma situação em que o desaparecimento da raça era uma possibilidade que não podia ser ignorada”. O isolamento do país se acentuou ainda mais por causa da posição de neutralidade que assumiu durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, enquanto a Europa era reconstruída com dinheiro do Plano Marshall, a Irlanda ficou, assim como a Espanha e Portugal, à margem da nova prosperidade.
Era, nos anos 50, um lugar atrasado, do qual era um alívio, quase um prazer, emigrar. Quatro em cada cinco crianças nascidas na Irlanda entre 1931 e 1941 emigraram. No final daquela década estava claro que era preciso fazer algo para modernizar o país. Em 1958 foi publicado o Primeiro Programa para a Expansão Econômica. A Irlanda tinha sido admitida no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional em 1957. A partir de 1958, o país se abriu para o investimento estrangeiro e para o capital externo, predominantemente americano.
A década de 60 foi, então, um tempo de mudanças na Irlanda. Não apenas o pensamento econômico se liberalizou, como também a influência da Igreja começou a declinar, sob pressão, por exemplo, do movimento feminista. O avanço da televisão e a suspensão da draconiana censura a livros contribuíram para a mudança. A Irlanda do Norte também começou a mudar com o avanço do movimento pelos direitos civis, que exigia maior igualdade para os católicos. Isso levou no norte à ascensão do IRA, que estava disposto a matar e mutilar pelo fim da divisão do país e pela derrubada do domínio britânico na região.
Meu pai morreu em 1967. Tinha apoiado integralmente a abertura da economia irlandesa, e eu muitas vezes me perguntei como ele teria reagido diante da violência na Irlanda do Norte. Homens da sua geração insistiam que queriam um único Estado na ilha, mas o que eles realmente queriam era estabilidade e progresso econômico ao sul da fronteira (a Irlanda foi declarada uma república em 1949). Assim, quando começou a década de 70, o sul decidiu ignorar a violência no norte e passou a olhar para fora. Queria ingressar na Comunidade Econômica Europeia ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha. Depois de prolongadas negociações e de uma vitória esmagadora num referendo, a República da Irlanda entrou na CEE, como era então chamada, em 1973.
Foi aí que começou a verdadeira mudança. Os gastos públicos aumentaram em todas as áreas. A frequência escolar triplicou. A proibição da venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional em 1973. O número de mulheres a integrar a força de trabalho duplicou em uma década. Com dinheiro europeu, novas estradas foram construídas, dando lugar a uma infraestrutura mais moderna.
Mas algumas coisas não mudaram. O político para o qual meu pai trabalhava em épocas de eleição tinha lutado na rebelião de 1916 e ainda era membro do Parlamento em 1969. Seu filho se tornou senador. Seu neto é, no momento, membro do Parlamento Europeu. Na Irlanda hoje, em 2011, o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o líder da oposição, que se tornará o próximo primeiro-ministro, são todos filhos de políticos. Não tiveram que fazer quase nada, ou sequer pensar muito, antes de entrar na política. Era como se tivessem herdado dos pais os assentos no Parlamento e a filosofia política. Em outras áreas, como a carreira médica, a carreira jurídica ou a financeira, pouco mudou. Todos vêm de famílias da alta burguesia, estudaram em escolas de elite e nutrem o sentimento de que o poder lhes é devido, e isso nenhuma transformação social ou econômica parece abalar. Ao mesmo tempo em que a Irlanda mudava e cresciam as oportunidades, o país continuava curiosamente estagnado em termos sociais, e curiosamente conservador em termos políticos, com os dois partidos da guerra civil, ambos conservadores e convencionais, garantindo a estabilidade.
Era um pouco estranho viver aqui, um lugar que não teve Renascença, que quase não teve Reforma, nem Iluminismo, nem Revolução Industrial. Somente uma história de violência, pobreza e emigração. Um lugar governado até 1922 pelo Império Britânico, seguido de quatro décadas de estagnação cultural e econômica antes da integração ao império europeu, por assim dizer, em 1973. E, no entanto, havia também um surpreendente fascínio em torno da Irlanda, em especial de Dublin, onde o mundo da escrita – o poema, o romance, a peça de teatro, o artigo de jornal – era tratado com uma espécie de reverência e seriedade que só se encontra em sociedades nas quais faltam muitas outras coisas. Isso foi algo de que o governo se deu conta no final dos anos 60, compreendendo que a imagem da Irlanda era criada por escritores e cantores, e que essa imagem era tão importante quanto as políticas econômicas da Irlanda para atrair investimento estrangeiro. Subitamente, Yeats, Joyce e Beckett ficaram na moda, e a política governamental com relação à cultura se tornou esclarecida.
Foi Margaret Thatcher quem percebeu que, na verdade, a República da Irlanda não cobiçava territórios na Irlanda do Norte. Queríamos estabilidade ali, e o fim da violência, mais ainda do que queriam os britânicos. Então, a partir de 1985, e da assinatura do Acordo Anglo-Irlandês, os governos britânico e irlandês trabalharam juntos, e esse trabalho levou, uma década depois, ao fim da campanha do IRA no norte.
Nesse ínterim, a República da Irlanda se tornou uma economia aberta, dependendo cada vez menos da agricultura e cada vez mais do investimento estrangeiro. As multinacionais estavam satisfeitas conosco: nosso movimento sindical não era combativo; tínhamos uma mão de obra escolarizada e flexível; falávamos inglês; éramos membros da União Europeia; e nossa taxação sobre os seus lucros era mais baixa que a de qualquer outro país da UE.
Em 1984 comprei uma casa em Dublin. Foi difícil. Embora eu tivesse um emprego seguro, nenhum banco, em princípio, quis me dar um empréstimo. Notei o quanto os gerentes eram cautelosos, como se mostravam desconfiados diante de qualquer coisa fora do normal. A casa ficava numa área da cidade que na época não era considerada boa, e isso os deixava intrigados a meu respeito. Finalmente consegui o empréstimo. Os juros eram altos. Em dois anos o valor da casa tinha caído 20%. E então os preços começaram a subir, mas os gerentes de banco continuaram no caminho da prudência. Em 1997 quando decidi me mudar de novo, tive um bocado de dificuldade para conseguir um segundo empréstimo, embora tivesse quase terminado de pagar o primeiro.
No início do novo século, porém, com os preços das casas subindo por toda a Irlanda, descobri que os bancos irlandeses estavam jogando dinheiro na mão da gente. Os velhos gerentes tinham se aposentado; agora havia uma geração nova e impetuosa. Para meu espanto, consegui sem dificuldade um empréstimo para comprar uma casa na frente da praia. Quase não me fizeram perguntas. E houve ainda uma sugestão para que eu pegasse mais dinheiro emprestado para investir em novas propriedades; por pura preguiça não aceitei essa oferta.
A essa altura, a Irlanda estava integrada ao euro, introduzido em janeiro de 2002. Pelo fato de a moeda ser efetivamente controlada pela Alemanha, as taxas de juros estavam e permaneceriam baixas, assim como os índices de inflação. Fazer parte do euro me deixava orgulhoso. Me lembro que estava em Ibiza com amigos escoceses em 1º de janeiro de 2002 e usei meu cartão naquela manhã para sacar cédulas novinhas e me gabar de que a Irlanda, como membro do euro, era mais europeia que a Grã-Bretanha.
Se a gente não parasse para pensar, o euro parecia uma boa ideia. Oferecia estabilidade, e isso significava que a Europa poderia competir com os Estados Unidos, que o euro poderia se tornar uma moeda internacional mais poderosa que o dólar. Contribuía para o sentimento de que a Europa era agora um lugar sem barreiras, onde era possível ir de carro de Portugal até o leste da Alemanha e depois descer para a Itália sem trocar dinheiro e sem ser parado pela polícia em nenhuma fronteira.
O problema era que o euro era regulado pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, mas cada Estado tinha sua própria política econômica, suas próprias forças e fraquezas. Ficou claro desde o começo que alguns países no sistema do euro – Alemanha, França, Holanda – tinham economias muito mais fortes do que outros – Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia. Esperava-se que a regulação e a prosperidade crescente criassem aos poucos uma Europa mais equilibrada, e que o euro acelerasse esse processo.
No início, operaram-se maravilhas na Irlanda, com a ajuda de um aumento da atividade multinacional norte-americana. Atingimos pleno emprego. A todo momento eu via estatísticas demonstrando que a Irlanda tinha se tornado um país de sucesso, uma lição para o resto do mundo. Políticos, incluindo alguns dos maiores idiotas que a Irlanda já produziu, competiam entre si reivindicando o crédito pelo que ficaria conhecido como o Tigre Celta.
