Politizando a Ciência
por Claudio Téllez
Publicado em 22 de junho de 2006
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A razão é uma faculdade humana que nos permite compreender certas coisas dentro de certos limites. Quem atribui à razão e ao conhecimento científico uma aura de infalibilidade não compreende o que é de fato a ciência e abraça uma postura racionalista ingênua. Enquanto essa postura se restringe à esfera individual, não há maiores problemas. Infelizmente, é cada vez mais comum que essa imagem distorcida da ciência seja propalada pelos meios informativos e acadêmicos para fins de ativismo político e ideológico.
O nosso impulso imediato e natural, diante de qualquer problema que se nos apresente, é lançar mão da nossa razão para arbitrar os processos investigativos. Devemos, entretanto, compreender que nem tudo está ao alcance da nossa razão e devemos ter consciência de que o entendimento absoluto de muitos fenômenos não é a verdadeira pretensão do cientista. O conhecimento científico não é totalmente seguro e nem pretende sê-lo. A ciência não produz verdades e nem pretende produzi-las. Livre dessas pretensões, a ciência nos proporciona frutos valiosos, avanços e benefícios que facilitam as nossas vidas, como por exemplo medicamentos que ajudam a combater o sofrimento humano, ferramentas tecnológicas que nos permitem usufruir de mais conforto no cotidiano, instrumentos teóricos e práticos que nos levam a conhecer mais acerca do muito grande e do muito pequeno, seja para aplicações imediatas ou seja para o puro deleite do nosso intelecto.
Platão nos diz, em sua “Apologia de Sócrates”, que uma vida sem investigação não vale a pena ser vivida. Aristóteles, no princípio de sua “Metafísica”, afirma que todos os homens tendem por natureza ao saber. A identificação por Aristóteles dessa vocação natural e fundamental em todos os homens contribuiu para impulsionar a investigação científica nos séculos subseqüentes.
A ‘phrónesis’ aristotélica, ou prudência, é um dos modos exclusivamente humanos de estar na verdade das coisas, de aspirar à possessão intelectiva que podemos entender como o desejo de saber. De acordo com o filósofo catalão Xavier Zubiri, a ‘phrónesis’ corresponde a um saber universal referente à maneira de agir na totalidade da vida e tem como objeto preciso o bem e o mal.
Quando a tendência natural ao saber é afastada dos valores filosóficos e éticos, portanto, abrimos espaço para a distorção cientificista, para a exacerbação racionalista e para a indefinição gerada pelo pluralismo relativista que nos leva a desconfiar de nossas próprias capacidades cognitivas.
O papa João Paulo II, o Grande, em sua encíclica “Fides et Ratio” de 1998, adverte para o agnosticismo e o relativismo que conduzem a investigação filosófica ao ceticismo geral. É tendência cada vez mais presente considerar que a verdade se manifesta igualmente em doutrinas diferentes (ou mesmo contraditórias). O abandono de referenciais em nome de um relativismo multiculturalista leva certos cientistas a deixarem de lado também toda e qualquer referência ética, toda e qualquer aspiração à prudência. Na inexistência de conceitos bem definidos do que é certo e do que é errado, a dignidade da pessoa humana passa a um segundo plano e, em primeiro lugar, vêm os interesses tecnológicos e mercadológicos. O homem passa a servir a ciência, e não esta a servir ao homem.
É em nome desse relativismo multiculturalista que se procura sistematicamente, através dos meios informativos e acadêmicos, caracterizar tudo o que vem da ciência como absolutamente confiável e tudo o que vem da fé como absolutamente obscurantista. A partir dessa caracterização, que na verdade representa o conflito não entre a fé e a razão, mas entre a religião e o cientificismo materialista, afasta-se a atividade científica de sua verdadeira natureza, transformando-a em instrumento de ativismo político e ideológico.
Teorias científicas são testáveis, isto é, estão sujeitas à experimentação. A correspondência de uma dada proposição científica com a realidade é constantemente testada e, de acordo com os resultados obtidos, essa proposição pode ser aprimorada ou mesmo abandonada. É nesse sentido que a ciência não pretende produzir verdades definitivas. Afirmar que teorias científicas são fatos equivale a identificar com a realidade aquilo que deve ser testado mediante a própria correspondência com a realidade.
