quinta-feira, junho 01, 2006

92) De volta ao problema das charges dinamarquesas...

Por que publiquei as charges de Maomé
Flemming Rose (editor de cultura do Jyllands-Posten)*
01/06/2006 – Der Spiegel – Uol

A correção política européia permite que os muçulmanos resistam à integração, argumenta o editor de cultura do "Jyllands-Posten". Mas, em vez disso, os muçulmanos deveriam ser tratados exatamente como todos os europeus - o que inclui estar sujeito a sátiras. Ele argumenta que a publicação das charges foi um ato de "inclusão" e não de exclusão.

O furor mundial desencadeado pelas charges do profeta Maomé que eu publiquei em setembro do ano passado no "Jyllands-Posten", o jornal dinamarquês para o qual trabalho, se constituiu tanto em uma surpresa quanto em uma tragédia, especialmente para aqueles diretamente afetados pelo fato. Vidas foram perdidas, prédios incendiados e pessoas foram obrigadas a se esconder.

Mas as reações desequilibradas às caricaturas não tão provocadoras assim - denúncias ruidosas e até ameaças de morte dirigidas contra nós, mas pouca indignação com relação aos indivíduos que atacaram duas embaixadas dinamarquesas - desmascarou realidades desagradáveis sobre o fracassado experimento da Europa com o multiculturalismo. É hora de o Velho Continente encarar os fatos e promover certas mudanças profundas na sua forma de ver a imigração, a integração e a explosão demográfica muçulmana que está por vir.

Após décadas de conciliação e correção política, combinadas ao medo crescente de uma minoria radical preparada para cometer graves atos de violência, o momento da verdade para a Europa chegou.

Atualmente a Europa se vê aprisionada em uma postura de relativismo moral que está minando os seus valores liberais. Uma aliança mundana de três faces entre ditadores do Oriente Médio, imãs radicais que moram na Europa e a tradicional esquerda européia está permitindo que grasse uma política de vitimologia. Essa política impulsiona uma cultura que resiste à integração e à adaptação, perpetua as diferenças nacionais e religiosas e agrava tais males sociais debilitantes como as altas taxas de criminalidade dos imigrantes e um desemprego crônico.

Como pessoa que já defendeu o Estado utópico de paraíso multicultural, acho que sei sobre o que estou falando. Minha formação se deu em meio aos ideais da década de 1960, no clima da Guerra Fria. Eu enxergava a vida através da lente da agitação contracultural, adotando tanto a postura hippie quanto o complexo de superioridade política da minha geração. Eu e os meus colegas da escola secundária acreditávamos que o Ocidente era imperialista e racista.

Analisávamos a decadência da civilização ocidental por meio dos textos de Marx e Engels, e idolatrávamos a música de John Lennon, bonita, mas estúpida, sobre um mundo ideal sem propriedade privada: "Imagine que não há propriedade/Será que você consegue?/Nenhuma necessidade de avareza ou fome/Uma irmandade dos homens/Imagine todas as pessoas/Compartilhando o mundo todo".

Demorei dez meses como um jovem estudante na União Soviética em 1980 e 1981 para entender com o que se pareceria um mundo sem propriedade privada, embora fosse necessário que se passassem vários anos até que as conseqüências integrais do dogma marxista central se tornassem claras para mim.

Essa experiência foi o início de uma longa jornada intelectual que até o momento culminou nas reações às charges de Maomé. Politicamente, eu amadureci na União Soviética. Retornei àquele país em 1990, e lá passei 11 anos como correspondente estrangeiro. Por meio do contato próximo com dissidentes corajosos que estavam dispostos a sofrer e a ir para a prisão pela sua crença nos ideais da democracia ocidental, fui curado dos meus sonhos incertos de coletivismo idealista. Eu compreendi intensamente o alto preço que os meus amigos estavam dispostos a pagar por exatamente aquelas liberdades que víamos como algo de trivial nos tempos de escola secundária, e que não entendíamos como valores inerentes da nossa civilização: liberdade de expressão, religião, associação e formação de movimentos. Aprendi que a justiça e a igualdade implicam em oportunidades iguais, e não em resultados iguais para todos.

Agora, no fracasso da Europa em lidar de forma realista com o seu cenário demográfico que muda dramaticamente, enxergo um novo paralelo com a jornada da Guerra Fria. Atualmente, a esquerda européia está enganando a si própria com relação à imigração, à integração e ao radicalismo islâmico, da mesma forma que nós, os jovens hippies, nos iludíamos quanto ao marxismo e ao comunismo 30 anos atrás. Trata-se de uma narrativa de confrontação e de hierarquia que alega que o Ocidente explora, marginaliza e comete abusos contra o mundo islâmico. Intelectuais de esquerda insistiram em dizer que os dinamarqueses estavam oprimindo e marginalizando os imigrantes muçulmanos.
Essa visão se coaduna precisamente com o modelo de orientalismo do falecido Edward Said, que argumentava que os especialistas no Oriente e no mundo muçulmano não descrevem aquela região como ela é, mas como uma espécie de "outro" temido, como o exato oposto de nós - que deveria, portanto, ser rejeitado. Nesta narrativa o Ocidente é democrático, e o Oriente despótico.