E naqueles mesmos anos outras mudanças estavam ocorrendo. Em 1988, a Corte Europeia de Direitos Humanos ordenou que o governo irlandês mudasse a lei contra o homossexualismo. Nos anos 90, a proibição do divórcio também foi retirada da Constituição. (A proibição do aborto, inserida nos anos 80, permaneceu.) E também teve início algo inimaginável. O Estado enfrentou a Igreja, que até então era todo-poderosa, sentindo-se acima da lei. Padres foram acusados, condenados e presos por abuso sexual de menores. No começo do novo século, apareceram muitos relatórios oficiais provando que o abuso e a violência selvagem cometidos por padres e membros das ordens religiosas contra aqueles sob sua guarda – frequentemente órfãos ou crianças pobres – tinham sido sistemáticos e encobertos com cuidado pelas autoridades eclesiásticas. As pessoas estavam furiosas com a Igreja. De repente, o poder da Igreja Católica na Irlanda virou coisa do passado.
Assim, à medida que a primeira década do século XXI avançava, as pessoas começaram a se perguntar se essa onda de prosperidade e secularização transformaria a Irlanda e afetaria, por exemplo, a literatura irlandesa, se nos faria produzir um tipo diferente de romance ou poema ou peça de teatro, se tornaria mais leve o nosso tom, ou mais comerciais as nossas obras. Já que tudo tinha se tornado comercial, por que não a cultura também?
Seria possível que a Irlanda fosse tão frágil que a chegada da prosperidade pudesse mudar fundamentalmente a sua cultura? Naqueles anos, eu fiquei à espreita dessa possibilidade. Vi como os novos-ricos se tornaram extravagantes e vulgares, e como o consumo ostensivo parecia adicionar uma aura de histeria à atmosfera do país. Mas isso era só na superfície, entre os poucos que podiam se dar ao luxo de ter helicópteros particulares ou motoristas. Para o resto do país, o dinheiro trouxe prazer e um certo conforto. Notei, ao viajar com frequência aos Estados Unidos, que os aviões estavam todos lotados, não de turistas americanos, nem de empresários irlandeses, mas de consumidores irlandeses com o bolso cheio de cartões de crédito na viagem de ida e sacolas cheias de compras reluzentes na viagem de volta. A maioria era gente irlandesa comum e notei o quanto eles se divertiam, como imediatamente, a exemplo dos imigrantes do passado, eles encontravam em Nova York um bar, um restaurante ou um hotelzinho, geralmente administrado por irlandeses, onde se sentiam à vontade.
Em casamentos e enterros, eu prestava atenção para ver se notava alguma diferença. As festas de casamento eram maiores, gastava-se mais, e a vida era melhor porque a maioria dos convidados morava na Irlanda, e não tinha que viajar da América ou da Grã-Bretanha ou da Austrália para estar presente. Mas os homens se encostavam no balcão do bar do mesmo jeito de sempre; a música continuava péssima, e os chapéus que algumas mulheres usavam talvez fossem mais caros, mas revelavam o mesmo mau gosto de sempre. As pessoas ficavam bêbadas do mesmo jeito. Isso ao menos não tinha mudado, ainda que agora bebessem mais vinho e menos Guinness.
Algumas das mudanças vinham de longa data. Desde o final dos anos 60, a frequência das missas semanais vinha caindo; continuou a cair. Desde o final da década de 60, os supermercados tinham mais produtos estrangeiros – mais massa, patês, azeite de oliva – e a dieta irlandesa continuava a se aproximar da dieta da França ou da Espanha. Nos enterros, especialmente na cidadezinha onde nasci e cresci, não parecia ter havido mudança alguma; as pessoas se comportavam nas pequenas comunidades exatamente da mesma maneira, com a mesma reverência pelo corpo, o mesmo zelo pelos parentes e amigos, a mesma seriedade diante da morte.
E ainda que as oportunidades de ganhar muito dinheiro aumentassem, a ideia de se tornar escritor, ator ou músico ainda merecia profundo respeito. Em 2006 fui indicado pelo governo para o Conselho das Artes e examinei todos os pedidos de subvenção. Era como se nada tivesse acontecido. Pequenas companhias teatrais ainda estavam sendo criadas, trabalhando não por dinheiro, nem sequer pela fama. Jovens músicos, tanto na música tradicional irlandesa quanto na clássica, continuavam a surgir. E o mais estranho, talvez, foi que a geração que chegou à idade adulta com essa nova prosperidade produziu um bom número de jovens escritores – Claire Keegan, Paul Murray, Kevin Barry, Clare Kilroy, Christian O’Reilly – que exploravam os mesmos temas de Joyce ou Beckett, Edna O’Brien e John Banville. Escreviam sobre famílias irlandesas e infância irlandesa, a escuridão e o isolamento da Irlanda. Usavam um idioma que haviam herdado; e escreviam principalmente para o seu próprio país e eram lidos avidamente.
Eu me perguntava então se o dinheiro que veio nos anos 90 e durou por uns quinze anos não teria servido apenas para tornar as pessoas mais felizes, dando a elas um pouco mais de segurança. Parecia que a prosperidade que chegou à Irlanda significava que pais e avós podiam ficar tranquilos sabendo que a nova geração permaneceria no país, encontraria trabalho, criaria raízes, e isso os deixava felizes. Além disso, neste país do norte com seus longos invernos e chuvosos verões, todos adoram viajar para o sul, e naqueles anos, nas manhãs de sábado, havia uma felicidade palpável no aeroporto, de onde famílias inteiras partiam para a Grécia, Portugal ou Espanha. Às vezes, porém, era tudo excessivo: os novos restaurantes, de preços abusivos e comida não muito boa, ficavam lotados todas as noites; as pessoas pareciam sentir prazer em atingir o limite de seus cartões de crédito; o preço das casas tornou-se tópico de intermináveis discussões; os irlandeses compravam apartamentos na Espanha e em Portugal sem se preocupar em aprender uma palavra da língua local.
Mas uma coisa fundamental não mudou. Entrando em qualquer bar de Dublin, via-se que continuavam as conversas e risadas, a sensação quase de performance, o modo caloroso e divertido como as pessoas se relacionavam umas com as outras – um clima muito diferente do comportamento frio num bar de Londres ou de Paris. Observando turistas irlandeses num aeroporto nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, via-se nos seus rostos uma profunda desconfiança em relação às autoridades constituídas, uma espécie de retraimento, uma falta de segurança. A música que se ouvia naqueles anos, os poemas e romances escritos, as peças encenadas, tudo isso era feito com a mesma sensação de que a palavra era importante. Também na Irlanda daqueles anos o esporte permaneceu no centro das coisas, incluindo os dois esportes nacionais amadores: o hurling[1] e o futebol gaélico. Era possível assistir a uma partida, mesmo em Dublin, e ter a impressão de ter voltado aos anos 50.
Em outras palavras, o dinheiro era só dinheiro, e ao mesmo tempo em que as pessoas gastavam muito, e viviam sem prudência, elas também usufruíam dessa prosperidade, da segurança que ela trazia, das viagens ao exterior, das reuniões familiares, das roupas vistosas, das refeições em restaurantes, das casas de férias, do sentimento vertiginoso de que a vida nunca tinha sido melhor. Mas quem examinasse com cuidado aqueles anos descobriria facilmente que a nova riqueza na Irlanda era quase ilusória e não duraria.
Em 2006 fui convidado a debater essa relação entre o milagre econômico irlandês e a cultura irlandesa num simpósio nos Estados Unidos. Decidi observar primeiro a anatomia do milagre econômico, e algumas coisas que descobri me chocaram. Eis o que escrevi na época: “Um grande volume de atividade econômica na Irlanda está concentrado não no comércio ou na consolidação da produção, mas na construção civil. A Irlanda é, de acordo com o Bank of Ireland, a segunda nação mais rica do mundo, atrás do Japão. E, observa o banco, um aspecto crucial dessa riqueza é que é riqueza de primeira geração, criada nos últimos dez anos. Se analisarmos a riqueza da Irlanda, veremos que não é como a riqueza em outros lugares. Os irlandeses estão gastando e tomando empréstimos à vontade, mas não investem em áreas como pesquisa e desenvolvimento, que criariam mais prosperidade no futuro, mas em imóveis, que dependem dos preços do mercado imobiliário para manter seu valor.”
Os irlandeses estavam viajando muito, mas poucos iam para a Alemanha, e pouquíssimos chegaram a compreender que a Alemanha tinha mudado, e que essa mudança seria prejudicial para o futuro da Irlanda quando a economia irlandesa entrasse em dificuldades. Os alemães do Leste ingressaram na UE ao mesmo tempo em que se integraram à Alemanha Ocidental. Diferentemente dos húngaros, digamos, ou dos tchecos, entraram na UE sem pensar duas vezes. Concentraram-se unicamente nos benefícios que a reunificação traria para eles. A Alemanha, por sua vez, concentrou-se em fazer a reunificação funcionar. De uma hora para outra, a Alemanha Ocidental ganhou uma nova população, em boa parte qualificada, e isso significava que os salários baixariam ou ficariam estáveis. O governo alemão tomou o cuidado de não superaquecer a economia; os impostos continuaram elevados. Os bancos alemães, apesar das baixas taxas de juros, não franquearam seus cofres aos investidores alemães. Eles emprestaram a outros bancos.