Se nas ciências ditas naturais o confronto com a realidade mediante a experimentação é o critério de validação por excelência, a atividade dos matemáticos é diferente. Os teoremas matemáticos são resultados demonstrados a partir das regras da lógica e de certos conceitos estabelecidos ‘a priori’. Mas onde é que as ciências naturais se encontram com os teoremas matemáticos? Exatamente nos fundamentos. A testabilidade e a iteração experimental fornecem resultados estatísticos referentes às proposições científicas. A passagem desses resultados para a obtenção de generalizações, de teorias e de leis científicas, envolve a utilização de asseverações matemáticas que são demonstráveis a partir da lógica, mas que não são testáveis em laboratório. As leis da probabilidade, que estão na própria base das inferências estatísticas, fazem parte de uma área da matemática conhecida como Teoria da Medida. Esse corpo teórico começa a partir de certos axiomas e seus resultados vêm, em última análise, de deduções lógicas decorrentes de certos postulados determinados ‘a priori’.
Na própria base das ciências naturais, nos próprios instrumentos que são utilizados para sistematizar metodologicamente a experimentação e a observação a partir das quais nascem as teorias científicas, encontramos elementos de natureza apriorística que não se sujeitam aos procedimentos racionais utilizados nas ciências naturais. Devemos ter em mente que os elementos metodológicos adotados como pressupostos de trabalho não constituem, em si mesmos, fenômenos científicos.
Vejamos um exemplo concreto e atual de como a ciência pode ser politizada. A hipótese científica do aquecimento global ter causas antropogênicas é bastante difundida, mas está longe de ser uma verdade absoluta. Assim como muitos pesquisadores inclinam-se a defender que o aquecimento global é conseqüência da ação humana, outros pesquisadores contestam essa hipótese também a partir de dados experimentais e de análises estatísticas sobre esses dados. É essa diferença de posições que impulsiona a atividade científica e permite que aumentemos nosso conhecimento acerca do fenômeno em questão, isto é, o aquecimento global. Infelizmente, ativistas políticos, com o apoio de grande parte da mídia, difundem a hipótese das causas antropogênicas para o aquecimento global como sendo verdadeira e incontestável. A partir dessa assumpção, a economia de livre mercado, sustentada pelos avanços na produção industrial, pela competição e pelo consumo, é considerada a grande responsável pelos danos ao meio-ambiente que se verificam através do aquecimento global. Utiliza-se uma hipótese de investigação científica, portanto, para condenar um sistema econômico.
O abandono dos parâmetros éticos, a falta de referenciais do que é certo e do que é errado e a deificação da ciência, decorrentes da imposição gradual de uma mentalidade radicalmente racionalista, materialista e positivista, contribuem para que as pessoas aceitem de bom grado as caracterizações da ciência que servem a propósitos de militância política. A pesquisa científica, quando influenciada por propagandas dessa espécie, encontra um fim em si mesma e não na aproximação da verdade, muito menos então no serviço à pessoa humana. Trata-se de dominar a existência humana mediante os resultados do progresso tecnológico e de afastar o homem do conhecimento de si mesmo, de suas relações com a natureza e da tentativa de compreensão do sentido das coisas.
Distante da avaliação ética, o pensamento cientificista contemporâneo, aliado à militância política e ideológica, procura inculcar na mente das pessoas a idéia de que todo resultado de pesquisas científicas é moralmente aceitável, pois a vida e a dignidade dos seres humanos passam a ocupar uma categoria inferior na ordem das prioridades. A politização da ciência leva também, portanto, à banalização da vida.
A atividade científica nos proporciona inúmeros benefícios e devemos sempre utilizar a nossa razão, que talvez seja a característica que melhor nos singulariza enquanto espécie, para o maior benefício da humanidade. Devemos ser gratos, portanto, aos resultados da investigação científica que não se afastam de uma perspectiva personalista. O que não devemos permitir é a politização da ciência que a coloca acima dos valores humanos fundamentais, sob o risco de abandonarmos a nossa própria humanidade.
Claudio Téllez é Vice Presidente de Formação do CIEEP
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Claudio Téllez - claudio@tellez.com
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