Nós somos racionais, e eles irracionais.

Este tipo de pensamento gerou uma abordagem distorcida com relação à imigração em países como a Dinamarca. Comentaristas de esquerda decidiram que a Dinamarca era ao mesmo tempo racista e islamófoba. Assim sendo, o principal obstáculo à imigração não seria a falta de disposição dos imigrantes para se adaptarem culturalmente ao seu país adotado (atualmente, existem 200 mil dinamarqueses muçulmanos); o obstáculo seria o racismo e o preconceito contra os muçulmanos, inerentes ao país.

Um culto de vitimologia surgiu e foi alegremente explorado por radicais espertos da comunidade muçulmana européia, especialmente certos líderes religiosos, como o ímã Ahmad Abu Laban, na Dinamarca, e o mulá Krekar, na Noruega. O mulá Krekar - um fundador curdo da Ansar al Islan, que neste ano recebeu uma ordem de expulsão da Noruega - disse a respeito da publicação das nossas charges: "Isso foi uma declaração de guerra contra nossa religião, nossa fé e nossa civilização. A nossa maneira de pensar está penetrando na sociedade e é mais vigorosa do que a deles. Isso causa ódio na maneira de pensar ocidental. Como parte perdedora, eles cometem violências".

O papel de vítima é muito conveniente porque ele exime a autodeclarada vítima de qualquer responsabilidade, e ao mesmo tempo confere a ela uma postura de superioridade moral. Isto também oculta certos fatos inconvenientes que poderiam sugerir uma explicação diferente para a vagarosa integração de alguns grupos imigrantes - tais como os índices de criminalidade relativamente elevados, a opressão das mulheres e uma tradição de se promover casamentos forçados.

Ditaduras no Oriente Médio e imãs radicais adotaram o jargão da esquerda européia, chamando as charges de racistas e islamófobas. Quando ocidentais criticam a falta de liberdades civis e a opressão das mulheres, eles dizem que nos comportamos como imperialistas. Eles adotaram a retórica e a voltaram contra nós.

Estes fatos estão correndo contra o perturbador cenário de fundo formado por muçulmanos cada vez mais radicais na Europa. Muhammed Atta, o líder da operação do 11 de setembro, se tornou um muçulmano de fé renovada após se mudar para a Europa. Este também foi o caso dos perpetradores dos atentados a bomba em Madri e em Londres. O mesmo se aplica a Mohammed Bouyeri, o jovem muçulmano que matou o cineasta Theo van Gogh, em Amsterdã. A Europa, e não o Oriente Médio, pode ser atualmente o terreno fértil para o crescimento do terrorismo islâmico.

Lições dos Estados Unidos

O que há de errado com a Europa? Por um lado, a forma como o continente aborda as questões da imigração e da integração está enraizada na sua experiência histórica com culturas relativamente homogêneas. Nos Estados Unidos, a definição de nacionalidade é essencialmente política. Na Europa ela é historicamente cultural. Eu sou dinamarquês porque tenho aparência de europeu, falo dinamarquês e sou descendente de gerações seculares de outros escandinavos. Mas e quanto aos novos dinamarqueses, escuros e barbudos, que falam árabe nas suas casas, e balbuciam um dinamarquês errado nas ruas? Nós, europeus, precisamos fazer um profundo ajustamento cultural para entendermos que eles, também, podem ser dinamarqueses.

Um outro grande impedimento para a integração é o welfare state europeu.

Devido ao fato de as redes de segurança social européias altamente desenvolvidas, mas cada vez mais caras e inacessíveis para os pobres, fornecerem seguros desempregos generosos, mas incentivos insuficientes para que os indivíduos trabalhem, vários novos imigrantes passam imediatamente a viver de caridade.

Embora se possa argumentar que a comunidade de cerca de 20 milhões de imigrantes muçulmanos na Europa - um contingente que cresce velozmente - seja o equivalente aos novos imigrantes hispânicos nos Estados Unidos, a diferença de produtividade e prosperidade entre esses dois grupos é surpreendente. Um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, feito em 1999, revelou que enquanto os imigrantes nos Estados Unidos são quase iguais aos trabalhadores nativos como pagadores de impostos e contribuintes para a prosperidade norte-americana, na Dinamarca existe uma nítida diferença de 41% entre as contribuições feitas pelos nativos e os imigrantes. Nos Estados Unidos, um trabalhador demitido recebe uma média de 32% de compensação pelos seus antigos salários na forma de serviços de assistência social. Já na Dinamarca este número é de 81%. Uma cultura de dependência destes serviços prospera entre os imigrantes, e é tida como algo natural.