Naqueles anos, por todo o continente, a outrora poderosa ideia de que a Europa era uma cultura única e deveria se tornar cada vez mais uma economia única estava murchando. Acreditava-se que a diluição da soberania nacional tinha ocorrido rápido demais, sem debate suficiente. Havia uma visão de que a Europa era um superestado, mas não uma democracia, que sua burocracia de salários excessivos não prestava contas a ninguém, e que cada Estado nacional tinha direitos e tradições que mereciam ser protegidos. Na Alemanha, disseminou-se a opinião de que não era mais tarefa dos países ricos ajudar os países pobres.
Em 2008, quando o governo americano permitiu que o banco de investimentos Lehman Brothers falisse, o Banco Central Europeu decidiu que isso não aconteceria com os seus bancos. Os riscos eram grandes demais. Na Irlanda, um banco em especial – o Anglo Irish Bank – vinha crescendo muito, especialmente na área de crédito imobiliário. E devido à frouxa regulamentação na Irlanda e, ao que parece, a uma regulamentação quase inexistente por parte da UE, o Anglo Irish estava arriscando demais. Não obstante, os seus diretores eram tratados como príncipes num país sem realeza. Escrevia-se sobre eles como se fossem lordes. Dizia-se que eram eles que tinham a capacidade de levar a Irlanda para o futuro, onde se veria livre da pobreza e da emigração, livre de seu passado de colônia.
Assim, quando os banqueiros procuraram o governo em setembro de 2008 para dizer que precisavam desesperadamente de ajuda estatal, o governo tinha dois motivos para ouvi-los. Primeiro, o Banco Central Europeu tinha deixado claro que nenhum banco deveria falir, e os políticos irlandeses não tinham experiência alguma em finanças internacionais ou interesse algum em desafiar uma organização tão venerável, sediada na Alemanha. Segundo, os políticos gostavam dos banqueiros e os admiravam, e não desconfiaram que as cifras que lhes eram apresentadas estavam completamente erradas. Não sabiam que, se o Estado irlandês salvasse do naufrágio os seus bancos, os custos representariam o dobro da receita anual com impostos. E inocentemente se dispuseram a garantir os bancos.
Nesse ínterim, a bolha imobiliária tinha estourado. A receita governamental em 2009 foi de 35 bilhões, enquanto os gastos foram de 55 bilhões. A Irlanda precisaria pedir dinheiro emprestado em 2010 e nos três ou quatro anos seguintes. O país estava vulnerável porque o custo de salvar os bancos era inimaginável; os políticos pareciam temer divulgar a cifra e os banqueiros obviamente também não a revelavam. (Os banqueiros agora tinham caído em desgraça. Segundo consta, nem em partida de golfe alguém queria ser visto ao lado deles.)
Num ataque especulativo ao euro, a Irlanda era o elo mais fraco. A Grécia já tinha sido salva do naufrágio, para grande consternação do contribuinte alemão. E logo, parecia, tanto a Espanha como Portugal iriam precisar de ajuda. Os bancos irlandeses estavam sobrevivendo com dinheiro do Banco Central Europeu; a Comissão Europeia também tinha um fundo para ajudar países necessitados, mas isso traria consigo o Fundo Monetário Internacional, como ocorrera na Grécia, e a ajuda só seria fornecida sob as mais severas condições. A chegada da Comissão e do FMI significaria que a Irlanda, poucos anos antes um dos países mais ricos do mundo, era agora uma economia moribunda.
Os políticos continuavam a se comportar como se fossem competentes. Estavam dia e noite no rádio e na televisão, exalando controle e uma estranha certeza de que ainda tinham legitimidade para comandar. Lentamente, a população despertou para o que estava acontecendo. A ira contra o Fianna Fáil, o partido de meu pai e meu avô, não é corriqueira. Quando a eleição vier, o partido será dizimado. Porque representavam, desde os anos 60, tanto o patriotismo como o pragmatismo, e porque fracassaram em ambos os campos. Eles se tornaram alvo fácil depois de cederem a soberania da Irlanda ao FMI, uma soberania pela qual lutaram os nossos antepassados.
Enquanto isso, a emigração recomeçou, e os jovens estão se mudando para a Grã-Bretanha, a Austrália e o Canadá. Estamos perdendo mais uma geração. Mas estamos também perplexos, com um misto de choque e vergonha. Como pudemos acreditar que um pequeno país como a Irlanda, com uma história de pobreza e fracasso, pudesse ser rico e permanecer rico? Por que compramos casas que custavam tão caro e agora valem tão pouco? Como confiamos que a Europa viria nos salvar, sem pensar que viria também nos punir por nossa insensatez? Como confiamos no Fianna Fáil, cujos ministros não sabem coisa alguma de economia, e entraram na política só por causa de suas famílias?
As noites escuras do inverno serão um bom momento para romancistas, dramaturgos e poetas. É fácil deixar a televisão e o rádio desligados. Já ouvimos o bastante; conhecemos as más notícias. No início dos anos 1890, quando a Irlanda também estava de
joelhos, e os padres e políticos também tinham feito o que há de pior, o poeta W. B. Yeats viu o futuro da Irlanda como cera mole, um lugar que podia ser moldado, no qual a vida da imaginação poderia vir a assumir o primeiro plano. Talvez isso seja possível de novo, talvez nossos romances, peças e poemas passem a importar mais, já que não há nada aqui, exceto preocupação, desespero e riso soturno. Essa abertura para a imaginação poderia parecer, em momentos de devaneio, uma coisa boa. Mas é um alto preço a pagar pelo que foi feito ao nosso país, ou pelo que o país fez a si mesmo. Embora o estrago, ao que me parece, esteja na superfície, e afetará apenas o nosso orgulho e o nosso bolso; o espírito das coisas aqui continua o mesmo, a cultura da Irlanda não mudou nos anos do boom e não mudará agora que temos diante de nós uma década de relativa pobreza.
[1] Hurling: literalmente, arremesso. Jogo tradicional irlandês semelhante ao hóquei (N.T.).
Paulo Roberto de Almeida
O preço da felicidade, o custo da desgraça
por Colm Tóibín
Revista piauí, agosto 2011
Em texto exclusivo para a piauí, o escritor irlandês narra a trajetória de seu país, da pobreza à prosperidade e de volta à pobreza, em apenas quinze anos
Devia ser o verão de 1965, ou talvez um ano antes, e estávamos na praia na costa leste da Irlanda. Eu tinha 9 ou 10 anos. Minha mãe e meus irmãos provavelmente tinham ido nadar e isso significa que eu estava deitado no tapete escutando a conversa do meu pai com a irmã da minha mãe. A irmã da minha mãe gostava de discutir grandes assuntos como religião e política. Agora ela estava perguntando a meu pai, que era um membro ativo do partido do governo, o Fianna Fáil – que desde 1932 esteve quase sempre no poder – se ele apoiava todas as políticas e decisões de seus correligionários. Meu pai disse que sim, e isso me pareceu certo, pois nunca imaginara que ele pudesse pensar de outro modo. Eu sabia a opinião dele sobre o outro partido – o Fine Gael, principal partido oposicionista – que era a de que você podia cumprimentar seus membros quando cruzava com eles na rua, mas se alguma vez votasse neles sua mão direita gangrenaria e seria amputada.
O pai do meu pai era um nacionalista irlandês e tinha lutado contra os britânicos. Participou da rebelião de 1916, que, mesmo sendo derrotada, tornou-se o início do fim do domínio britânico na Irlanda. Em 1922, quando finalmente se retiraram, os ingleses decidiram dividir a Irlanda, ficando com o norte do país, que tinha uma população protestante maior e não queria se separar da Grã-Bretanha. E homens como meu avô eram totalmente contrários a esse arranjo. Meu avô e seus amigos queriam tudo ou nada, uma república formada por toda a ilha; os da outra facção, até ali seus camaradas na luta contra o domínio britânico, queriam aceitar a proposta britânica de uma Irlanda dividida. As duas facções, incluindo irmãos, travaram uma feroz guerra civil. Noventa anos depois, os dois principais partidos – Fianna Fáil e Fine Gael – descendem dessa guerra.
A política de ambos os lados era nacionalista, anti-imperialista e não propriamente de esquerda. O ideário não ia além da vaga noção de uma Irlanda autossuficiente. A guerra que travaram não foi uma guerra de classes. Assim, enquanto alguns ingleses partiram e perderam suas propriedades, a burguesia irlandesa não foi afetada pela independência. Os proprietários rurais mantiveram suas terras; os lojistas, suas lojas; os banqueiros, seus bancos. E a revolução irlandesa foi também comandada principalmente por católicos. O fim da guerra civil viu crescer, ao sul da fronteira, um Estado católico insular profundamente conservador e, ao norte, numa imagem especular, um estado protestante insular profundamente conservador. O partido do meu avô, Fianna Fáil, do qual meu tio também era membro, e no qual meu pai logo ingressaria, tomou o poder no sul em 1932; tornou-se ainda mais conservador e mais católico do que o outro partido, Fine Gael. O Partido Trabalhista continuou pequeno, sempre a terceira força; o movimento sindical também era conservador, e quase não tinha influência.
