domingo, dezembro 07, 2008

380) Revisitando um velho dialogo entre o mercado e o Estado...

...nem tão velho assim, posto que do início do Governo Lula, e ainda válido em suas grandes linhas.

DIÁLOGO CRUEL
Rubem de Freitas Novaes*
Valor Econômico, 17/02/03

Em artigo publicado no Valor, de 28/08/02, procurei mostrar que o “Mercado” era algo bem maior e melhor do que a imagem distorcida que dele se fazia na Imprensa e na Política. Isto não me impede, no entanto, de aproveitar esta imagem para conceber o seguinte diálogo, tramado no campo da ironia, mas baseado na realidade da nossa atual conjuntura, entre o Presidente Lula e um hipotético “ser” Mercado:

Mercado: - Como está indo Lula?

Lula: - Melhor do que jamais poderia imaginar. Depois de uma vitória expressiva nas urnas, tenho obtido sucesso absoluto no plano interno e no internacional. Aqui, índices nunca alcançados de aprovação popular e sólida maioria construída no Congresso, apesar de certas escaramuças com alguns de nossos radicais. Lá fora, depois de construir uma ponte entre o Fórum Social de Porto Alegre e o Fórum Econômico Mundial, passo a ser considerado o novo símbolo da terceira via, capaz de compatibilizar responsabilidade macroeconômica e combate à pobreza. Já sou íntimo do Bush, do Chirac e do Schröder e estabeleci uma clara liderança na América Latina. Muito bom para começar, não é? E você, como vai?

M: - Eu, como sempre, na expectativa. Não sou muito de me convencer rapidamente das coisas, mas confesso que os primeiros passos de seu governo, na área macroeconômica, me impressionaram favoravelmente. Não pode é perder o ritmo. Para continuar com o meu apoio, pelo menos esta reforma previdenciária tem que sair para valer ainda este ano. Aliás, não é só isto. Tem que enquadrar seus ministros e parlamentares de esquerda para que eu não me lembre que um dia você também já teve sonhos socialistas.

L: - Acho que você está sendo um pouco arrogante e que se equivoca ao imaginar que eu possa ter abandonado as minhas teses antigas. Fala como se eu fosse agora um companheiro seu, o que não é verdade.

M: - Não é, mas é como se fosse. Você não tem alternativas fora das minhas recomendações. Quer queira, quer não, você é prisioneiro das idéias dominantes. Com a globalização dos mercados e com o volume e velocidade dos fluxos financeiros internacionais nenhum governante tem mais condições de desconsiderar impunemente os mandamentos do “Consenso de Washington”.

L: - Engana-se, meu caro. Estamos trabalhando para construir um enorme superávit na balança comercial, dependeremos cada vez menos do capital externo e chegará o ponto em que poderemos dispor de autonomia para traçar os destinos do país, segundo a nossa vontade. Não decepcionarei àqueles que caminharam comigo ao longo das últimas décadas!

M: - Balela! Não há futuro fora das regras estabelecidas pelas grandes nações. Surfa-se a onda gigante ou choca-se contra ela. Não creio também que você vá querer perder o respeito dos principais líderes mundiais, nem dispensar a audiência que conquistou em Davos. Essas coisas, depois que a gente experimenta .... E ainda existem as restrições internas.

L: - A que restrições internas você se refere?

M: - Quem tem a dívida pública do tamanho da sua tem que me tratar muitíssimo bem. Se não me oferecer um belo juro e mostrar que está produzindo superávits primários robustos, deixo de financiar o governo, vem uma baita expansão monetária e o país vai para a hiperinflação.

L: - Presunçoso, hein? Cuidado com a sua recorrente arrogância. A dívida interna pode rapidamente deixar de ser um problema do devedor e ....

M: - E quem disse que eu sou o credor? Isto é coisa do passado. Carrego apenas pequena parcela da dívida. Sou simplesmente administrador da poupança de milhões de indivíduos e empresas, estes sim credores importantes do governo. Não só a legislação protege os ativos da população de arbitrariedades vindas do Executivo, como também é patente a inviabilidade política de uma medida forte contra estes milhões de poupadores.

L: - Você está enveredando por um caminho que não é o nosso. Temos um compromisso com o respeito aos contratos, com a austeridade fiscal e com a defesa da moeda, e você há de convir que temos dado demonstrações claras de que vamos cumpri-lo. Nossa diferenciação será no plano social. Vamos atacar a pobreza de frente e com força. O Estado não se amedrontará diante deste enorme desafio que atravessa gerações.

M: - Realmente vocês têm dado mostras de que respeitam os compromissos de campanha. Inclusive o Ministro Palocci foi muito firme, neste aspecto, em suas discussões com a bancada do PT. Mas não espere de mim muitos elogios por conta disto. Estarei sempre suspendendo o bastão, como na prova do salto com vara, para extrair o máximo de seus esforços. Quanto à questão social, veja bem o que vai fazer! Não gosto de medidas voluntaristas e paternalistas. O Estado tem de criar as condições para que o setor privado se expanda, gerando emprego e renda para a população pobre. Não será dilatando o setor público, nem distribuindo benesses, segundo critérios impostos de cima para baixo, que encontraremos as soluções definitivas para os nossos problemas. Procure dar ênfase à qualificação do capital humano, com investimentos em saúde e educação, e, para a correção da pobreza absoluta, comece a dar mais atenção às idéias do Senador Suplicy, inspiradas no Milton Friedman.

L: - Você está toda a hora me dizendo o que fazer. Quem afinal de contas foi eleito pela população para governar? Você ou eu?

M: - Você, é claro. Mas quem dita as regras sou eu!

* O autor é economista (UFRJ) com doutorado na Universidade de Chicago. E-mail

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