O que fazer? Obviamente, jamais poderemos retornar às confortáveis monoculturas do passado. Uma revolução demográfica está mudando a face e a aparência da Europa. Em uma era de migração em massa e Internet, passagens baratas de avião e telefones celulares por toda parte, o pluralismo cultural é um fato irreversível, quer se goste disso ou não. Uma saudade nostálgica da pureza cultural - pureza racial, pureza religiosa - pode facilmente se transformar em ideologias de limpeza étnica.

Mas o multiculturalismo que com muita freqüência se transformou em mero relativismo cultural, é uma proposição indefensável que muitas vezes justifica práticas reacionárias e opressivas. Conferir aos valores não liberais do islamismo conservador o mesmo peso que é dado às tradições liberais do Iluminismo europeu é algo que acabará cedo ou tarde destruindo aqueles exatos fatores que fazem da Europa um alvo tão desejável para os imigrantes.

A Europa precisa se livrar da camisa-de-força da correção política que faz com que seja impossível criticar as minorias por qualquer coisa - incluindo as violações da lei, dos costumes e dos valores que são o cerne da experiência européia. Duas experiências expõem para mim essa história.

Pouco depois do horrível cerco ao teatro em Moscou, em 2002, por terroristas tchetchenos, em uma ação que resultou na morte de 130 pessoas, encontrei um dos meus velhos amigos dissidentes, Sergei Kovalev. Um herói do movimento dos direitos humanos na antiga União Soviética, Kovalev era há muito tempo defensor dos tchetchenos e um crítico dos ataques russos contra a Tchetchênia. Mas após o massacre ocorrido no teatro, ele se recusou, como sempre, a falar bobagens politicamente corretas a respeito da luta justa dos tchetchenos pela secessão e a descolonização. Kovalev denunciou sem hesitação os terroristas, e insistiu em dizer que o direito de um país à autodeterminação não implica em um passe livre para matar e violar direitos individuais básicos. Para mim, aquele foi um momento esclarecedor sobre a desonestidade das políticas de identidade e da ocasional tirania de se elevar os direitos do grupo acima daqueles dos indivíduos - de se justificar o assassinato de inocentes em nome de alguma causa mais elevada.

A outra experiência foi uma viagem que fiz na década de 1990, quando era correspondente nos Estados Unidos, no bairro de Brighton Beach, no Brooklyn, em Nova York. Lá eu escrevi uma história sobre a próspera, agitada e vibrante comunidade de imigrantes russos da região - um exemplo perfeito de pessoas retendo parte da sua velha identidade cultural (bebendo chá de samovares, jogando xadrez por horas a fio e freqüentando a igreja) e, ao mesmo tempo, tirando vantagem do capitalismo livre e aberto dos Estados Unidos para conquistar segurança econômica. Fiquei maravilhado com a capacidade daquele país em absorver os recém-chegados. Aquele foi um outro momento esclarecedor.

Um ato de inclusão. O tratamento igual é a forma democrática de permitir que os recém-chegados superem as barreiras tradicionais de sangue e solo. Para mim, isso significa tratar os imigrantes exatamente como qualquer outro dinamarquês. E foi isso o que senti que estava fazendo ao publicar as 12 charges de Maomé no ano passado. Aquelas imagens não excederam de maneira alguma os limites do gosto, da sátira e do humor aos quais eu submeteria qualquer outro dinamarquês, fosse ele a rainha, o líder da igreja ou o primeiro-ministro. Ao tratar uma figura muçulmana da mesma maneira que trataria um ícone cristão ou judeu, eu enviei uma mensagem importante: vocês não são estranhos, estão aqui para ficar, e nós os aceitamos como uma parte integrada da nossa vida. E vamos satirizá-los também. Aquilo foi um ato de inclusão, e não de exclusão. Um ato de respeito e de reconhecimento.

Infelizmente alguns muçulmanos não viram a coisa dessa forma - embora tenham sido necessários uma campanha altamente organizada, várias caricaturas falsificadas (e bastante asquerosas) e muitos meses de viagens ao exterior para que os imãs ofendidos provocassem uma reação internacional.

Talvez a Europa precise tomar emprestada uma página - ou um livro inteiro - da experiência norte-americana. Para que emerja uma nova Europa de muitas culturas e que seja, de alguma forma, uma entidade única, de forma similar à experiência dos Estados Unidos, ambos os lados precisam fazer um esforço - os nativos e os recém-chegados.

Para os imigrantes, esperar que eles não só aprendam a língua nativa mas também respeitem as tradições políticas e culturais dos novos países não é exigir demais, e algumas novas leis rígidas (talvez demasiadamente rígidas) estão sendo aprovadas para forçar que isso ocorra. Ao mesmo tempo, os europeus devem demonstrar uma disposição para descartar idéias entranhadas sobre sangue e solo, e aceitar povos de culturas e países estrangeiros como aquilo que eles são: os novos europeus.

*Flemming Rose é editor de cultura do "Jyllands-Posten", o maior jornal da Dinamarca.

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