O problema para o novo Estado irlandês era como proporcionar trabalho à população. Os melhores empregos eram no funcionalismo público. Quase não havia indústria; a Irlanda era ainda um país basicamente agrícola. Dos anos 20 em diante muitos jovens emigraram para a Grã-Bretanha e Estados Unidos em busca de trabalho. Em 1939 Seán Lemass, que se tornaria primeiro-ministro vinte anos mais tarde, disse que os problemas econômicos da Irlanda tinham “criado uma situação em que o desaparecimento da raça era uma possibilidade que não podia ser ignorada”. O isolamento do país se acentuou ainda mais por causa da posição de neutralidade que assumiu durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, enquanto a Europa era reconstruída com dinheiro do Plano Marshall, a Irlanda ficou, assim como a Espanha e Portugal, à margem da nova prosperidade.
Era, nos anos 50, um lugar atrasado, do qual era um alívio, quase um prazer, emigrar. Quatro em cada cinco crianças nascidas na Irlanda entre 1931 e 1941 emigraram. No final daquela década estava claro que era preciso fazer algo para modernizar o país. Em 1958 foi publicado o Primeiro Programa para a Expansão Econômica. A Irlanda tinha sido admitida no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional em 1957. A partir de 1958, o país se abriu para o investimento estrangeiro e para o capital externo, predominantemente americano.
A década de 60 foi, então, um tempo de mudanças na Irlanda. Não apenas o pensamento econômico se liberalizou, como também a influência da Igreja começou a declinar, sob pressão, por exemplo, do movimento feminista. O avanço da televisão e a suspensão da draconiana censura a livros contribuíram para a mudança. A Irlanda do Norte também começou a mudar com o avanço do movimento pelos direitos civis, que exigia maior igualdade para os católicos. Isso levou no norte à ascensão do IRA, que estava disposto a matar e mutilar pelo fim da divisão do país e pela derrubada do domínio britânico na região.
Meu pai morreu em 1967. Tinha apoiado integralmente a abertura da economia irlandesa, e eu muitas vezes me perguntei como ele teria reagido diante da violência na Irlanda do Norte. Homens da sua geração insistiam que queriam um único Estado na ilha, mas o que eles realmente queriam era estabilidade e progresso econômico ao sul da fronteira (a Irlanda foi declarada uma república em 1949). Assim, quando começou a década de 70, o sul decidiu ignorar a violência no norte e passou a olhar para fora. Queria ingressar na Comunidade Econômica Europeia ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha. Depois de prolongadas negociações e de uma vitória esmagadora num referendo, a República da Irlanda entrou na CEE, como era então chamada, em 1973.
Foi aí que começou a verdadeira mudança. Os gastos públicos aumentaram em todas as áreas. A frequência escolar triplicou. A proibição da venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional em 1973. O número de mulheres a integrar a força de trabalho duplicou em uma década. Com dinheiro europeu, novas estradas foram construídas, dando lugar a uma infraestrutura mais moderna.
Mas algumas coisas não mudaram. O político para o qual meu pai trabalhava em épocas de eleição tinha lutado na rebelião de 1916 e ainda era membro do Parlamento em 1969. Seu filho se tornou senador. Seu neto é, no momento, membro do Parlamento Europeu. Na Irlanda hoje, em 2011, o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o líder da oposição, que se tornará o próximo primeiro-ministro, são todos filhos de políticos. Não tiveram que fazer quase nada, ou sequer pensar muito, antes de entrar na política. Era como se tivessem herdado dos pais os assentos no Parlamento e a filosofia política. Em outras áreas, como a carreira médica, a carreira jurídica ou a financeira, pouco mudou. Todos vêm de famílias da alta burguesia, estudaram em escolas de elite e nutrem o sentimento de que o poder lhes é devido, e isso nenhuma transformação social ou econômica parece abalar. Ao mesmo tempo em que a Irlanda mudava e cresciam as oportunidades, o país continuava curiosamente estagnado em termos sociais, e curiosamente conservador em termos políticos, com os dois partidos da guerra civil, ambos conservadores e convencionais, garantindo a estabilidade.
Era um pouco estranho viver aqui, um lugar que não teve Renascença, que quase não teve Reforma, nem Iluminismo, nem Revolução Industrial. Somente uma história de violência, pobreza e emigração. Um lugar governado até 1922 pelo Império Britânico, seguido de quatro décadas de estagnação cultural e econômica antes da integração ao império europeu, por assim dizer, em 1973. E, no entanto, havia também um surpreendente fascínio em torno da Irlanda, em especial de Dublin, onde o mundo da escrita – o poema, o romance, a peça de teatro, o artigo de jornal – era tratado com uma espécie de reverência e seriedade que só se encontra em sociedades nas quais faltam muitas outras coisas. Isso foi algo de que o governo se deu conta no final dos anos 60, compreendendo que a imagem da Irlanda era criada por escritores e cantores, e que essa imagem era tão importante quanto as políticas econômicas da Irlanda para atrair investimento estrangeiro. Subitamente, Yeats, Joyce e Beckett ficaram na moda, e a política governamental com relação à cultura se tornou esclarecida.
Foi Margaret Thatcher quem percebeu que, na verdade, a República da Irlanda não cobiçava territórios na Irlanda do Norte. Queríamos estabilidade ali, e o fim da violência, mais ainda do que queriam os britânicos. Então, a partir de 1985, e da assinatura do Acordo Anglo-Irlandês, os governos britânico e irlandês trabalharam juntos, e esse trabalho levou, uma década depois, ao fim da campanha do IRA no norte.
Nesse ínterim, a República da Irlanda se tornou uma economia aberta, dependendo cada vez menos da agricultura e cada vez mais do investimento estrangeiro. As multinacionais estavam satisfeitas conosco: nosso movimento sindical não era combativo; tínhamos uma mão de obra escolarizada e flexível; falávamos inglês; éramos membros da União Europeia; e nossa taxação sobre os seus lucros era mais baixa que a de qualquer outro país da UE.
Em 1984 comprei uma casa em Dublin. Foi difícil. Embora eu tivesse um emprego seguro, nenhum banco, em princípio, quis me dar um empréstimo. Notei o quanto os gerentes eram cautelosos, como se mostravam desconfiados diante de qualquer coisa fora do normal. A casa ficava numa área da cidade que na época não era considerada boa, e isso os deixava intrigados a meu respeito. Finalmente consegui o empréstimo. Os juros eram altos. Em dois anos o valor da casa tinha caído 20%. E então os preços começaram a subir, mas os gerentes de banco continuaram no caminho da prudência. Em 1997 quando decidi me mudar de novo, tive um bocado de dificuldade para conseguir um segundo empréstimo, embora tivesse quase terminado de pagar o primeiro.
No início do novo século, porém, com os preços das casas subindo por toda a Irlanda, descobri que os bancos irlandeses estavam jogando dinheiro na mão da gente. Os velhos gerentes tinham se aposentado; agora havia uma geração nova e impetuosa. Para meu espanto, consegui sem dificuldade um empréstimo para comprar uma casa na frente da praia. Quase não me fizeram perguntas. E houve ainda uma sugestão para que eu pegasse mais dinheiro emprestado para investir em novas propriedades; por pura preguiça não aceitei essa oferta.
A essa altura, a Irlanda estava integrada ao euro, introduzido em janeiro de 2002. Pelo fato de a moeda ser efetivamente controlada pela Alemanha, as taxas de juros estavam e permaneceriam baixas, assim como os índices de inflação. Fazer parte do euro me deixava orgulhoso. Me lembro que estava em Ibiza com amigos escoceses em 1º de janeiro de 2002 e usei meu cartão naquela manhã para sacar cédulas novinhas e me gabar de que a Irlanda, como membro do euro, era mais europeia que a Grã-Bretanha.
Se a gente não parasse para pensar, o euro parecia uma boa ideia. Oferecia estabilidade, e isso significava que a Europa poderia competir com os Estados Unidos, que o euro poderia se tornar uma moeda internacional mais poderosa que o dólar. Contribuía para o sentimento de que a Europa era agora um lugar sem barreiras, onde era possível ir de carro de Portugal até o leste da Alemanha e depois descer para a Itália sem trocar dinheiro e sem ser parado pela polícia em nenhuma fronteira.
O problema era que o euro era regulado pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, mas cada Estado tinha sua própria política econômica, suas próprias forças e fraquezas. Ficou claro desde o começo que alguns países no sistema do euro – Alemanha, França, Holanda – tinham economias muito mais fortes do que outros – Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia. Esperava-se que a regulação e a prosperidade crescente criassem aos poucos uma Europa mais equilibrada, e que o euro acelerasse esse processo.
No início, operaram-se maravilhas na Irlanda, com a ajuda de um aumento da atividade multinacional norte-americana. Atingimos pleno emprego. A todo momento eu via estatísticas demonstrando que a Irlanda tinha se tornado um país de sucesso, uma lição para o resto do mundo. Políticos, incluindo alguns dos maiores idiotas que a Irlanda já produziu, competiam entre si reivindicando o crédito pelo que ficaria conhecido como o Tigre Celta.
E naqueles mesmos anos outras mudanças estavam ocorrendo. Em 1988, a Corte Europeia de Direitos Humanos ordenou que o governo irlandês mudasse a lei contra o homossexualismo. Nos anos 90, a proibição do divórcio também foi retirada da Constituição. (A proibição do aborto, inserida nos anos 80, permaneceu.) E também teve início algo inimaginável. O Estado enfrentou a Igreja, que até então era todo-poderosa, sentindo-se acima da lei. Padres foram acusados, condenados e presos por abuso sexual de menores. No começo do novo século, apareceram muitos relatórios oficiais provando que o abuso e a violência selvagem cometidos por padres e membros das ordens religiosas contra aqueles sob sua guarda – frequentemente órfãos ou crianças pobres – tinham sido sistemáticos e encobertos com cuidado pelas autoridades eclesiásticas. As pessoas estavam furiosas com a Igreja. De repente, o poder da Igreja Católica na Irlanda virou coisa do passado.
Assim, à medida que a primeira década do século XXI avançava, as pessoas começaram a se perguntar se essa onda de prosperidade e secularização transformaria a Irlanda e afetaria, por exemplo, a literatura irlandesa, se nos faria produzir um tipo diferente de romance ou poema ou peça de teatro, se tornaria mais leve o nosso tom, ou mais comerciais as nossas obras. Já que tudo tinha se tornado comercial, por que não a cultura também?
Seria possível que a Irlanda fosse tão frágil que a chegada da prosperidade pudesse mudar fundamentalmente a sua cultura? Naqueles anos, eu fiquei à espreita dessa possibilidade. Vi como os novos-ricos se tornaram extravagantes e vulgares, e como o consumo ostensivo parecia adicionar uma aura de histeria à atmosfera do país. Mas isso era só na superfície, entre os poucos que podiam se dar ao luxo de ter helicópteros particulares ou motoristas. Para o resto do país, o dinheiro trouxe prazer e um certo conforto. Notei, ao viajar com frequência aos Estados Unidos, que os aviões estavam todos lotados, não de turistas americanos, nem de empresários irlandeses, mas de consumidores irlandeses com o bolso cheio de cartões de crédito na viagem de ida e sacolas cheias de compras reluzentes na viagem de volta. A maioria era gente irlandesa comum e notei o quanto eles se divertiam, como imediatamente, a exemplo dos imigrantes do passado, eles encontravam em Nova York um bar, um restaurante ou um hotelzinho, geralmente administrado por irlandeses, onde se sentiam à vontade.
Em casamentos e enterros, eu prestava atenção para ver se notava alguma diferença. As festas de casamento eram maiores, gastava-se mais, e a vida era melhor porque a maioria dos convidados morava na Irlanda, e não tinha que viajar da América ou da Grã-Bretanha ou da Austrália para estar presente. Mas os homens se encostavam no balcão do bar do mesmo jeito de sempre; a música continuava péssima, e os chapéus que algumas mulheres usavam talvez fossem mais caros, mas revelavam o mesmo mau gosto de sempre. As pessoas ficavam bêbadas do mesmo jeito. Isso ao menos não tinha mudado, ainda que agora bebessem mais vinho e menos Guinness.
Algumas das mudanças vinham de longa data. Desde o final dos anos 60, a frequência das missas semanais vinha caindo; continuou a cair. Desde o final da década de 60, os supermercados tinham mais produtos estrangeiros – mais massa, patês, azeite de oliva – e a dieta irlandesa continuava a se aproximar da dieta da França ou da Espanha. Nos enterros, especialmente na cidadezinha onde nasci e cresci, não parecia ter havido mudança alguma; as pessoas se comportavam nas pequenas comunidades exatamente da mesma maneira, com a mesma reverência pelo corpo, o mesmo zelo pelos parentes e amigos, a mesma seriedade diante da morte.
E ainda que as oportunidades de ganhar muito dinheiro aumentassem, a ideia de se tornar escritor, ator ou músico ainda merecia profundo respeito. Em 2006 fui indicado pelo governo para o Conselho das Artes e examinei todos os pedidos de subvenção. Era como se nada tivesse acontecido. Pequenas companhias teatrais ainda estavam sendo criadas, trabalhando não por dinheiro, nem sequer pela fama. Jovens músicos, tanto na música tradicional irlandesa quanto na clássica, continuavam a surgir. E o mais estranho, talvez, foi que a geração que chegou à idade adulta com essa nova prosperidade produziu um bom número de jovens escritores – Claire Keegan, Paul Murray, Kevin Barry, Clare Kilroy, Christian O’Reilly – que exploravam os mesmos temas de Joyce ou Beckett, Edna O’Brien e John Banville. Escreviam sobre famílias irlandesas e infância irlandesa, a escuridão e o isolamento da Irlanda. Usavam um idioma que haviam herdado; e escreviam principalmente para o seu próprio país e eram lidos avidamente.
Eu me perguntava então se o dinheiro que veio nos anos 90 e durou por uns quinze anos não teria servido apenas para tornar as pessoas mais felizes, dando a elas um pouco mais de segurança. Parecia que a prosperidade que chegou à Irlanda significava que pais e avós podiam ficar tranquilos sabendo que a nova geração permaneceria no país, encontraria trabalho, criaria raízes, e isso os deixava felizes. Além disso, neste país do norte com seus longos invernos e chuvosos verões, todos adoram viajar para o sul, e naqueles anos, nas manhãs de sábado, havia uma felicidade palpável no aeroporto, de onde famílias inteiras partiam para a Grécia, Portugal ou Espanha. Às vezes, porém, era tudo excessivo: os novos restaurantes, de preços abusivos e comida não muito boa, ficavam lotados todas as noites; as pessoas pareciam sentir prazer em atingir o limite de seus cartões de crédito; o preço das casas tornou-se tópico de intermináveis discussões; os irlandeses compravam apartamentos na Espanha e em Portugal sem se preocupar em aprender uma palavra da língua local.
Mas uma coisa fundamental não mudou. Entrando em qualquer bar de Dublin, via-se que continuavam as conversas e risadas, a sensação quase de performance, o modo caloroso e divertido como as pessoas se relacionavam umas com as outras – um clima muito diferente do comportamento frio num bar de Londres ou de Paris. Observando turistas irlandeses num aeroporto nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, via-se nos seus rostos uma profunda desconfiança em relação às autoridades constituídas, uma espécie de retraimento, uma falta de segurança. A música que se ouvia naqueles anos, os poemas e romances escritos, as peças encenadas, tudo isso era feito com a mesma sensação de que a palavra era importante. Também na Irlanda daqueles anos o esporte permaneceu no centro das coisas, incluindo os dois esportes nacionais amadores: o hurling[1] e o futebol gaélico. Era possível assistir a uma partida, mesmo em Dublin, e ter a impressão de ter voltado aos anos 50.
Em outras palavras, o dinheiro era só dinheiro, e ao mesmo tempo em que as pessoas gastavam muito, e viviam sem prudência, elas também usufruíam dessa prosperidade, da segurança que ela trazia, das viagens ao exterior, das reuniões familiares, das roupas vistosas, das refeições em restaurantes, das casas de férias, do sentimento vertiginoso de que a vida nunca tinha sido melhor. Mas quem examinasse com cuidado aqueles anos descobriria facilmente que a nova riqueza na Irlanda era quase ilusória e não duraria.
Em 2006 fui convidado a debater essa relação entre o milagre econômico irlandês e a cultura irlandesa num simpósio nos Estados Unidos. Decidi observar primeiro a anatomia do milagre econômico, e algumas coisas que descobri me chocaram. Eis o que escrevi na época: “Um grande volume de atividade econômica na Irlanda está concentrado não no comércio ou na consolidação da produção, mas na construção civil. A Irlanda é, de acordo com o Bank of Ireland, a segunda nação mais rica do mundo, atrás do Japão. E, observa o banco, um aspecto crucial dessa riqueza é que é riqueza de primeira geração, criada nos últimos dez anos. Se analisarmos a riqueza da Irlanda, veremos que não é como a riqueza em outros lugares. Os irlandeses estão gastando e tomando empréstimos à vontade, mas não investem em áreas como pesquisa e desenvolvimento, que criariam mais prosperidade no futuro, mas em imóveis, que dependem dos preços do mercado imobiliário para manter seu valor.”
Os irlandeses estavam viajando muito, mas poucos iam para a Alemanha, e pouquíssimos chegaram a compreender que a Alemanha tinha mudado, e que essa mudança seria prejudicial para o futuro da Irlanda quando a economia irlandesa entrasse em dificuldades. Os alemães do Leste ingressaram na UE ao mesmo tempo em que se integraram à Alemanha Ocidental. Diferentemente dos húngaros, digamos, ou dos tchecos, entraram na UE sem pensar duas vezes. Concentraram-se unicamente nos benefícios que a reunificação traria para eles. A Alemanha, por sua vez, concentrou-se em fazer a reunificação funcionar. De uma hora para outra, a Alemanha Ocidental ganhou uma nova população, em boa parte qualificada, e isso significava que os salários baixariam ou ficariam estáveis. O governo alemão tomou o cuidado de não superaquecer a economia; os impostos continuaram elevados. Os bancos alemães, apesar das baixas taxas de juros, não franquearam seus cofres aos investidores alemães. Eles emprestaram a outros bancos.
Naqueles anos, por todo o continente, a outrora poderosa ideia de que a Europa era uma cultura única e deveria se tornar cada vez mais uma economia única estava murchando. Acreditava-se que a diluição da soberania nacional tinha ocorrido rápido demais, sem debate suficiente. Havia uma visão de que a Europa era um superestado, mas não uma democracia, que sua burocracia de salários excessivos não prestava contas a ninguém, e que cada Estado nacional tinha direitos e tradições que mereciam ser protegidos. Na Alemanha, disseminou-se a opinião de que não era mais tarefa dos países ricos ajudar os países pobres.
Em 2008, quando o governo americano permitiu que o banco de investimentos Lehman Brothers falisse, o Banco Central Europeu decidiu que isso não aconteceria com os seus bancos. Os riscos eram grandes demais. Na Irlanda, um banco em especial – o Anglo Irish Bank – vinha crescendo muito, especialmente na área de crédito imobiliário. E devido à frouxa regulamentação na Irlanda e, ao que parece, a uma regulamentação quase inexistente por parte da UE, o Anglo Irish estava arriscando demais. Não obstante, os seus diretores eram tratados como príncipes num país sem realeza. Escrevia-se sobre eles como se fossem lordes. Dizia-se que eram eles que tinham a capacidade de levar a Irlanda para o futuro, onde se veria livre da pobreza e da emigração, livre de seu passado de colônia.
Assim, quando os banqueiros procuraram o governo em setembro de 2008 para dizer que precisavam desesperadamente de ajuda estatal, o governo tinha dois motivos para ouvi-los. Primeiro, o Banco Central Europeu tinha deixado claro que nenhum banco deveria falir, e os políticos irlandeses não tinham experiência alguma em finanças internacionais ou interesse algum em desafiar uma organização tão venerável, sediada na Alemanha. Segundo, os políticos gostavam dos banqueiros e os admiravam, e não desconfiaram que as cifras que lhes eram apresentadas estavam completamente erradas. Não sabiam que, se o Estado irlandês salvasse do naufrágio os seus bancos, os custos representariam o dobro da receita anual com impostos. E inocentemente se dispuseram a garantir os bancos.
Nesse ínterim, a bolha imobiliária tinha estourado. A receita governamental em 2009 foi de 35 bilhões, enquanto os gastos foram de 55 bilhões. A Irlanda precisaria pedir dinheiro emprestado em 2010 e nos três ou quatro anos seguintes. O país estava vulnerável porque o custo de salvar os bancos era inimaginável; os políticos pareciam temer divulgar a cifra e os banqueiros obviamente também não a revelavam. (Os banqueiros agora tinham caído em desgraça. Segundo consta, nem em partida de golfe alguém queria ser visto ao lado deles.)
Num ataque especulativo ao euro, a Irlanda era o elo mais fraco. A Grécia já tinha sido salva do naufrágio, para grande consternação do contribuinte alemão. E logo, parecia, tanto a Espanha como Portugal iriam precisar de ajuda. Os bancos irlandeses estavam sobrevivendo com dinheiro do Banco Central Europeu; a Comissão Europeia também tinha um fundo para ajudar países necessitados, mas isso traria consigo o Fundo Monetário Internacional, como ocorrera na Grécia, e a ajuda só seria fornecida sob as mais severas condições. A chegada da Comissão e do FMI significaria que a Irlanda, poucos anos antes um dos países mais ricos do mundo, era agora uma economia moribunda.
Os políticos continuavam a se comportar como se fossem competentes. Estavam dia e noite no rádio e na televisão, exalando controle e uma estranha certeza de que ainda tinham legitimidade para comandar. Lentamente, a população despertou para o que estava acontecendo. A ira contra o Fianna Fáil, o partido de meu pai e meu avô, não é corriqueira. Quando a eleição vier, o partido será dizimado. Porque representavam, desde os anos 60, tanto o patriotismo como o pragmatismo, e porque fracassaram em ambos os campos. Eles se tornaram alvo fácil depois de cederem a soberania da Irlanda ao FMI, uma soberania pela qual lutaram os nossos antepassados.
Enquanto isso, a emigração recomeçou, e os jovens estão se mudando para a Grã-Bretanha, a Austrália e o Canadá. Estamos perdendo mais uma geração. Mas estamos também perplexos, com um misto de choque e vergonha. Como pudemos acreditar que um pequeno país como a Irlanda, com uma história de pobreza e fracasso, pudesse ser rico e permanecer rico? Por que compramos casas que custavam tão caro e agora valem tão pouco? Como confiamos que a Europa viria nos salvar, sem pensar que viria também nos punir por nossa insensatez? Como confiamos no Fianna Fáil, cujos ministros não sabem coisa alguma de economia, e entraram na política só por causa de suas famílias?
As noites escuras do inverno serão um bom momento para romancistas, dramaturgos e poetas. É fácil deixar a televisão e o rádio desligados. Já ouvimos o bastante; conhecemos as más notícias. No início dos anos 1890, quando a Irlanda também estava de
joelhos, e os padres e políticos também tinham feito o que há de pior, o poeta W. B. Yeats viu o futuro da Irlanda como cera mole, um lugar que podia ser moldado, no qual a vida da imaginação poderia vir a assumir o primeiro plano. Talvez isso seja possível de novo, talvez nossos romances, peças e poemas passem a importar mais, já que não há nada aqui, exceto preocupação, desespero e riso soturno. Essa abertura para a imaginação poderia parecer, em momentos de devaneio, uma coisa boa. Mas é um alto preço a pagar pelo que foi feito ao nosso país, ou pelo que o país fez a si mesmo. Embora o estrago, ao que me parece, esteja na superfície, e afetará apenas o nosso orgulho e o nosso bolso; o espírito das coisas aqui continua o mesmo, a cultura da Irlanda não mudou nos anos do boom e não mudará agora que temos diante de nós uma década de relativa pobreza.
[1] Hurling: literalmente, arremesso. Jogo tradicional irlandês semelhante ao hóquei (N.T.).
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Manoel Bonfim: America Latina, males de origem
Eis o quadro que Manoel Bomfim (1868-1932) pinta dos primórdios desse nosso país "com tradição de liberdade":
"A AMÉRICA LATINA: Males de Origem", 1905, Manoel Bonfim
"Como se fez a colonização? As terras são distribuídas discricionariamente, ou delas se apossam os colonos ávidos, aos quais a metrópole doa os índios, e, depois, vende negros, para que produzam muito açúcar e muito ouro, fonte dos tributos cobiçados. Ao mesmo tempo, para garantir a cobrança desses tributos e tornar efetivos os seus privilégios, os governos da metrópole mandam para cá representantes, espalham por toda a colônia uma rede de agentes, opressores e vorazes, impostos como os diretores da vida pública; e, desde logo, é defeso às novas sociedades o organizarem-se espontaneamente, segundo os seus interesses e inclinações. Mas, como a metrópole não tem outros intentos senão cobrar os tributos e impedir que as colônias possam furtar-se a não nos pagar - como este é o seu único programa, o governo da coroa deixa ao colono toda a plenitude de ação para o mal; ele é livre de fazer o que quiser, contanto que pague e não pense em modificar o regime social e político. Assim, cada colono, sem freios aos instintos egoísticos, organizou o seu domínio em feudo. São caricaturas de senhores medievais - um feudalismo vilão, sobre uma vassalagem de negros escravos. Nos interstícios dos feudos, uma população que, de ignorante e embrutecida, voltou à condição do selvagem primitivo.
O Estado tem por função, apenas, cobrar e coagir e punir aqueles que se neguem a pagar ao governo centralizador, absolutista, monopolizador. A justiça aparece para condenar os que se rebelam contra o Estado ou contra os parasitas criados e patrocinados por ele (Historiando a revolta de Campos dos Goitacazes, escreve um cronista: 'Impunham os vereadores, criaturas dos donatários, multas pecuniárias e penas de prisão aos moradores por divertimentos e atos inocentes da vida'), Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: 'Se a guerra é antes um sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um princípios'. Esse instinto é o parasitismo, e na colônia é que ele se tornou, por uma vez, o inspirador único de todas as justiças.
Fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem garantias, nem escolas, nem obras de interesse público... nada que represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos.
O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição, com que desde o primeiro momento se apresenta ele às novas sociedades, tem uma influência decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades: o Estado é o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança... Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico - tirânico e espoliador. (....) As autoridades não têm nenhuma afinidade com as populações naturais, são-lhes inimigas, se bem que as conheçam mal; não se cuida nem de privar com os povos, nem de estudar suas tendências e necessidades. 'Os funcionários vinham sempre da metrópole. Evitava-se com muito cuidado admitir em empregos até os próprios descendentes de europeus, nascidos na América... e foi assim que se gerou entre os povos das colônias e das metrópoles essa rivalidade, que em breve se converteu em profunda aversão'. Os representantes do Estado são em rigor os caixeiros da coroa, na gerência das fazendas de ultramar. Aqui e ali, as novas populações, ressuscitando das tradições democratas das cúrias e municípios ibéricos, ensaiavam um regime comunal - câmaras municipais e ajuntamentos; mas esta vida política autônoma é, geralmente, perturbada, entravada, abafada, pelo poder absorvente, centralizador, sem contraste, dos agentes da metrópole. Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa - empobrecê-las, e um pensamento exclusivo - obstar que elas progredissem e pudessem, um dia, organizar-se livremente, como nações emancipadas. Não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes; não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto - era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia. Estava, de antemão, condenado a ser destruído sem reserva, pois se achava em oposição aos interesses reais das novas populações, e não podia servir nem mesmo como ponto de partida para uma organização política definitiva. Fora melhor, sem dúvida, que vingasse o primeiro sistema da coroa de Portugal - entregar, desde o início, as colônias a si mesmas - pagando-se-lhe, embora, os adorados tributos. Esses povos que se viessem formando achariam, sem dúvida, uma forma de organização social mais de acordo com as suas necessidades; o instinto de conservação os levaria a constituírem-se de modo conveniente. Estimulados pelos interesses próprios, seguindo as tendências naturais e as novas condições de meio, as nacionalidades nascentes teriam entrado, desde o primeiro momento, no caminho da organização social e política definitiva.
* * * *
"(...) No dia da independência, as novas nacionalidades se acharam sem indústria, sem comércio nacional, sem capitais, sem riqueza, sem gente educada no trabalho livre, sem conhecimento do mundo.
Sob o ponto de vista econômico, estas sociedades compreendiam três categorias de gentes, nitidamente distintas: um mundo de escravos, degradados, que só conheciam da vida o açoite e o tronco; um mundo de ignorantes, vivendo do trabalho dos escravos; e, finalmente, uma população de miseráveis, que germinou entre uma e outra, vivendo sem necessidades, como o selvagem primitivo, ignorante como ele, imprevidente, descuidosa, apática, nula - era a massa popular. O calor brando de um céu benigno, a feracidade dos rios e das selvas garantiam-lhe a existência. - E queriam que ela se fosse meter nos eitos, pedir para trabalhar e engordar os senhores, pelo preço de uma medida de farinha e uma libra de carne!... Condenam-no, porque ele - o trabalhador nacional - não ia disputar a escravidão ao escravo!... Em verdade, essa massa popular não trabalhava, e ainda hoje trabalha mal. Não trabalhava, então, porque não sabia trabalhar para si, e porque - é natural e humano - não queria, nem tinha necessidades de ir fazer-se escrava. Quando todo o trabalho nacional era feito por negros e índios cativos, quando era possível haver escravo para tudo, não havia lugar para o trabalhador livre, a menos que ele não quisesse trabalhar nas mesmas condições e pelo mesmo preço que o escravo - um salário tão insignificante quanto o custo da alimentação do negro, e a mesma obediência ao senhor. Quando não, este ia ao mercado e trazia o negro. O trabalhador livre ficava de lado. Foi assim que, de geração em geração, ele foi arredado do trabalho assalariado.
O regime parasitário impunha a escravidão. E porque o regime colonial era o do puro parasitismo, foi imposta às novas sociedades uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios, um regime retardatário, opressivo, corrupto e extenuante. Ao mesmo tempo, condenavam-se as colônias a ser o campo de exploração de um mundo de intermediários, que vinham e iam numa corrente contínua, drenando para a metrópole toda a riqueza aqui produzida. Eis a razão por que, exânime, embrutecida, a América do Sul se achou, na hora da independência, como um mundo onde tudo estava por fazer: eram uns vinte milhões de homens, desunidos, assanhados, pobres, espalhados por estas vastidões, tendo notícia de que existe civilização, padecendo todos os desejos de possuí-la, mas carecendo refazer toda a vida social, política e intelectual, a começar pela educação do trabalho e pela instrução do abc.
* * *
(...) Nos campos, as gentes não se fundem, continuam distintas as três classes - o senhor, o escravo, e a mestiçagem livre; mas, pelo menos ali, elas se afeiçoam à terra, se nacionalizam. Nas cidades, não. À proporção que se passam os anos, e que vai surgindo essa nova população - nativa, desejosa de viver e pronta a disputar à grande massa de adventícios um lugar na vida, à proporção que ela vai engrossando e reclamando o que lhe é de direito, mais estrangeiros, mais hostis e tirânicos se vão tornando os representantes das metrópoles, unidos num sentimento único, funcionários e intermediários. Breve é a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus direitos, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as posições - e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem, miseráveis, desabrigadas de odo o conforto, ignorantes e pobres, em em todo caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram, aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas. Querem viver, querem as posições, não se conformam à única situação que lhes é oferecida - ir disputar, no eito ou na cozinha, o salário do escravo. 'Vão trabalhar', dizia o reinol do íntimo das suas banhas, no canto do balcão onde ele passou a vida sentado, a ver entrar e sair a freguesia, inativo e improdutivo como um franciscano, - 'Vão trabalhar como eu', repete ele aos naturais, que reclamam entrada na vida, como se houvesse uma brecha por onde estranhos pudessem penetrar o reduto em que eles fecharam a vida econômica e política das colônias, como se fosse possível trabalhar entre escravos, a não ser com os queixos para devorar o que estes hajam produzido!...
* * *
Lutas contínuas, trabalho escravo, estado tirânico e espoliador - qual seria o efeito de tudo isto sobre o caráter das novas nacionalidades? Perversão do senso moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos.
Neste sistema de colonização tinham achado as metrópoles o ideal de vida política e econômica; manter as colônias sob o mesmo regime era a garantia da subsistência. Todos - Estado e Igreja, nobres e mercadores, senhores e tropas - todos se mantinham solidários, absolutamente unificados; quando um desmoronasse, os outros viriam abaixo com certeza. Ora, pelo resto do mundo, a ciência e a filosofia vinham despertando as consciências; os privilégios e as injustiças sentiam-se ameaçadas; então, redobraram-se os expedientes para embrutecer e degradas definitivamente as gentes das colônias, de forma a tornar para sempre impossível a redenção intelectual e moral destes povos. Os processos de cultura da ignorância e de seleção às avessas, empregados pelos jesuítas e pela Inquisição, na metrópole, foram transportados para as colônias. A Espanha chegou a proibir, mais de uma vez, a venda de livros aos súditos da América; nos momentos de crise, só o fato de saber ler e escrever era motivo de suspeição. Não se trata de um programa, reacionário embora, despótico, mas inteligentemente elaborado e conscientemente aplicado; não, eram medidas parciais, detalhes de opressão, vexames sucessivos, à medida que se fazia preciso defender este ou aquele privilégio, manter esta ou aquela iniqüidade, garantir este ou aquele parasita. Disparatadas na aparência, essas resoluções tinham, porém, uma certa unidade de efeitos - a oposição ao progresso. Era uma reação instintiva - o instinto cego e feroz da própria conservação, que unificava, numa política de imobilismo irredutível, estes atos incoerentes de forma, estúpidos, quase inconscientes."
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Sobre Manoel Bonfim, no artigo http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_priori.htm, destaco o seguinte:
"Embora bebesse nas fontes do marxismo, Bomfim não era um revolucionário strictu sensu, que dedicava a vida à luta contra a burguesia. Ele era um democrata. E buscou no marxismo não um guia de ação revolucionária, mas um “método de interpretação da realidade social, ao qual acrescentou um profundo e constante amor pelo Brasil e por sua gente” (AGUIAR, 2000, p. 41)."
"A AMÉRICA LATINA: Males de Origem", 1905, Manoel Bonfim
"Como se fez a colonização? As terras são distribuídas discricionariamente, ou delas se apossam os colonos ávidos, aos quais a metrópole doa os índios, e, depois, vende negros, para que produzam muito açúcar e muito ouro, fonte dos tributos cobiçados. Ao mesmo tempo, para garantir a cobrança desses tributos e tornar efetivos os seus privilégios, os governos da metrópole mandam para cá representantes, espalham por toda a colônia uma rede de agentes, opressores e vorazes, impostos como os diretores da vida pública; e, desde logo, é defeso às novas sociedades o organizarem-se espontaneamente, segundo os seus interesses e inclinações. Mas, como a metrópole não tem outros intentos senão cobrar os tributos e impedir que as colônias possam furtar-se a não nos pagar - como este é o seu único programa, o governo da coroa deixa ao colono toda a plenitude de ação para o mal; ele é livre de fazer o que quiser, contanto que pague e não pense em modificar o regime social e político. Assim, cada colono, sem freios aos instintos egoísticos, organizou o seu domínio em feudo. São caricaturas de senhores medievais - um feudalismo vilão, sobre uma vassalagem de negros escravos. Nos interstícios dos feudos, uma população que, de ignorante e embrutecida, voltou à condição do selvagem primitivo.
O Estado tem por função, apenas, cobrar e coagir e punir aqueles que se neguem a pagar ao governo centralizador, absolutista, monopolizador. A justiça aparece para condenar os que se rebelam contra o Estado ou contra os parasitas criados e patrocinados por ele (Historiando a revolta de Campos dos Goitacazes, escreve um cronista: 'Impunham os vereadores, criaturas dos donatários, multas pecuniárias e penas de prisão aos moradores por divertimentos e atos inocentes da vida'), Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: 'Se a guerra é antes um sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um princípios'. Esse instinto é o parasitismo, e na colônia é que ele se tornou, por uma vez, o inspirador único de todas as justiças.
Fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem garantias, nem escolas, nem obras de interesse público... nada que represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos.
O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição, com que desde o primeiro momento se apresenta ele às novas sociedades, tem uma influência decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades: o Estado é o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança... Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico - tirânico e espoliador. (....) As autoridades não têm nenhuma afinidade com as populações naturais, são-lhes inimigas, se bem que as conheçam mal; não se cuida nem de privar com os povos, nem de estudar suas tendências e necessidades. 'Os funcionários vinham sempre da metrópole. Evitava-se com muito cuidado admitir em empregos até os próprios descendentes de europeus, nascidos na América... e foi assim que se gerou entre os povos das colônias e das metrópoles essa rivalidade, que em breve se converteu em profunda aversão'. Os representantes do Estado são em rigor os caixeiros da coroa, na gerência das fazendas de ultramar. Aqui e ali, as novas populações, ressuscitando das tradições democratas das cúrias e municípios ibéricos, ensaiavam um regime comunal - câmaras municipais e ajuntamentos; mas esta vida política autônoma é, geralmente, perturbada, entravada, abafada, pelo poder absorvente, centralizador, sem contraste, dos agentes da metrópole. Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa - empobrecê-las, e um pensamento exclusivo - obstar que elas progredissem e pudessem, um dia, organizar-se livremente, como nações emancipadas. Não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes; não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto - era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia. Estava, de antemão, condenado a ser destruído sem reserva, pois se achava em oposição aos interesses reais das novas populações, e não podia servir nem mesmo como ponto de partida para uma organização política definitiva. Fora melhor, sem dúvida, que vingasse o primeiro sistema da coroa de Portugal - entregar, desde o início, as colônias a si mesmas - pagando-se-lhe, embora, os adorados tributos. Esses povos que se viessem formando achariam, sem dúvida, uma forma de organização social mais de acordo com as suas necessidades; o instinto de conservação os levaria a constituírem-se de modo conveniente. Estimulados pelos interesses próprios, seguindo as tendências naturais e as novas condições de meio, as nacionalidades nascentes teriam entrado, desde o primeiro momento, no caminho da organização social e política definitiva.
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"(...) No dia da independência, as novas nacionalidades se acharam sem indústria, sem comércio nacional, sem capitais, sem riqueza, sem gente educada no trabalho livre, sem conhecimento do mundo.
Sob o ponto de vista econômico, estas sociedades compreendiam três categorias de gentes, nitidamente distintas: um mundo de escravos, degradados, que só conheciam da vida o açoite e o tronco; um mundo de ignorantes, vivendo do trabalho dos escravos; e, finalmente, uma população de miseráveis, que germinou entre uma e outra, vivendo sem necessidades, como o selvagem primitivo, ignorante como ele, imprevidente, descuidosa, apática, nula - era a massa popular. O calor brando de um céu benigno, a feracidade dos rios e das selvas garantiam-lhe a existência. - E queriam que ela se fosse meter nos eitos, pedir para trabalhar e engordar os senhores, pelo preço de uma medida de farinha e uma libra de carne!... Condenam-no, porque ele - o trabalhador nacional - não ia disputar a escravidão ao escravo!... Em verdade, essa massa popular não trabalhava, e ainda hoje trabalha mal. Não trabalhava, então, porque não sabia trabalhar para si, e porque - é natural e humano - não queria, nem tinha necessidades de ir fazer-se escrava. Quando todo o trabalho nacional era feito por negros e índios cativos, quando era possível haver escravo para tudo, não havia lugar para o trabalhador livre, a menos que ele não quisesse trabalhar nas mesmas condições e pelo mesmo preço que o escravo - um salário tão insignificante quanto o custo da alimentação do negro, e a mesma obediência ao senhor. Quando não, este ia ao mercado e trazia o negro. O trabalhador livre ficava de lado. Foi assim que, de geração em geração, ele foi arredado do trabalho assalariado.
O regime parasitário impunha a escravidão. E porque o regime colonial era o do puro parasitismo, foi imposta às novas sociedades uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios, um regime retardatário, opressivo, corrupto e extenuante. Ao mesmo tempo, condenavam-se as colônias a ser o campo de exploração de um mundo de intermediários, que vinham e iam numa corrente contínua, drenando para a metrópole toda a riqueza aqui produzida. Eis a razão por que, exânime, embrutecida, a América do Sul se achou, na hora da independência, como um mundo onde tudo estava por fazer: eram uns vinte milhões de homens, desunidos, assanhados, pobres, espalhados por estas vastidões, tendo notícia de que existe civilização, padecendo todos os desejos de possuí-la, mas carecendo refazer toda a vida social, política e intelectual, a começar pela educação do trabalho e pela instrução do abc.
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(...) Nos campos, as gentes não se fundem, continuam distintas as três classes - o senhor, o escravo, e a mestiçagem livre; mas, pelo menos ali, elas se afeiçoam à terra, se nacionalizam. Nas cidades, não. À proporção que se passam os anos, e que vai surgindo essa nova população - nativa, desejosa de viver e pronta a disputar à grande massa de adventícios um lugar na vida, à proporção que ela vai engrossando e reclamando o que lhe é de direito, mais estrangeiros, mais hostis e tirânicos se vão tornando os representantes das metrópoles, unidos num sentimento único, funcionários e intermediários. Breve é a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus direitos, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as posições - e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem, miseráveis, desabrigadas de odo o conforto, ignorantes e pobres, em em todo caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram, aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas. Querem viver, querem as posições, não se conformam à única situação que lhes é oferecida - ir disputar, no eito ou na cozinha, o salário do escravo. 'Vão trabalhar', dizia o reinol do íntimo das suas banhas, no canto do balcão onde ele passou a vida sentado, a ver entrar e sair a freguesia, inativo e improdutivo como um franciscano, - 'Vão trabalhar como eu', repete ele aos naturais, que reclamam entrada na vida, como se houvesse uma brecha por onde estranhos pudessem penetrar o reduto em que eles fecharam a vida econômica e política das colônias, como se fosse possível trabalhar entre escravos, a não ser com os queixos para devorar o que estes hajam produzido!...
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Lutas contínuas, trabalho escravo, estado tirânico e espoliador - qual seria o efeito de tudo isto sobre o caráter das novas nacionalidades? Perversão do senso moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos.
Neste sistema de colonização tinham achado as metrópoles o ideal de vida política e econômica; manter as colônias sob o mesmo regime era a garantia da subsistência. Todos - Estado e Igreja, nobres e mercadores, senhores e tropas - todos se mantinham solidários, absolutamente unificados; quando um desmoronasse, os outros viriam abaixo com certeza. Ora, pelo resto do mundo, a ciência e a filosofia vinham despertando as consciências; os privilégios e as injustiças sentiam-se ameaçadas; então, redobraram-se os expedientes para embrutecer e degradas definitivamente as gentes das colônias, de forma a tornar para sempre impossível a redenção intelectual e moral destes povos. Os processos de cultura da ignorância e de seleção às avessas, empregados pelos jesuítas e pela Inquisição, na metrópole, foram transportados para as colônias. A Espanha chegou a proibir, mais de uma vez, a venda de livros aos súditos da América; nos momentos de crise, só o fato de saber ler e escrever era motivo de suspeição. Não se trata de um programa, reacionário embora, despótico, mas inteligentemente elaborado e conscientemente aplicado; não, eram medidas parciais, detalhes de opressão, vexames sucessivos, à medida que se fazia preciso defender este ou aquele privilégio, manter esta ou aquela iniqüidade, garantir este ou aquele parasita. Disparatadas na aparência, essas resoluções tinham, porém, uma certa unidade de efeitos - a oposição ao progresso. Era uma reação instintiva - o instinto cego e feroz da própria conservação, que unificava, numa política de imobilismo irredutível, estes atos incoerentes de forma, estúpidos, quase inconscientes."
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Sobre Manoel Bonfim, no artigo http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_priori.htm, destaco o seguinte:
"Embora bebesse nas fontes do marxismo, Bomfim não era um revolucionário strictu sensu, que dedicava a vida à luta contra a burguesia. Ele era um democrata. E buscou no marxismo não um guia de ação revolucionária, mas um “método de interpretação da realidade social, ao qual acrescentou um profundo e constante amor pelo Brasil e por sua gente” (AGUIAR, 2000, p. 41)."
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